Guarda-roupa de parede
A
conversa surgiu de um chafurdamento nas idéias para um passa-tempo de calçada até
que o sol iniciasse a descida no horizonte. A gente trocando uma prosa enquanto
esperava o colorido se definir ali na baixa do céu e, no repente, reaquecemos a
idéia de partilha, de ombros lado a lado. No explica aqui, relembra ali, cata
exemplos acolá, nos demos conta de que algumas das invenções de vida, superações
de encalacres, dinâmicas de abrandamento de aperreios, alternativas para ir
levando os dias com o que se tinha, foram seivas que percolaram nossas
histórias do mesmo jeitinho, com a mesma sustança. Era tática de companheirismo
que só mudava de endereço.
Quando
veio do Acre com uma meninada agarrada à barra da saia, mamãe não tinha a menor
idéia de como iria se virar. Voltou pro colo de minha avó e à proteção advinda
de uma pecúnia providente deixada pelo nosso vô, conquistada pelos serviços
prestados como Agente Estatístico do IBGE. Foi por causa desta carreira no
funcionalismo público que vovô foi bater no Acre. Com razão neste translado é
que se deu ensejo aos Sodreres paraenses do Xapuri. Ao concluir a missão, meu
vô regressou para Belém e foi morar na Marquês de Herval. Mamãe ficou lá no
Xapuri, gerando filho todo ano do seringueiro boa praça que cantarolava pelas
ruas de seringa, músicas de Nelson Gonçalves.
Quando
desembarcamos do táxi Aero Willys, de confronte a vila do Cruz, na Marquês, meu
avô não estava mais entre nós, o seringueiro ficara no Acre cantarolando
paixões e mamãe iria assumir a solidão para a vida toda, mas antes, ousaria
agregar mais 5 demandas ao orçamento familiar amparado na pecúnia do patriarca.
Barra
pesadíssima aquela. Anos de chumbo. Governo autoritário. Ditadura. Povo cabisbaixo,
desdentado, desnutrido. Sujismundo. Repressão a cada esquina. Um bolo econômico
que crescia, mas nunca era dividido. Tudo pela hora da morte. Carne vendida no
puro osso do contrapeso e embrulhada na folha do Guarumã. Óleo para as frituras
aviado na medida pouca, comida aos retalhos. Cuidado, respeito nenhum pelos
mais pobres. Os mercados e as feiras eram povoados de saqueiros, engraxates, pupunheiros,
picolezeiros, biscateiros-mirins... Trabalho infantil sem nenhuma restrição.
Vaga em escola, só se dormisse na fila (o se tivesse um pistolão).
A
avenida Marquês de Herval era, bem dizer, uma paragem bucólica. Tinha muito de
interior. Vizinhança atenciosa, quintais minados de camapu, silêncios ou, no
máximo, sapos e grilos cantadores ao cair da noite. Vaga-lumes clareando a rua
carente de iluminação pública. A casa era de barro e geminada. Uma vila
construída sobre o suave barranco que margeava a rua de terra. Morando nesta
casa da Marquês foi que comecei a estudar na Aparecida. Iniciei pela Alfa, mas
logo estava na primeira adiantada, segundo mamãe, porque era muito
‘intelixente’. Sabia contar todo o capítulo do dia anterior da novela Irmãos
Coragem. Moramos durante um tempo, tudo misturado, os paraenses genuínos e os
acreaninhos. Depois da Marquês foram muitas mudanças. O legado do vô não
compreendia casa própria. O que deu, de certa vez, nos abrigarmos os onze da
família, num apertado de três compartimentos, um nicho mixo, embora fosse uma
casa ‘altas e baixa’.
Até
que um dia, nós acreanos, ensaiamos uma desmistura. E daí veio a nossa reflexão
dias atrás, na espreita do pôr do sol. Foi sobre esta ação latente no
inconsciente coletivo. A divisão da mesma casa para duas ou mais famílias,
arremedando privacidade. E o artifício comum à maioria das divisões: utilização
do guarda-roupa como limitador de cômodos, como ordenador de espaço, uma parede
móvel, submissa às precisões (o banheiro ficava em um dos hemisférios e
precisava ser acessado via guarda-roupa). Muita gente que conheço fez isso.
Embora não parecesse, fazia parte sim de uma ação de partilhamento. Com ajustes,
advogo.
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