sábado, 24 de maio de 2025

crônica da semana - fã número 01


 Fã número 01

Nem bateu a liga assim, de prima. Rolou um estranhamento inicial, até, considero, de parte a parte. Só depois, com os jeitinhos é que a coisa foi se firmando, mais adiante é que os corações foram se enamorando.

Um dos nossos primeiros encontros ocorreu ainda inspirando apresentações. Desde 2010, com a mudança no meu horário de trabalho e a família domiciliada num puxadinho no quintal da Pirajá, a minha presença em Belém se dava somente nos finais de semana. A Gata já habitava a casa principal da vilinha que a gente vivia. Numa dessas vindas a Belém, tínhamos gatinhos novos na casa. As crias estavam abrigadas num confortável escondidinho e achei de abelhudar. Pra quê, quando dei as caras por lá, a Gata se inquietou, fez uma zoeira, reclamou. Não me tomou como morador, viu naquela aproximação, a hora de, pelo expediente da adoção, ficar sem um dos gatinhos, como já havia acontecido das outras vezes que pariu. Em ação decidida, abocanhou os filhotes pelo cangote e mudou a família de lugar. Foi dar lá no nosso puxadinho, num apertado debaixo do tanque. Quero crer que até aquele momento era a Gata da vilinha, andava por cá, por lá, se arranjava com desenvoltura pelas duas casas, mas dali em diante, com aquela movimentação tática, configurou-se uma opção. Estabeleceria a moradia ali, junto aos Sodreres.

Aos poucos, foi se acostumando comigo. Algum tempo depois, deixei Barcarena e vim morar na Pirajá. E nessa rotina de ir e vir todo dia para o trabalho, acordando cedinho para atravessar a baía, tornou-se minha companheirinha nos extremos do dia. De forma que, no horário da madrugada, quando saía, e todos em casa dormiam; e depois, ante o conflito das ocupações de todo mundo à noite, quando voltava, admitia ser a gata a única pessoa que se permitia me acompanhar na hora de sair de manhãzinha e também a única que me recebia ao regressar, cansado e estressado. Anos e anos nesta batidinha só nós dois.

Na Pirajá, também desenvolveu o espírito comunitário. Em tudo em quanto a Gata marcava presença, dava o ar da graça. Era certa a participação dela, e de forma muito ativa, nas festividades de época, aniversários na família e, muito marcadamente, no badalado Sarau do Quintal. Tinha lugar cativo para, atenta, acompanhar as canções, a declamação de poemas e também as performances e danças. Era tida como ilustrada, famosa. Todo mundo queria uma foto com ela no calor das apresentações.

Nós os Sodreres, mudamos da vilinha e alteramos o nosso perfil de convivência. Não teria mais aquele formato comunitário amplo. Seríamos só nós, sem a diversidade da vilinha. Este fator que retrata de certa forma um isolamento, teve um efeito expressivo no comportamento da Gata. Com referências restritas, passou a assimilar um pouquinho das nossas personalidades. Esboçava costumes de um, de outro; Desta fazia menções de carinho; daquela, arremedava aplicação, objetividade. Continuamos madrugando. Me acompanhava no café, todo dia, na varanda, apreciando a Pedreira acordar. À noite tínhamos momentos certos. Ao chegar, tirava as botas, a camisa, sentava numa cadeira confortável e a chamava para a troca de carinhos no meu colo, enquanto esfriava o corpo e a cuca, para tomar banho. Adiante, banhado, ao pegar meu violão, no quieto do quarto, ela logo subia na cama para acompanhar as canções com olhares cândidos. Era minha fã número 01.

Nunca aceitou outro nome, atendia por Gata de bom e sincero grado. No início da semana, dia 19 de maio, a Gata nos deixou. Desde 2023, idosa, passou por três internações. Nesta última, a doença já era avançada, implacável. Foi liberada da clínica para ter seus últimos momentos aqui em casa. Acolhida, amada. Ao chegar, reproduziu aquela cena que realizamos tantas vezes de madrugada. Foi ali pra varanda apreciar a Pedreira. Parecia ter saudade. Esta mesma ferina saudade que hoje nos abate.

 

3 comentários:

  1. Não tem como não se emocionar, que tem animal de estimação, e já passou por isso, sabe que esse é um dos momentos difíceis de se enfrentar!

    ResponderExcluir
  2. Meu ❤️ fica apertado com essas verdades lidas...

    ResponderExcluir
  3. É, os gatos quando escolhem um humano pra ser amado por eles, é pra valer!

    ResponderExcluir