sábado, 14 de junho de 2025

crônica da semana - cabeça branca

 Cabeça branca

Acompanhava a setinha do painel trazendo o elevador para o térreo. Tinha uma consulta no décimo andar. Demora. Nisso, dois jovens se posicionam perto de mim. Um deles se adianta, vai até o quadro de aviso instalado na parede, faz um gesto de desdém, volta-se em minha direção e me confronta querendo saber a minha opinião sobre aquele panfleto. Nem tinha notado. Estava na mira era da minha consulta lá no décimo andar. Será que o médico já chegou? Tem muita gente na espera? O que é que eu tenho, meu Deus? O que deu no exame? Não estavam na minha conta, outras preocupações.

Tratava-se de um comunicado alertando sobre o bullyng. Exibia um desenho representando uma criança em sofrimento e um texto reproduzindo argumentos que definem este tipo de prática como crime. Pois então. O rapaz se dirigiu a mim querendo saber o que eu achava da mensagem. Voltei o olhar à parede, fiz um gesto com a cabeça de concordar com o conteúdo e respondi a ele, assim, sem muita profundidade que eu estava alinhado com a idéia expressa ali. Mas cuide, não, que foi um choque para o camarada. Esperava outra resposta. Não se conformou e partiu para a fase de argumentação. O elevador demorou no sexto andar. Descendo.

Voltou-se para mim demonstrando inconformismo e declarou a convicção de que, ao me ver ali, a espera de uma consulta médica, cabeça branca, com algumas experiências vividas, esperaria uma opinião das antigas, conservadora, no rumo de admitir que este tema hoje é tratado com mimimi, como afetação de ‘gente que só leva as coisas pra esse lado’. Pretendia ouvir de mim que no meu tempo essas coisas, essas encarnações se resolviam era no soco. E me pressionou para uma guinada de opinião sugerindo que eu confessasse que fazia isso mesmo no meu tempo de moleque. Partia era pra cima do garoto que mexesse comigo. Outro baque. Reagi, agora com mais energia. Confirmei até com uma legenda temperamental que carrego comigo há anos: Nunca levei e nunca dei um soco em ninguém, na minha vida. Meu revide sempre foi com palavras. Nessa hora, o elevador desengatou do sexto e até o outro rapaz se indignou. Nunca brigou com ninguém? Reconheci a decepção no rosto deles. Jamais contariam encontrar na fila do elevador, uma pessoa da antiga que não confirmasse os modelos midiáticos atuais que eles admitem, de coroas do bem. Infelizmente para eles, eu não era o tiozinho que reproduz mensagens de ódio no zap, aquele que veste uma camisa amarela e sai por aí rezando pra pneu, ou aquele que se estatela em frente ao para-brisa de um caminhão aguardando atenção divina para a intervenção militar. E quando entramos no elevador, já com uma tensão instalada nos separando, ainda ouvi resmungos de insatisfação por causa da mira equivocada que fizeram em mim. Como pode? Cabeça branca?

Sobrou pra mim que subi para minha consulta com aquele peso da geração nas minhas costas. Outra dor pra cuidar.

Eram jovens. Brancos. Pele bem cuidada, roupas de marca. Frequentavam prédios comerciais e não era pra atendimento médico. Por certo, e esta é uma interpretação a partir destes traços que identifiquei neles, e é bem provável que esteja cravada de verdade; na certa, os caras têm a vivência circunscrita a uma bolha social que valida práticas cotidianas que negam conflitos graves como o bullyng. Imagino que dividem o tempo com tios de cabeça branca que anarquizam as políticas de inclusão, preferem ambientes selecionados da elite, para se divertirem a custa da humilhação de outros, e, tudo indica, gostam de resolver conflitos no soco. Não senti remorsos por frustrá-los, por isso a tensão, enquanto o elevador subia. Não confio.

A minha consulta deu tudo certo. Exames no jeito, medicação fazendo efeito. Tudo nos conformes, exceto um amofinamento, um banzo repentino, este fardo pra carregar, esta dor nas costas provocada pela pecha imputada à minha geração cabeça branca.

  

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