Em alto relevo
O
sábado passado foi um dia belemense raiz. Amanheceu nublado, daquele jeito doce
de não parar ninguém pelos caminhos. Sugeriu, entretanto, uma sombrinha sempre
à mão porque daqui pra’li o pampeiro poderia arriar, como de fato se deu já do
meio-dia pra tarde. Saí com a família para experimentar as ‘comidas de buteco’
oferecidas ali pelo estirão da Marquês de Herval. E o que se deu neste passeio
foi muito além do que previa a minha intenção gastronômica. Aconteceu o
reencontro, a reaproximação histórica, a reconstrução do ambiente, a busca por
personagens emblemáticos... Tudo já debaixo dum toró daqueles.
O
combinado era a apreciação dos petiscos em companhia do meu amigo Paulo,
residente e domiciliado no bairro da Cremação e que surgiu na minha vida lá
pelas brenhas escondidas de Rondônia. Nos conhecemos em 1985, quando ele chegou
para trabalhar na mesma empresa de mineração que eu trabalhava há algum tempo.
E veio para me tirar de um aperreio. Me sucedeu numa campanha que dava era medo.
Ninguém queria aquela missão. Era realizada longe pacas da sede, para se chegar
no acampamento base era um estirão de doer, com as tralhas nas costas, cruzando
com rastros de bichos grandes, acompanhado de macacos pequenos, mas algo hostis
e carapanãs da maleita ávidos de sangue sem respeitar a luz do dia. O trabalho era barra
pesadíssima. Fase pioneira da pesquisa. Mapeamento. O dia todo andando dentro
de igarapés, almoço sempre um engana fome no meio da mata, longuíssimas caminhadas
sem perceber a luz do sol. Somente a cobertura verde da floresta e o assombro
do esturro de onça pra tudo quanto era lado e às vezes bem perto da gente.
Comunicação com o mundo só por rádio. E muito ruim. Passei uma semana encarando
os desafios da genuína hiléia, até que, graças ao bom pai, Sérgio chegou para
me substituir no acampamento e também, para assumir um papel fundamental no meu
futuro.
Ficamos
muito próximos. Quando nos conhecemos, era perto do Natal. Ele entrou pro campo,
fez um período nas campanhas de mapeamento e eu fiquei na sede. Depois de um
tempo, veio passar o Natal com a gente. Foi aí que rolou a química. Eu achei
aquele cara espetacular. De um dom para observar, captar detalhes de
comportamento, sestros ou costumes nas pessoas que depois reproduzia com arte
própria e de forma extremamente graciosa. Não digo que era um imitador. Acho
que fazia releituras, reconstruía modos e jeitos, montava cenas, redesenhava
fatos, em alto relevo. Tinha um acervo de personagens ligados à infância na
Cremação que recriava, que reinstalava no contexto em que vivíamos lá em
Rondônia. Ele me apresentou estes personagens na viagem que fizemos da sede da
mineração para Porto Velho, por ocasião de nossa folga de Natal. O ônibus, um
trambolho. A estrada um atoleiro só. Aqui, ali descíamos para empurrar a lata
velha. Uma distância de pouco mais de 100 km, resultou em mais de 6 horas de
viagem. E no meio de tanta dificuldade, eu me diverti a valer e me impressionei
com a capacidade criativa de Paulo Sérgio.
A
narrativa que ele empregava vinha enriquecida de bordões, ou como entendo,
dizeres, ditados comuns que marcam as personalidades ou as cenas.
Tenho
pra mim que depois dos fraseados da mamãe (“pra mim, tanto faz José como
Cazuza”) são do Paulo Sérgio as mais exploradas intervenções verbais que
utilizo nas minhas vulgares tagarelices, inclusive me utilizando dos traquejos,
trejeitos e falsetes consagrados por ele. Naquele final de 1985 conheci um
artista. Autêntico, singelo, cândido elaborador de alegrias.
Mas
quando que o mundo roda como a gente pensa, né. Deu-se que seguimos o nosso
caminho nos divertindo em acampamentos de mineração em Rondônia e Amapá ou
pelas ruas da Pedreira, como sábado passado. Nos valendo apenas e
orgulhosamente da permitida arte de viver. Experimentando os petiscos, debaixo
dum toró daqueles.
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