Diz que sim, diz que não
Naquele
dia, se aperreou, mas não perdeu a compostura. Entre nós, o Acir era o mais
refinado. Tínhamos aquele jeito dele de ser como o de um fidalgo da Sacramenta.
Era um erudito dos subúrbios.
Tenho
dito: a arte, ela se manifesta independente dos grilhões em que esteja
encerrada. Alheia às caras feias que a intimidam. Ela vem. Infiltra-se.
Imposta-se. Mesmo que seja permeando interstícios, rompendo lacres.
Houve
de, em plena vigência da Ditadura, a escola Técnica Federal do Pará ser, para
mim, exemplo deste calor intenso que a arte emana. Lá, sob os mais aviltantes
dos pesos autoritários, a arte se fazia. Libertando. Aquecendo a alma.
Uma
das fontes mais ativas deste calor era o teatro. Comandado pelo professor
Cláudio Barradas, o grupo da Escola foi responsável por momentos de grandes
iluminações.
Recordo
muito nitidamente, o conflito a que fomos estimulados administrar dentro da
gente, quando as opções “Diz que sim,”; “Diz que não” martelavam nossa
consciência, culminando a montagem sobre enredo de Bertold Becht.
Assistir
àquela peça marcou a história da gente. Éramos alunos de Mineração. Nos
batíamos com o sinal das funções trigonométricas, com o traço raso, com o lápis
certo, com as semi retas flutuando no espaço, em aulas de Desenho Técnico; mas
éramos atentos, também, à subjetividade,
à alegoria e à livre escolha brechtiana, entre as paredes do teatro Margarida Schivasappa.
Não
tinha jeito. Quanto mais a pressão da Ditadura agia, mais a gente resistia
(tecnicamente, a terceira lei newtoniana), com a mesma intensidade e sentido
oposto.
Éramos
uma turminha que transitava criticamente entre os conceitos que formatavam a
Educação naquela época. E onde tinha uma brecha (brechtiana), entrávamos e
desenhávamos a resistência.
Havia
uma programação anual dedicada às criações artísticas, no calendário da Escola.
O “Tecnartes”. Uma semana dedicada a apresentações de música, teatro, poesia,
dança. Era um evento pleno. Naqueles dias o sistema colapsava e se quedava à franca
insubordinação.
Aconteceu
que fomos, o nosso grupo de Mineração, participar de um papo com o poeta Max
Martins.
Após
discorrer sobre o processo de criação e depois de declamar versos de ‘O Risco
Subscrito’, o poeta convidou a nós da plateia, para mostrarmos nossas poesias.
E o Acir, que era do nosso grupo, o mais esteta, o mais refinado, clássico, foi
lá. Subiu no palco e esmerando-se em dramaticidade, iniciou: “Como soldado/Afogado
em si/Solitário de sóis/vagando a esmo/Nos escapares do vento/Vens... Como
soldado...Como soldado...
E
de repente ele, que era o nosso maior declamador, esqueceu os versos. Erguia os
punhos, atritava os dedos no alto. Fitava Max com olhar trágico. Buscava que
alguém soprasse lá do fundo onde se acomodava nosso grupo... E nada. Não perdeu
a postura. Voltou-se para a plateia e inventou na hora: “Como soldado/vazio de
ser/Semente servil/Mãos manchadas de sangue/Covardemente/ Vens.” Encerrou com
um repúdio à Ditadura.
Foi
aplaudido de pé. Ganhou um livro do Max e nós, ganhamos a certeza de que
rompemos lacres.
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