quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Morte em La Paz

  Capítulo I                                                                            

La Paz, esta época do ano, é uma cidade fantasma. O frio é intenso e esconde as pessoas. Confina o boliviano ao aconchego do lar aquecido. Os mais bem de vida se resolvem freqüentando restaurantes que oferecem ambientes com isolamento térmico e pubs especializados em bebidas quentes e caras.
Ele reza na cartilha do povo. Encerra-se em seu quarto solitário, confortável, no hotel Cuzco, ao largo da praça da Independência, donde divisa o magnífico monumento de mármore e cobre erguido em homenagem a Simon Bolivar. Toma chá olhando pela janela envidraçada e espera o tempo passar.
Sua missão ali está acabada. Reuniu-se com os geólogos da subsidiária boliviana e com empresários do Chile e Peru. Fechou contrato para uma gigantesca campanha de pesquisa geológica que vai encampar uma faixa colossal de terra, com os trabalhos se estendendo desde o norte do Chile até o extremo oriental do Peru, já na Amazônia peruana. O alvo é uma estrutura  geológica enriquecida de cobre, que ele, diligente, batizou de green belt of Simon, em homenagem ao libertador. 
Está pronto para voltar a São Paulo, depois de um mês de visitas às frentes pioneiras de pesquisas, caminhadas exploradoras à borda do altiplano e acompanhamento de lavras em minas de cobre da região.
Abre uma garrafa de uísque importado da distante Escócia. Prepara uma dose pacientemente. Com gelo. Uma, duas pedras. Tamborila os dedos mergulhados entre as pedras de gelo, acelerando o equilíbrio térmico. Brinda com o universo todo e entorna a dose de um único gole.
Ah, um otorrinolaringologista! Nariz arde, garganta arde. Respiração acelerada. Pouco ar. Uma, duas doses. O efeito de uma dose parece ser o efeito de toda a produção escocesa. Ar rarefeito. Altiplano. Como é que se vive num lugar deste, meu Deus?
Desvia o olhar para a mesinha junto à parede. O embornal de campo guarda displicente, nos bolsos externos, um papelote do alucinante pó e um saquinho da erva recheado de sementinhas, que ele ganhou dos nativos da encosta. Os índios recomendaram que se ele resolvesse realmente assumir a idéia de chegar a Guajará-Mirim, descendo os Andes, melhor era contar com esta ajudazinha.
Ele está decidido. Vai atravessar a portentosa cordilheira até a bacia do Prata. Dali, vai contornar a cabeceira do Guaporé, varar a floresta boliviana e alcançar Guajará-Mirim, do lado brasileiro, em no máximo, dez dias. Vai sacrificar preciosos dias de folga ao lado da mulher, em São Paulo, mas vai valer a pena. Paira sobre ele, o espírito aventureiro. É como se o obstinado personagem de García Márquez o abençoasse naquele objetivo. Queria viver, queria realizar o sonho indelével de José Arcádio Buendia e, descobrir o caminho que leva ao mar. Descobrir um sentido para a vida.
Vai rumo ao mar, ao rio-mar, pela ombreira da majestosa cadeia rochosa. Rumo ao mar externo. Não este mar doméstico que brota dos olhos apaixonados dos tocadores de charango, nas esquinas de La Paz. Não. 
Vai redimir a insepulta Macondo que fervilha inquietante, dentro dele. Vai à procura do perdão, da reconciliação com um amor antigo. Provar que ama. Quer renascer. Desenterrar-se de um mundo escuro de febres e pesadelos. Quer lançar-se à liberdade do mar. Precisa chegar ao horizonte infinito. Purificar-se nas águas do mar e navegar. Navegar.

2 comentários:

  1. Por indicação do Roger Normando já me apresentei à leitura deste primeiro capítulo de seu livro!

    Nem é preciso dizer que você "manda bem" nas letras!!

    Moro aqui em Porto Velho, por onde você parece ter andado.

    Coincidência: num trabalho que fiz para o Iphan - material para educação patrimonial e histórica - explorei bem a "notícia histórica" de que a entrada da Amazônia por muito tempo passou pelo Vale do Guaporé e pelas corredeiras do Madeira...

    É isso. Aguardarei o próximo capítulo.
    Um abraço

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  2. É isso aí Abel. Vamos aguardar cenas do próximo capítulo, mas já incluo, pelo conteúdo adaptado à modernização do continente, uma literatura ao melhor estilo latino, que o diga Márquez.
    Abraços,

    Roger Normando

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