sábado, 9 de abril de 2016

crônica da semana - senhor cidadão

Senhor cidadão
A figura do senhor cidadão é mais nítida para mim na percepção que eu tinha da rotina de meu tio, quando morei na casa dele um tempo, em meados da década de 70. E aquela batida diária ficou na minha cabeça, na minha direção, ou como se diz hoje, no meu foco.
Constava o dia do meu tio, em acordar cedo, tomar um café frugal, dirigir-se ao ponto do ônibus, seguir para o trabalho. Até aí, tudo bem, nada diferente de hoje. Ocorre que atualmente, ninguém vem almoçar em casa e depois volta pro trabalho. Ele vinha e era uma cena reverente a chegada dele, ao meio-dia. Dava-se um rito. A troca da camisa, os sapatos pelos chinelos, a postura na cabeceira da mesa, a exigência da presença de todos à mesa, a partilha do cumê sob os olhares zelosos dele. A sopa, bem sortida de verduras e legumes, primeiro.
Ao final do expediente, voltava pra casa de tardezinha, já trazendo o pão.
Este roteiro é que persigo cumprir. Até hoje não consegui ativar o senhor cidadão que existe em mim. Me falta o exercício da tradição. Uma atividade profissional que me levou aos sertões e depois, a travessias diárias da Guajará me distanciam dos costumes. Mas ainda não desisti. E olha, venho me achegando.Tô perto.
Falei aqui, tempos atrás, que tinha um sonho de trabalhar na Presidente Vargas e largar do trabalho toda tarde quando a sirene dos estivadores tocasse. Ainda não trabalho na grande avenida, mas já faço uso do itinerário comum aos trabalhadores do centro. Temos uma diferençazinha de local e horário, mas já tenho história pra contar.
Meu tio quando chegava do trabalho sempre tinha uma história. Demorava-se um pouco numa prosa, ao pé do alpendre antes de entrar em casa, com a família, com os vizinhos. Disparava novidades. “Hoje a Carrapatoso lançou nova promoção de calçados. Não deu pra quem quis”. Às vezes, chegava falando inglês que ele aprendia num livro capa vermelha como autodidata, e que folheava no ônibus: “how do you do?”.
Agora, fazendo meu trajeto do centro para o meu bairro, a primeira surpresa foi constatar que na Pedreira tem engarrafamento. A outra, foi fazer a conta batida e verificar que já morei em quase todas as ruas que cortam a Pedro Miranda. Com o trânsito lento, no caminho de casa, vou mapeando meus antigos lares (na ordem centro-bairro): Chaco, Vileta, Timbó, Estrela, Mauriti, Barão, Angustura, Lomas, Pirajá e Passagem D’outel. Em todas essas ruas arriei minhas traias nesses anos todos de Pedreira. E sempre por ali, abeirando, nos limites da Marquês e da Everdosa, não mais além.

Em casa, não tenho a disciplina do meu tio. Os sapatos vão para qualquer canto, mas faço questão de juntar a família, partilhar o cumê e contar uma história aqui outra ali, das minhas antigas moradas, do igarapé do Galo, do meu sonho de senhor cidadão quase se realizando. Na semana quem vem, vou aderir ao costume de trazer o pão, e valorizar a lembrança do tempo em que a gente comprava sapato na Carrapatoso, que meu tio vinha almoçar em casa, trocava a camisa, os sapatos pelos chinelos e nos olhava com um olhar zeloso.

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