Cabeça branca
Acompanhava
a setinha do painel trazendo o elevador para o térreo. Tinha uma consulta no
décimo andar. Demora. Nisso, dois jovens se posicionam perto de mim. Um deles
se adianta, vai até o quadro de aviso instalado na parede, faz um gesto de
desdém, volta-se em minha direção e me confronta querendo saber a minha opinião
sobre aquele panfleto. Nem tinha notado. Estava na mira era da minha consulta
lá no décimo andar. Será que o médico já chegou? Tem muita gente na espera? O
que é que eu tenho, meu Deus? O que deu no exame? Não estavam na minha conta,
outras preocupações.
Tratava-se
de um comunicado alertando sobre o bullyng. Exibia um desenho representando uma
criança em sofrimento e um texto reproduzindo argumentos que definem este tipo
de prática como crime. Pois então. O rapaz se dirigiu a mim querendo saber o
que eu achava da mensagem. Voltei o olhar à parede, fiz um gesto com a cabeça
de concordar com o conteúdo e respondi a ele, assim, sem muita profundidade que
eu estava alinhado com a idéia expressa ali. Mas cuide, não, que foi um choque
para o camarada. Esperava outra resposta. Não se conformou e partiu para a fase
de argumentação. O elevador demorou no sexto andar. Descendo.
Voltou-se
para mim demonstrando inconformismo e declarou a convicção de que, ao me ver
ali, a espera de uma consulta médica, cabeça branca, com algumas experiências
vividas, esperaria uma opinião das antigas, conservadora, no rumo de admitir
que este tema hoje é tratado com mimimi, como afetação de ‘gente que só leva as
coisas pra esse lado’. Pretendia ouvir de mim que no meu tempo essas coisas, essas
encarnações se resolviam era no soco. E me pressionou para uma guinada de
opinião sugerindo que eu confessasse que fazia isso mesmo no meu tempo de
moleque. Partia era pra cima do garoto que mexesse comigo. Outro baque. Reagi,
agora com mais energia. Confirmei até com uma legenda temperamental que carrego
comigo há anos: Nunca levei e nunca dei um soco em ninguém, na minha vida. Meu
revide sempre foi com palavras. Nessa hora, o elevador desengatou do sexto e
até o outro rapaz se indignou. Nunca brigou com ninguém? Reconheci a decepção
no rosto deles. Jamais contariam encontrar na fila do elevador, uma pessoa da
antiga que não confirmasse os modelos midiáticos atuais que eles admitem, de
coroas do bem. Infelizmente para eles, eu não era o tiozinho que reproduz
mensagens de ódio no zap, aquele que veste uma camisa amarela e sai por aí
rezando pra pneu, ou aquele que se estatela em frente ao para-brisa de um
caminhão aguardando atenção divina para a intervenção militar. E quando
entramos no elevador, já com uma tensão instalada nos separando, ainda ouvi resmungos
de insatisfação por causa da mira equivocada que fizeram em mim. Como pode?
Cabeça branca?
Sobrou
pra mim que subi para minha consulta com aquele peso da geração nas minhas
costas. Outra dor pra cuidar.
Eram
jovens. Brancos. Pele bem cuidada, roupas de marca. Frequentavam prédios
comerciais e não era pra atendimento médico. Por certo, e esta é uma
interpretação a partir destes traços que identifiquei neles, e é bem provável
que esteja cravada de verdade; na certa, os caras têm a vivência circunscrita a
uma bolha social que valida práticas cotidianas que negam conflitos graves como
o bullyng. Imagino que dividem o tempo com tios de cabeça branca que anarquizam
as políticas de inclusão, preferem ambientes selecionados da elite, para se
divertirem a custa da humilhação de outros, e, tudo indica, gostam de resolver
conflitos no soco. Não senti remorsos por frustrá-los, por isso a tensão,
enquanto o elevador subia. Não confio.
A
minha consulta deu tudo certo. Exames no jeito, medicação fazendo efeito. Tudo
nos conformes, exceto um amofinamento, um banzo repentino, este fardo pra
carregar, esta dor nas costas provocada pela pecha imputada à minha geração
cabeça branca.
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