sexta-feira, 22 de julho de 2011

crônica da semana - Dormir com couro quente


Mas parece uma coisa! Uma perseguição! É só estiar um pouquinho e pronto, o povo ateia fogo no mundo. E olha que o estio este ano está um tanto estiolado. Em pleno julho o tempo ainda amanhece nublado, a roupa passa o dia no varal e nem seca direito, e a chuva, quando se anuncia, chega mesmo.
A coisa é certa: fez um solzinho, o fumacio vem junto e traz aquela fedentina de arder o nariz. Por onde a gente se vira tem um foguinho perturbando.
(Fico pensando...Será que isso é genético? Tá na origem da nossa existência? É cultural, queimar?).
O fogo, antes de ser essa coisa abominável, é o grande herói da humanidade. O grande provedor de vidas. Só estamos aqui por causa dele. Quando o homem conseguiu atritar dois pauzinhos e produzir uma triscazinha de chama, estava garantindo a segurança, a alimentação, o abrigo, a luz noturna e a proteção para um sono reparador (antes da descoberta do fogo, sob a ameaça constante de predadores, o homem primitivo não dormia que prestasse. Tinha que estar sempre atento aos perigos da noite. O fogo veio para afastar o agressor e permitir o sonho).
Da mesma forma que ‘ergue’, o fogo ‘destrói coisas belas’. Massas incandescentes que se movimentam no interior da Terra, geram calor, definem o deslocamento dos continentes, estabilizam/desestabilizam o planeta.
A chama azulada do fogão representa conforto e comodidade, o sopro abrasador do mambembe é diversão (e tensão). O rubor de fornos potentes é energia transformadora. Fogo-fátuo é crença e medo. O fogo da paixão (é o bom que) dói e nem se sente (‘arde sem se ver’). Luzes pipocando lá no céu são traduções químicas para a saudade, no último dia de arraial. O fogo colorido é a bênção da Virgem.
Mas quando é banalizado no ato irresponsável de dar fim às folhas secas no terreiro, rapidola institui-se a subversão. O pecado.
Certa vez, em Rondônia, tive um trabalhão pra construir um acampamento para a minha equipe de pesquisa. Eram vários barracos de palha em estilo até inovador: com pindobas de cores diferentes a indicar fachadas e teto (as verdes, mais maduras, usamos para as paredes até meia-altura. As amarelinhas, mais novas, as fizemos de telhado, com capote simétrico e bem amarrado. Ficou um mimo, o dégradé do meu acampamento). A cozinha, erguemos em construção separada, nos limites do descampado, já na fronteira com a mata.
Acontece que o acampamento era vizinho à vila residencial da mineração que eu trabalhava. E moleque, já viu, quando não tem o que fazer, procura arte.
Foi mais ou menos por essa época. Estiagem, altas temperaturas. Os pequenos da vila deram de brincar ali pelos arredores do acampamento (que estava, literalmente, novinho em ‘folhas’). Numa daquelas traquinagens que não se explica, produziram uma chama na mata rasteira. Aí, já era. A mata alta também ardeu. E o fogo veio em direção a nossa cozinha. Coisa assustadora, o fogo na mata. As chamas vão lá em cima. Árvores explodem. A cortina de fumaça é gigantesca. Conseguimos salvar nossos barracos. Traçamos um aceiro e pusemos fogo ao contrário. Mas foi por um triz que nosso acampamento não foi tragado. Os moleques foram dormir com o couro quente, depois de uma conversa com os pais e eu aprendi que temos que respeitar o poder das chamas.
A peraltice dos meninos, até relevo. Crianças não percebem a maldade das ações. Adulto, sim. Aquele que junta as folhas secas e queima no quintal de casa ou aquele que derruba imensas áreas de florestas e ateia fogo, estão no mesmo patamar de culpa. Maltratam o planeta e lacrimejam meus olhos.

Um comentário:

  1. oi sodré, a minha rinite sofre com essa fumaça toda. e o planeta mais ainda. as pessoas só percebem que estão fazendo mal quando o mal as atinge. enquanto isso não acontece, elas continuam matando o planeta.

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