sábado, 17 de setembro de 2011

crônica da semana- sonho meu

Mentirinha
Aqui, acolá, fico repetindo que não tenho ambição. É uma proposta antiga, assimilada na adolescência e difícil de desatarrachar da alma. Posso até datar o dia em que vislumbrei uma vida frugal. Foi após uma palestra que assisti do, agora padre salesiano, Chico sadek, em maio de 1980. Lembro como se fosse hoje. O título era “Ser pessoa”. O tema confrontava os valores pregados pela sociedade e tinha uma ilustração legal representando uma pessoa de cabeça pra baixo e outra, de cabeça pra cima. Uma simbolizando o ‘ter’ e outra, imprimindo o ‘ser’. Nos dizeres do Chico, aquela pessoa que estava de cabeça pra cima, era a pessoa que não tava nem aí pro ‘ter’, desdenhava dos apelos do mundo e preferia viver o universo feliz e solidário do ‘ser’. Peguei corda.
Os anos se passaram, a minha formação salesiana foi ganhando outras conformações (que penso eu, são mais coerentes com o meu status de pecador), mas continuei afinado com aquele credo de simplicidade (às vezes, segredo a vós, sustentado por desígnios outros que não os meus).
Coisa de dois ou três anos atrás, dei uma repaginada nos meus conceitos. Admiti que a prosa não pode ser assim, no torniquete, na míngua, tão radicalmente franciscana. Comecei a aceitar que uma ambiçãozinha nem faz tanto mal. É, aliás, necessária para compor melhor o espírito. Ajuda a romper alguns grilhões que ainda nos machucam os pulsos. Nas conversas com meus filhos até já me permito incentivá-los a cultivar, com prudência e zelo pela ética, um foco.
Assim, desconstruo meu próprio mito, para eles. Não fui esta santidade toda. Dei muita ratada e incontáveis vezes, me deixei encantar pelos apelos da vida mundana. Em mesa de bar, por exemplo, e em situaçõezinhas hedonistas outras que não posso falar, me aperreei bastante para garantir a sublimação.
Tive surtos de cobiça, também. Comichões. Vontades incontroláveis de ter coisas. Uma máquina de escrever, uma máquina fotográfica com fotômetro manual e um jogo de mágica. Exatamente nesta ordem. Que eu me lembre, estas foram as minhas principais demandas. Todas atendidas e com os testemunhos aqui em casa para comprovar. A máquina de datilografia, inclusive, tá com fita nova que alguém conseguiu pra mim, sei lá por onde.
(Ah, não tenho mais o jogo de mágica. Fiz questão de me desfazer dele, embora compusesse a fração mui querida do meu patrimônio. Fiz porque fiz para adquiri-lo. Foi um custo conquistá-lo. Havia sempre as prioridades. Entrava nas lojas de departamento, escolhia uma caixa robusta, com bastantes mágicas, colocava embaixo do braço e saía pelos corredores. Lá na frente encontrava Argelzinho, Amaranta Maria, cada um com um brinquedinho embaixo do braço. Não tinha vaga no orçamento para o meu joguinho. Voltava triste, parece menino besta e colocava a caixa na prateleira de volta. Até que os filhos cresceram, meu menino passou a fazer questão de ganhar sempre uma bola, em qualquer ocasião, ou seja, um presente barato. A menina se engraçou por pecinhas artesanais e sobrou uma graninha pra mim. Certo dia, enfim, comprei meu jogo de mágica.
Meu enorme entusiasmo se transformou, na mesma medida, em frustração, quando fui fazer minha apresentação pras crianças (era mais ou menos um sonho, sabe?). Inspirado no filme O Grande Truque, pus todo o meu talento em ação. A primeira a se desiludir foi a pequena Flaviana. “Tá ali, tio, a moeda, tá ali”. Me desmoralizou. Todos os outros segredos foram impiedosamente desmascarados pela garotada. E o meu joguinho sumiu, como por mágica, aqui de casa).
Aqui, acolá, fico repetindo que não tenho ambição. Mentirinha. Tenho sim.

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