sábado, 5 de fevereiro de 2011

Crônica da semana

Roda de carimbó

O vigoroso rufar dos tambores espalha-se pelos quatro cantos da praça e traz o som do carimbó aos nossos corações. É como se uma essência encantada se volatizasse sonora dali daqueles tambores e procurasse os escaninhos da nossa alma... flutuasse leve e entrecortasse o bambuzal, os monumentos de pedra, penetrasse em nossas fúteis realidades, nas nossas inertes abstrações...e fosse bater lá na nossa indiferença dominical. Então, ali, aninhada em um genezinho de prazer que a gente herdou dos pretos-índios-caboclos da floresta, nos guiasse até embaixo daquela mangueira onde o batuque e a cantoria reinam.

Ê, carimbó! Ê, carimbó! Carimbó é volúpia. É tradição. É cultura. É luxúria. É erudição. É arte. É festa. É beleza. Por vezes é só um convite pra entrar na roda. E sempre é mistério.







(A sereia surge radiante, do fundo das águas espelhadas do igarapé, ouviu o chamado dos tambores. Exibe-se com um elegante vestido branco enfeitado de fitas amarelas e vermelhas. O sorriso é insinuante e provocador. É quase rio de água friinha: gostoso, acolhedor, mas profundo e perigoso. Um sorriso fácil e algo ameaçador. Um sorriso de mãe d’água que domina. Que fascina. E faz rarear a razão; Os olhos rompem espaços. Impõem-se à luz. Acendem-se sedutores e apaixonantes. Aspergem devastadora sensualidade. Emanam, como o sol, luz e calor. Sugerem a vida; Os cabelos confundem-se com as ramagens mais densas e belas. São porções de floresta a confirmar a altivez da rainha. Sobre os cabelos, uma flor vermelha. Certeza de fertilidade. De energia renovadora. “Sereia, sereia rainha. Ah, que moça bonita, ê!”)

Ê carimbó! O carimbó é uma dança. É uma música. É um movimento cultural. É um sentimento. Uma vocação. Uma diversão. Um transe. Uma ilustração. Uma tradução coreografada do chamego ribeirinho. Um tambor feito de tronco de árvore. Curimbó. Um patrimônio imaterial. E carimbolando a gente vai. Porque o carimbó é festa. É um convite pra entrar na roda formada embaixo da mangueira, na Praça da República. E é sempre mistério.

(A sereia eleva-se sobre a terra. Os pés descalços deslizam rés o chão submisso. Ela rodopia, volteia, ondula, verga-se, relaxa-se faceira, recompõe-se decidida. E de novo se eleva. A flor no cabelo exala um perfume que inebria os homens. Alguns, já subjugados, arvoram-se a cortejar a rainha. Flanam, exibem-se em passos ousados, salientes. Suplicam olhares, sorrisos. Ela os devora com os olhos, um a um. E os faz seus súditos. Os deixa indigentes, pedintes valdevinos, dependentes de amor, dança e música. “Sereia, sereia rainha. Ah, que moça bonita, ê!”).



 

E os tambores em ritmos lancinantes, aflitos, regendo a celebração. Solos de percussão. Corpos excitados. Os tambores falam, cantam, rezam. Alucinação e êxtase. Sereia, sereia. Contágio, interação. Vontade incontrolável. Batida discreta de pé no chão. Palminhas acanhadas. E a retórica dos tambores, definitivamente, indefensável. Carimbó. Carimbó! A gente não resiste e entra na roda. Ah, que moça bonita, ê! 


 


O carimbó é isso. Um domingo na Praça da República, rico de sensações. Uma variedade percussiva fantástica. Talentos. Vozes e danças cheias de charme e graça. Dizeres subliminares de rio, de mata, de crença, de sabedoria popular e fantasias coletivas. Simplicidade e riqueza emparelhando-se na sociologia das artes. Carimbó é um convite para entrar na roda e ser feliz, mesmo que naquele instantinho só. Mas é, sobretudo, mistério.
(E a sereia depois de nos mundiar a todos, desencantou e sumiu nas águas espelhadas de um igarapé lá pras bandas do Utinga).

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