O piano
Eu
dou de ficar vendo essas séries antigas, tramadas no épico e desafiador e calha
é de minha moleira mexer e remexer em lembranças. Agora, estou revendo, em
visitas encarreiradas à plataforma de streaming, a série Mad Maria. E é num
repente que me vejo ali no meio daquela vuca instigante.
A
versão para a TV traz uma adaptação do escritor Márcio Souza dos fatos que
marcaram a construção da estrada de ferro que deu início à cidade de Porto
Velho; e fez por onde e até donde, honrar o compromisso de dar uma saída para o
mar à Bolívia.
Tive
uma experiência naquelas paragens. Morei na região em um período muito
interessante. Rondônia tinha passado a ser Estado recentemente, o governo desenvolvia
um devastador modelo de ocupação do território, a mineração de estanho, no
interior do Estado e ouro, no leito do Madeira, passava pelos seus momentos de
euforia econômica. Com um currículo de meia página, fui bater lá para ganhar a
vida no meu primeiro emprego na profissão. Tirando os entretantos e as
conformidades da lida, eu me passava era pra’quele sentimento de pioneirismo,
de novidade. A história de Rondônia era muito recente. Ao contrário da maioria
das capitais da Amazônia, que datavam do Brasil colônia, Porto Velho surgiu um
dia desses, no início do século 20. Um lugar bem ali no tempo. E esse aspecto,
nos fazia, aqueles que se ajeitavam por lá, conhecer, e por estarmos próximos
no tempo, sentir, quase viver o clima dos primeiros anos da cidade, aqueles que
compreendiam a construção da Madeira-Mamoré.
Sobre
o nome da ferrovia, cabe dizer que é uma referência espacial. A estrada de
ferro liga a cidade de Porto Velho no rio Madeira a Guajará Mirim, cidade que
tem a fronteira com a Bolívia controlada pelo rio Mamoré. A estrada de ferro
ficou conhecida também como a ferrovia do diabo e tenho aqui em casa um livro
raro que traz na capa este título. Numa narrativa distanciada de Márcio Souza,
o pesquisador Manoel Rodrigues Ferreira descarta os enredados românticos e trata
a construção no campo do rigor histórico.
Em
uma manhã de folga da minha turma da mineração, praticando a liberdade
desregrada da idade, exercendo o direito de aliviar a cuca do confinamento na
mata, que o trabalho nos impunha, nos instalamos em uma mesa de bar, ali para
um café da manhã. Todos muito jovens, energia potencial além do entendimento
físico ou psicológico, emendamos a reuniãozinha no rumo de tomarmos logo a
primeira. E assim se deu. Mais uma, e mais uma, e desce uma rodada de sopa. O
bar se chamava Canto do Arara e a partir daquele dia se tornou o nosso bar.
Ficava na esquina da Sete. E dá de manhã, e dá de tarde, e dá de noite e a
gente ali, multiplicando as rodadas, e sopa de novo, e petiscos. Cantávamos,
contávamos causos, chamávamos a atenção.
Passantes viraram amigos, amigas, sempre parava um ou uma para entender
aquela presepada. Até que Silas Shockness sentou com a gente. Um grande
momento.
A
estrada de ferro Madeira-Mamoré foi construída entre 1907 e 1912. A obra foi
alvo de muitas críticas que iam da credibilidade dos contratos formados, à
segurança e legalidade do empreendimento. Houve de ser conhecida como a estrada
em que cada dormente significava uma vida perdida. A grande massa de
trabalhadores que atuou na construção era de fora do país. Silas era
descendente do barbadiano Charles. Contou tanta coisa. Gostava de falar, ou
melhor, relatar, testemunhar. Ele próprio, com o passar do tempo, também fez
parte da equipe que operou a Mad Maria fumaça.
Isso
foi ali, por 1985. Já vivia há dois anos em Rondônia. Era fascinado por aquele
movimento. Muita gente de fora, a plataforma da rodoviária sendo a vida daquele
lugar, os refugiados, os pioneiros...
A
história viva de Silas, ali na nossa frente. Revelando muito sobre aqueles
dormentes e sobre a dama boliviana que escapou do naufrágio no Madeira agarrada
à cauda de um piano.
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