Branca
Mas olha o que foste revirar, heim, Esse Menino, olha a que te abalaste: cavucar aquelas tardes que se arrastavam cáusticas e quentes, misturando cheiros. De caju, de fumo, de gravetinho tição. Tardes recendendo inocentes desejos. Exalando perdição. Aquelas tardes de rádio de pilha propagando cantigas de amor, rente ao batente da Vigorelli. Tarde de cerzidos e alinhavos. O que foste me trazer de volta, Esse Menino. Pão quentinho e café de cócoras na porta olhando pro tempo. E por uns momentos, olhos sequiosos brechando obras intocáveis, tesouros preciosos, e até mesmo, belezas impuras, pelos chagões e vielas. O que me tornaste a apreciar. A esquina da Lomas e os faróis dos carros luzindo na noite... E para completar, Esse Menino, me vens com aqueles passeios de velocípede Bandeirantes, levando a Branca da dona Odaléia na garupa. Não era a única garota loira da rua, não. Uma outra havia, Esse Menino, mas aquela vizinha era a bonequinha de ouro que levavas com gosto e zelo a conhecer as maravilhas dos frondosos cajueiros alinhados no estirão do cercado de estacas cruas. E era uma viagem longa, cheia de suores nervosos e de medos justificáveis que terminava docemente ao pé da cerca. Que terminava em longos e delituosos arrepios, longos e deliciosos risos e em segredos de contentamento guardados eternamente.
Como longo era, também, Esse Menino, aquele caminho da marcha que começava lá pras bandas do Chaco, passava pelo Paraíso e se dispersava na frente da igreja. Como era longo aquele caminho! Como era descrente a tua marcha e quão desagradável era aquele cerzido que a mãe fez na farda, e que ficava bem à vista do pelotão que honrava a pátria com todo garbo, com todo entusiasmo, e que te seguia, e que, indiscretamente, se divertia a valer, avacalhando aquele rasgadinho da tua roupa cosido num pedalar rápido da Vigorelli.
Mas deixa, ora, em compensação, era branca a tua camisa de renda. Não era a única da rua. Outras haviam. Mas aquela camisa, naquele aniversário te fez bonito, garboso, e tão e tanto, que ficaste parecendo filho de major. Empoado, chuviscado de extrato possante trás-da-orelha, calça de tergal vincada, filme de gumex no cabelo. Tinhas um cerzido ridículo no dorso da tua camisa da aula. Mas a tua camisa de festa rendada te fazia bonito. E Branca te via, não te tirava os olhos, te arrodeava, te mexia, te beliscava. Te oferecia brigadeiro a toda hora. Insistia. Chega até caiu um pouquinho do doce na tua camisa, bem aqui, do lado certo do coração. A camisa de renda...A bonequinha doirada, filha da dona Odaléia queria, Esse Menino. Queria porque queria, naquela festa de aniversário, dar uma volta na garupa do teu velocípede, até bem pra’li, na fronteira de estacas ferpadas, dos quintais. Queria te segredar intenções e te prometer uma paixão para sempre.
Branca, bela Branca. E nem é tão longe aquela pisada do Chaco até a Barão. Mas naquele tempo, Esse Menino, na marcha, puxando pelotão dos uniformizados. Com uma responsabilidade pesando no dorso rasgadinho. Sem luvas, sem laços verde-amarelos, sem patrióticos cata-ventos. Naquele tempo em que os rumores doíam mais que a realidade porque eram densos, vis, torturantes; naquele tempo em que os soldados valentes e gentis exibiam a sola dos coturnos na nossa cara, naquele tempo, aquele era um caminho que parecia não acabar nunca.
Caminhos indeléveis, Esse Menino, como a lembrança desbragada daquelas tardes. Daquele estirão percorrido pelo teu velocípede, que jamais se esgota na memória (trazendo atracada em ti, a bela Branca da dona Odaléia).