sexta-feira, 19 de abril de 2013

crônica da semana - seu fulano


Fulano de Tal dos Anzóis Pereira
Dizer que ele morava na árvore, não tem sustentação. A relação com aquela mangueira não encontrava abrigo no animus que o domicílio reivindica. Não havia ali, nem o espírito, nem os teréns estimados de um lar. Diria que ele orbitava aquela árvore. Zanzava ao seu redor com um certo alheamento, penduricalhos úteis à sobrevivência e um apego dissimulado.
Era um habitante eventual da Marquês, o seu Fulano de Tal dos Anzóis Pereira. A mangueira ficava na frente da taberna do seu Paulo, que era taberneiro, mas tinha cara de coronel da linha dura. Aviava quartos de grãos, conservas e ovos ao meio-dia, medidas mínimas de óleo e vivia sem muitos atropelos, e sem embaraços, com duas mulheres das quais recebia disciplinadamente, amor e as vênias conjugais.
Vincos de espera e paciência marcavam aquele rosto. Volteava a vida à sombra da mangueira, seu Fulano. Acomodava-se em um dos bancos ali dispostos, pensava alto, e bebia água de uma torneira externa da taberna do seu Paulo. Havia também cicatrizes no coração, ele me dizia. Eu não entendia muito bem o que queria dizer com ‘cicatrizes no coração’, sei que tinha a lembrança impressa, de um golpe no meu joelho direito, um teba d’um talho que ganhei ainda em terras acreanas. Pra mim aquele desenho, sim, era uma cicatriz. Longe de ser um adorno, era uma recordação de dor. Como seria uma cicatriz no coração?
Minha mãe ralhava: “agora tu ficas de conversa com este seu Fulano de Tal dos Anzóis Pereira, que ninguém sabe de que buraco saiu. Tem muita graça! Passa, vai te assear, te entalca e te senta na porta da rua, ai de ti que atravesses”.
Do outro lado da rua, ele abarcava a árvore rainha da Marquês, mastigando um pedacinho de qualquer coisa ganhada, ou um naco de generosidade que lhe alentavam a fome.
Mas não tinha vencimento, era só a mamãe sentar na Vigorelli, e iniciar o cerzido fino das flores de plástico, que eu fugia pra lá pra sombra do seu Paulo, o taberneiro que tinha duas mulheres e a cara de mau.
Logo que puxava conversa com seu Fulano. Ele me contava das pescarias que fizera margeando o flanco norte do Amazonas; narrava com extremada fidelidade, como havia enfrentado uma onça nas matas de altitude e de ramagens ralas da Tumucumaque; descrevia tudo direitinho, com detalhes, a forma e o jeito que abateu uma sucuri, no furo do  Urucuricaia e depois ‘descoirou’ e vendeu baratinho a pele para um escandinavo bêbado que por ali passava pirangando peças exóticas. Me colocava num pé e noutro quando revelava que tinha, escondidos, em algum remanso do Guamá, uns cinquenta muiraquitãs, tingidos no mais puro verde do jade. Apontava pequenas nódoas no peito magro e que dizia serem elas, marcas deixadas pelo veneno das flechadas que levou enquanto regateava no alto Iriri. Falava sempre de uma guerra distante, em terras áridas e pedregosas, reclamava-se arrependido por ter matado gentes e sonhos. Tinha remorsos. Mas, rapidamente, se recompunha e se gabava de ser um exímio atirador. “derrubei uns quantos”, arrematava. Aí eu ficava com medo, corria pra taberna do seu Paulo e o deixava  falando só.
Certa vez perguntei sobre a ferida no coração. Seu Fulano de Tal dos Anzóis Pereira, volteou a mangueira, ruminou frustrações, soluçou abandonos, maldisse migalhas de saudades que ainda tinha de um certo alguém, desenhou, não sem um pouco de pesar, um rumo no chão úmido entre as raízes da árvore altaneira, e seguiu em busca de contentamentos outros silenciosos para a vida. Não mais voltou a orbitar a mangueira.
Hoje eu sei o que ele quis dizer com ‘cicatrizes no coração’.

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