Bate, escapole e deixa (diário de um militante)
Mais
que depressa, escapei pelas ruinhas do centro. Se não sou rapaz, arisco nos
guizas e abandonos no vácuo, o canzarrão tinha era me bocanhado com vontade
ali, no agoniado da manifestação (que hoje, não sei por que das quantas, chamam
de ‘manifesto’. Mudanças, hermenêuticas negacionistas, desconfio).
Nem
sei quando me tornei manifestante. Sei que nesse dia que abeirei os horrores da
repressão, já era taludinho, alvo certo pra uns transpescos. Se a tropa me
alcançasse, os leais combatentes não iriam aliviar. Ainda mais que eu estava na
linha de frente, distribuindo panfletos, gritando palavras de ordem, inspirando
a revolução.
Sei
apenas que, ao chegar do Acre, não era nada, não tinha nada, nem entendia nada.
Mal comia, mal dormia, tinha dor de dente e me bati com todas as doenças da
pobreza. Uma papeira quase me levou pro buraco. Fui salvo pela freira que atendia
na indigência da Santa Casa e pelas espetadas no glúteo de salvadoras doses de
Penicilina, aplicadas por ela, sem pena; e que doíam tanto que eu rabeava, ia
ao céu, ao aperreio do inferno, voltava, batia, escapulia, ao fim, deixava a
dor me dominar para meu bem e para o bem da sagrada teima de viver.
Devo
ter-me avermelhado nas idéias por causa de alguém, uma influência do bem. Acho
que foi na copa do mundo de 1978. E para esta conclusão, não há tema ou verbo
que explique. Simplesmente, maldei algo errado nesta época. Penso que por causa
das lições que recebíamos na disciplina de Educação Moral e Cívica lá na Escola
Jarbas Passarinho. Ali se exercitava a defesa inconteste do regime em sessões
que hoje se equivaleriam ao powerpoint da direita enferma e destrambelhada.
Pensando
melhor, localizo em minha mãe, os primeiros movimentos em direção às minhas
condutas comunistas.
Vivíamos
num quarto-sala-tudo, numa vilinha da Mauriti. Éramos quatro bocas ávidas para
alimentar, quatro estômagos para aliviar, crianças para dar o que vestir, lugar
para se acomodar, cuidar da moral e zelar pela dignidade. Ainda no meio desse
afogueado enredo, mamãe, de vez em quando dava uma doida, e abrigava mais gente
no apertadinho da nossa casa da vilinha. Eu lembro de pelo menos duas
companhias. A que mais chamou a atenção foi a de uma família de mineiros. Não
me consta como os achou. Sei que quando vimos, tínhamos em casa, a mulher, o
marido e a menina, uma criança que até hoje lembro o nome: Elis. Estavam
magros, tinham poucas roupas e de lavagem fraca que ensejavam odores e
encardidos. Fomos nos arranjando e até hoje, quando me deparo com um prato chamado
nhoque, que pra mim é um combinado de
massa pra sopa com picadinho, lembro dessa família. O marido era alcoólatra e
foi a primeira experiência que vivi com pessoa nessas condições. A mulher, uma
guerreira, chamava a atenção pela musculatura potente e farta, não rejeitava
trabalho e, de profissão, cozinhava bem pacas. Mais com pouco, voltaram para
Minas, tornaram a velhos dramas. Com um tempo, não tivemos mais notícias. Ficou
a lembrança do nhoque e a sincera intenção da mamãe de partilhar lutas e dores.
A
vivência para mim, sempre significou partilha e foi deste conceito, desta ação
humana, que nos valemos durante muito tempo. Em nossa casa, praticamente tudo
era advindo de doação, inclusive uma cadeira de vime chique que abrigava uma
colônia de microbinhos que pinicava a bunda da gente. Depois, bem depois da
nossa chegada do Acre, quando eu já exibia uma carteira de trabalho assinada
aos 12 anos, é que adquirimos algo nosso. Meu primeiro salário, usei para
comprar uma TV que mesmo em sintonia baixa, aos chuviscados, nos permitiu
assistir à novela Xeque-mate.
A
partilha para mim, sempre significou alguma realização coletiva. E por isso,
desembestei na carreira naquele dia em que os canzarrões, à potentes
bocanhadas, dispersavam a manifestação. Tinha muito que realizar ainda.
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