sábado, 3 de maio de 2025

crônica da semana - PS em alto relevo

 Em alto relevo

O sábado passado foi um dia belemense raiz. Amanheceu nublado, daquele jeito doce de não parar ninguém pelos caminhos. Sugeriu, entretanto, uma sombrinha sempre à mão porque daqui pra’li o pampeiro poderia arriar, como de fato se deu já do meio-dia pra tarde. Saí com a família para experimentar as ‘comidas de buteco’ oferecidas ali pelo estirão da Marquês de Herval. E o que se deu neste passeio foi muito além do que previa a minha intenção gastronômica. Aconteceu o reencontro, a reaproximação histórica, a reconstrução do ambiente, a busca por personagens emblemáticos... Tudo já debaixo dum toró daqueles.

O combinado era a apreciação dos petiscos em companhia do meu amigo Paulo, residente e domiciliado no bairro da Cremação e que surgiu na minha vida lá pelas brenhas escondidas de Rondônia. Nos conhecemos em 1985, quando ele chegou para trabalhar na mesma empresa de mineração que eu trabalhava há algum tempo. E veio para me tirar de um aperreio. Me sucedeu numa campanha que dava era medo. Ninguém queria aquela missão. Era realizada longe pacas da sede, para se chegar no acampamento base era um estirão de doer, com as tralhas nas costas, cruzando com rastros de bichos grandes, acompanhado de macacos pequenos, mas algo hostis e carapanãs da maleita ávidos de sangue sem respeitar  a luz do dia. O trabalho era barra pesadíssima. Fase pioneira da pesquisa. Mapeamento. O dia todo andando dentro de igarapés, almoço sempre um engana fome no meio da mata, longuíssimas caminhadas sem perceber a luz do sol. Somente a cobertura verde da floresta e o assombro do esturro de onça pra tudo quanto era lado e às vezes bem perto da gente. Comunicação com o mundo só por rádio. E muito ruim. Passei uma semana encarando os desafios da genuína hiléia, até que, graças ao bom pai, Sérgio chegou para me substituir no acampamento e também, para assumir um papel fundamental no meu futuro.

Ficamos muito próximos. Quando nos conhecemos, era perto do Natal. Ele entrou pro campo, fez um período nas campanhas de mapeamento e eu fiquei na sede. Depois de um tempo, veio passar o Natal com a gente. Foi aí que rolou a química. Eu achei aquele cara espetacular. De um dom para observar, captar detalhes de comportamento, sestros ou costumes nas pessoas que depois reproduzia com arte própria e de forma extremamente graciosa. Não digo que era um imitador. Acho que fazia releituras, reconstruía modos e jeitos, montava cenas, redesenhava fatos, em alto relevo. Tinha um acervo de personagens ligados à infância na Cremação que recriava, que reinstalava no contexto em que vivíamos lá em Rondônia. Ele me apresentou estes personagens na viagem que fizemos da sede da mineração para Porto Velho, por ocasião de nossa folga de Natal. O ônibus, um trambolho. A estrada um atoleiro só. Aqui, ali descíamos para empurrar a lata velha. Uma distância de pouco mais de 100 km, resultou em mais de 6 horas de viagem. E no meio de tanta dificuldade, eu me diverti a valer e me impressionei com a capacidade criativa de Paulo Sérgio.

A narrativa que ele empregava vinha enriquecida de bordões, ou como entendo, dizeres, ditados comuns que marcam as personalidades ou as cenas.

Tenho pra mim que depois dos fraseados da mamãe (“pra mim, tanto faz José como Cazuza”) são do Paulo Sérgio as mais exploradas intervenções verbais que utilizo nas minhas vulgares tagarelices, inclusive me utilizando dos traquejos, trejeitos e falsetes consagrados por ele. Naquele final de 1985 conheci um artista. Autêntico, singelo, cândido elaborador de alegrias.

Mas quando que o mundo roda como a gente pensa, né. Deu-se que seguimos o nosso caminho nos divertindo em acampamentos de mineração em Rondônia e Amapá ou pelas ruas da Pedreira, como sábado passado. Nos valendo apenas e orgulhosamente da permitida arte de viver. Experimentando os petiscos, debaixo dum toró daqueles.

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