sábado, 7 de junho de 2025

crônica da semana - guarda-roupa de parede

 Guarda-roupa de parede

A conversa surgiu de um chafurdamento nas idéias para um passa-tempo de calçada até que o sol iniciasse a descida no horizonte. A gente trocando uma prosa enquanto esperava o colorido se definir ali na baixa do céu e, no repente, reaquecemos a idéia de partilha, de ombros lado a lado. No explica aqui, relembra ali, cata exemplos acolá, nos demos conta de que algumas das invenções de vida, superações de encalacres, dinâmicas de abrandamento de aperreios, alternativas para ir levando os dias com o que se tinha, foram seivas que percolaram nossas histórias do mesmo jeitinho, com a mesma sustança. Era tática de companheirismo que só mudava de endereço.

Quando veio do Acre com uma meninada agarrada à barra da saia, mamãe não tinha a menor idéia de como iria se virar. Voltou pro colo de minha avó e à proteção advinda de uma pecúnia providente deixada pelo nosso vô, conquistada pelos serviços prestados como Agente Estatístico do IBGE. Foi por causa desta carreira no funcionalismo público que vovô foi bater no Acre. Com razão neste translado é que se deu ensejo aos Sodreres paraenses do Xapuri. Ao concluir a missão, meu vô regressou para Belém e foi morar na Marquês de Herval. Mamãe ficou lá no Xapuri, gerando filho todo ano do seringueiro boa praça que cantarolava pelas ruas de seringa, músicas de Nelson Gonçalves.

Quando desembarcamos do táxi Aero Willys, de confronte a vila do Cruz, na Marquês, meu avô não estava mais entre nós, o seringueiro ficara no Acre cantarolando paixões e mamãe iria assumir a solidão para a vida toda, mas antes, ousaria agregar mais 5 demandas ao orçamento familiar amparado na pecúnia  do patriarca.

Barra pesadíssima aquela. Anos de chumbo. Governo autoritário. Ditadura. Povo cabisbaixo, desdentado, desnutrido. Sujismundo. Repressão a cada esquina. Um bolo econômico que crescia, mas nunca era dividido. Tudo pela hora da morte. Carne vendida no puro osso do contrapeso e embrulhada na folha do Guarumã. Óleo para as frituras aviado na medida pouca, comida aos retalhos. Cuidado, respeito nenhum pelos mais pobres. Os mercados e as feiras eram povoados de saqueiros, engraxates, pupunheiros, picolezeiros, biscateiros-mirins... Trabalho infantil sem nenhuma restrição. Vaga em escola, só se dormisse na fila (o se tivesse um pistolão).

A avenida Marquês de Herval era, bem dizer, uma paragem bucólica. Tinha muito de interior. Vizinhança atenciosa, quintais minados de camapu, silêncios ou, no máximo, sapos e grilos cantadores ao cair da noite. Vaga-lumes clareando a rua carente de iluminação pública. A casa era de barro e geminada. Uma vila construída sobre o suave barranco que margeava a rua de terra. Morando nesta casa da Marquês foi que comecei a estudar na Aparecida. Iniciei pela Alfa, mas logo estava na primeira adiantada, segundo mamãe, porque era muito ‘intelixente’. Sabia contar todo o capítulo do dia anterior da novela Irmãos Coragem. Moramos durante um tempo, tudo misturado, os paraenses genuínos e os acreaninhos. Depois da Marquês foram muitas mudanças. O legado do vô não compreendia casa própria. O que deu, de certa vez, nos abrigarmos os onze da família, num apertado de três compartimentos, um nicho mixo, embora fosse uma casa ‘altas e baixa’.

Até que um dia, nós acreanos, ensaiamos uma desmistura. E daí veio a nossa reflexão dias atrás, na espreita do pôr do sol. Foi sobre esta ação latente no inconsciente coletivo. A divisão da mesma casa para duas ou mais famílias, arremedando privacidade. E o artifício comum à maioria das divisões: utilização do guarda-roupa como limitador de cômodos, como ordenador de espaço, uma parede móvel, submissa às precisões (o banheiro ficava em um dos hemisférios e precisava ser acessado via guarda-roupa). Muita gente que conheço fez isso. Embora não parecesse, fazia parte sim de uma ação de partilhamento. Com ajustes, advogo.

 

 

 

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