Lilás
A noite
estava fria, a chuva havia estimulado o recolhimento e as preces. Aos pés da
Virgem Santíssima eu rezava ajoelhada com um fervor desmedido (salve Rainha Mãe
de Deus/És Senhora nossa mãe/Ó mãe clemente/ó mãe piedosa/Doce Virgem Maria).
Pedia, desesperadamente, para que a santa o trouxesse de volta. Sentia saudades
e meu peito amargava a solidão e a certeza mórbida de ainda amá-lo. Benzi-me,
ergui-me e apeguei-me às lembranças.
O
peso da idade já não me machucava tanto. Acendi uma vela para que a sala e o
quarto, com a licença da porta entreaberta, ficassem igualmente iluminados. A
outra, posicionei à entrada da casa como se a chama houvesse por esperar alguém. Nessa época de chuva, a noite
chegava mais cedo que o comum, avalizada pelos algodoados de nuvens plúmbeas e
ameaçadoras: era o tempo apressando-se em escuridão.
Sob
a dança vacilante do lume que escapava da vela, percorri um espaço que conhecia
bem, um traçado decorado ao longo de tantos anos. E me dispus à frente de uma
mobília velha. Tateei as mãos e fui agrupando os objetos de toucador que pude
encontrar. Uma cápsula de baton oxidada, a caixinha de rouge que ganhei da
minha filha no Natal passado, e uns frascos de extratos artesanais que eu mesma
produzi.
Olhei-me
no espelho e a penumbra fantasiou um rosto ante o meu. Um rosto ainda admirável
de uma mulher madura que não precisa de nenhum cosmético para sorrir. Com um
gesto decidido lancei aquela tímida coleção de cosméticos para longe e sorri
para a minha louca paixão. Não mais o veria. Em fotografias, nos filmes
descoloridos de minhas lágrimas, tampouco nos reflexos impiedosos do tempo. Não
mais o quereria. Despejaria a minha angústia, agora, sobre a terra confidente.
Inadvertidamente,
corri. Não posso justificar a urgência daquele ato, já que tudo era estático e
inabalável naquele ermo. Mas algo me guiava para fora da casa com um quê de
razão e pressa. Era uma réstia volátil de luz que suspirava em um horizonte lilás.
(Teu nome/com gizes coloridos/escreverei/lilases vezes/na lousa desbotada/de
minha memória...este é o meu castigo). A luz se fechou num poema e a vida ainda
tentou me acudir no farfalhar aromático que o vento imprimia à roseira lá ao pé
do alpendre. Aproximei-me e pus-me a remexer o solo junto à plantinha
solidária. Não encontrei nada. Só folhas secas, vermes escarlates, argilas sombrias,
gris ilusões, dor e umidade. A chuva passara, mas meu pranto...Não. Não posso
esquecê-lo (teu nome...lilases vezes...na minha memória).
Deixei
o fio de luz, os vermes encarnados, a rosa graciosa e o alpendre úmido para
trás e reduzi-me ao sofrimento. Volvi ao espelho. Agora sem sorriso ou coragem.
Só os cabelos prateados e reclamos débeis respondiam aos meus olhos. Injusto e
infame este delator. Espelho, espelho meu. Dane-se. Apaguei a vela e fechei a
porta do quarto.
Agasalhei
os pés com meias grossas de bordados joviais; vesti-me com casacos bem
cortados, ornados com ilhoses alegres e passadores anilhados; soltei os
cabelos, sem charme, sem coquete, sem civilidade sobre o colo ressentido ;
aproximei a cadeira da janela e busquei a luz de modos que, o que restou de
clarão na sala, me proporcionasse uma leitura reparadora. Dane-se o espelho.
Dane-se essa gente rude e fria sem nome...Danem-se a aurora e os arrebóis. Danem-se
os trigais, os girassóis e tudo o que seja leve e colorido.
A
ti, te consumi em todos os nomes impuros e sedutores que consegui ler naquela
noite. E te li tantas e lilases vezes que, sem fôlego e exausta de tanto que te
amei, morri feliz sob o fulgor indulgente de uma vela amiga.
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