sábado, 28 de junho de 2025

crônica da semana- o piano

 O piano

Eu dou de ficar vendo essas séries antigas, tramadas no épico e desafiador e calha é de minha moleira mexer e remexer em lembranças. Agora, estou revendo, em visitas encarreiradas à plataforma de streaming, a série Mad Maria. E é num repente que me vejo ali no meio daquela vuca instigante.

A versão para a TV traz uma adaptação do escritor Márcio Souza dos fatos que marcaram a construção da estrada de ferro que deu início à cidade de Porto Velho; e fez por onde e até donde, honrar o compromisso de dar uma saída para o mar à Bolívia.

Tive uma experiência naquelas paragens. Morei na região em um período muito interessante. Rondônia tinha passado a ser Estado recentemente, o governo desenvolvia um devastador modelo de ocupação do território, a mineração de estanho, no interior do Estado e ouro, no leito do Madeira, passava pelos seus momentos de euforia econômica. Com um currículo de meia página, fui bater lá para ganhar a vida no meu primeiro emprego na profissão. Tirando os entretantos e as conformidades da lida, eu me passava era pra’quele sentimento de pioneirismo, de novidade. A história de Rondônia era muito recente. Ao contrário da maioria das capitais da Amazônia, que datavam do Brasil colônia, Porto Velho surgiu um dia desses, no início do século 20. Um lugar bem ali no tempo. E esse aspecto, nos fazia, aqueles que se ajeitavam por lá, conhecer, e por estarmos próximos no tempo, sentir, quase viver o clima dos primeiros anos da cidade, aqueles que compreendiam a construção da Madeira-Mamoré.

Sobre o nome da ferrovia, cabe dizer que é uma referência espacial. A estrada de ferro liga a cidade de Porto Velho no rio Madeira a Guajará Mirim, cidade que tem a fronteira com a Bolívia controlada pelo rio Mamoré. A estrada de ferro ficou conhecida também como a ferrovia do diabo e tenho aqui em casa um livro raro que traz na capa este título. Numa narrativa distanciada de Márcio Souza, o pesquisador Manoel Rodrigues Ferreira descarta os enredados românticos e trata a construção no campo do rigor histórico.

Em uma manhã de folga da minha turma da mineração, praticando a liberdade desregrada da idade, exercendo o direito de aliviar a cuca do confinamento na mata, que o trabalho nos impunha, nos instalamos em uma mesa de bar, ali para um café da manhã. Todos muito jovens, energia potencial além do entendimento físico ou psicológico, emendamos a reuniãozinha no rumo de tomarmos logo a primeira. E assim se deu. Mais uma, e mais uma, e desce uma rodada de sopa. O bar se chamava Canto do Arara e a partir daquele dia se tornou o nosso bar. Ficava na esquina da Sete. E dá de manhã, e dá de tarde, e dá de noite e a gente ali, multiplicando as rodadas, e sopa de novo, e petiscos. Cantávamos, contávamos causos, chamávamos a atenção.  Passantes viraram amigos, amigas, sempre parava um ou uma para entender aquela presepada. Até que Silas Shockness sentou com a gente. Um grande momento. 

A estrada de ferro Madeira-Mamoré foi construída entre 1907 e 1912. A obra foi alvo de muitas críticas que iam da credibilidade dos contratos formados, à segurança e legalidade do empreendimento. Houve de ser conhecida como a estrada em que cada dormente significava uma vida perdida. A grande massa de trabalhadores que atuou na construção era de fora do país. Silas era descendente do barbadiano Charles. Contou tanta coisa. Gostava de falar, ou melhor, relatar, testemunhar. Ele próprio, com o passar do tempo, também fez parte da equipe que operou a Mad Maria fumaça.

Isso foi ali, por 1985. Já vivia há dois anos em Rondônia. Era fascinado por aquele movimento. Muita gente de fora, a plataforma da rodoviária sendo a vida daquele lugar, os refugiados, os pioneiros...

A história viva de Silas, ali na nossa frente. Revelando muito sobre aqueles dormentes e sobre a dama boliviana que escapou do naufrágio no Madeira agarrada à cauda de um piano.

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