sábado, 31 de maio de 2025

crônica da semana - diário de um comunista

 Bate, escapole e deixa (diário de um militante)

Mais que depressa, escapei pelas ruinhas do centro. Se não sou rapaz, arisco nos guizas e abandonos no vácuo, o canzarrão tinha era me bocanhado com vontade ali, no agoniado da manifestação (que hoje, não sei por que das quantas, chamam de ‘manifesto’. Mudanças, hermenêuticas negacionistas, desconfio).

Nem sei quando me tornei manifestante. Sei que nesse dia que abeirei os horrores da repressão, já era taludinho, alvo certo pra uns transpescos. Se a tropa me alcançasse, os leais combatentes não iriam aliviar. Ainda mais que eu estava na linha de frente, distribuindo panfletos, gritando palavras de ordem, inspirando a revolução.

Sei apenas que, ao chegar do Acre, não era nada, não tinha nada, nem entendia nada. Mal comia, mal dormia, tinha dor de dente e me bati com todas as doenças da pobreza. Uma papeira quase me levou pro buraco. Fui salvo pela freira que atendia na indigência da Santa Casa e pelas espetadas no glúteo de salvadoras doses de Penicilina, aplicadas por ela, sem pena; e que doíam tanto que eu rabeava, ia ao céu, ao aperreio do inferno, voltava, batia, escapulia, ao fim, deixava a dor me dominar para meu bem e para o bem da sagrada teima de viver.

Devo ter-me avermelhado nas idéias por causa de alguém, uma influência do bem. Acho que foi na copa do mundo de 1978. E para esta conclusão, não há tema ou verbo que explique. Simplesmente, maldei algo errado nesta época. Penso que por causa das lições que recebíamos na disciplina de Educação Moral e Cívica lá na Escola Jarbas Passarinho. Ali se exercitava a defesa inconteste do regime em sessões que hoje se equivaleriam ao powerpoint da direita enferma e destrambelhada.

Pensando melhor, localizo em minha mãe, os primeiros movimentos em direção às minhas condutas comunistas.

Vivíamos num quarto-sala-tudo, numa vilinha da Mauriti. Éramos quatro bocas ávidas para alimentar, quatro estômagos para aliviar, crianças para dar o que vestir, lugar para se acomodar, cuidar da moral e zelar pela dignidade. Ainda no meio desse afogueado enredo, mamãe, de vez em quando dava uma doida, e abrigava mais gente no apertadinho da nossa casa da vilinha. Eu lembro de pelo menos duas companhias. A que mais chamou a atenção foi a de uma família de mineiros. Não me consta como os achou. Sei que quando vimos, tínhamos em casa, a mulher, o marido e a menina, uma criança que até hoje lembro o nome: Elis. Estavam magros, tinham poucas roupas e de lavagem fraca que ensejavam odores e encardidos. Fomos nos arranjando e até hoje, quando me deparo com um prato chamado nhoque, que pra mim  é um combinado de massa pra sopa com picadinho, lembro dessa família. O marido era alcoólatra e foi a primeira experiência que vivi com pessoa nessas condições. A mulher, uma guerreira, chamava a atenção pela musculatura potente e farta, não rejeitava trabalho e, de profissão, cozinhava bem pacas. Mais com pouco, voltaram para Minas, tornaram a velhos dramas. Com um tempo, não tivemos mais notícias. Ficou a lembrança do nhoque e a sincera intenção da mamãe de partilhar lutas e dores.

A vivência para mim, sempre significou partilha e foi deste conceito, desta ação humana, que nos valemos durante muito tempo. Em nossa casa, praticamente tudo era advindo de doação, inclusive uma cadeira de vime chique que abrigava uma colônia de microbinhos que pinicava a bunda da gente. Depois, bem depois da nossa chegada do Acre, quando eu já exibia uma carteira de trabalho assinada aos 12 anos, é que adquirimos algo nosso. Meu primeiro salário, usei para comprar uma TV que mesmo em sintonia baixa, aos chuviscados, nos permitiu assistir à novela Xeque-mate.

A partilha para mim, sempre significou alguma realização coletiva. E por isso, desembestei na carreira naquele dia em que os canzarrões, à potentes bocanhadas, dispersavam a manifestação. Tinha muito que realizar ainda.

 

 

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