Depois a gente divide
Uma grande amizade é como se
fosse um cristalzinho multicor que a gente acha em meio a um mundo de pedras
foscas e que depois a gente guarda com extraordinário cuidado, com dedicado
zelo no fundo de uma gaveta perfumada de canforina, afeto e carinho. E vez por
outra vai até lá, sorver um pouco de luz.
Tenho umas pedrinhas que
iluminam a minha vida. Tenho amigos insuperáveis, pródigos em lealdade,
companheirismo. Comigo acontecem casos até raros. Tenho amigos que datam da
minha tenra infância. Dos tempos da ‘primeira série adiantada’ na Aparecida,
dos tempos em que eu pegava aquela fila de uma da tarde com os pés ardendo do
emborrachado do meu sapato Vulcalite, do tempo em que eu tinha medo de chuva
forte, de trovão e do Sinalzinho (um dos mais temidos meliantes da pacata Belém
dos anos 70). Altair Rocha de Oliveira é desta época. Dos tempos em que a gente
jogava bola no Areal, no campo do Asas e no Trabalhista e o único risco que
corríamos era a mãe ralhar com a gente porque chegávamos em casa com o pescoço
cheio de grossos cordões, digamos assim, orgânicos e fedendo só a moleque. O
Altair é do tempo do padre Geraldo, e dos desfiles escolares que começavam lá
no início da Pedro Miranda (que na nossa escala era um lugar muito longe), onde
a gente ostentava os laços verde-amarelos no lado esquerdo do peito, alçava ao
ar o cata-vento com a cor da pátria e caprichava na contramarcha (do centro
para os alagados do subúrbio) com muito garbo, muito patriotismo, muita
elegância, muita inocência, muitas dúvidas e muita sede ao final do estirão. Eu
e Altair, lá, rente como pão quente puxando o último pelotão (dos alunos que
desfilavam de farda), nos anos em que a benevolência do governo militar nos
oferecia bolsas integrais para freqüentar uma escola católica.
Na Escola Técnica conheci o
Ciro. Nome que, se declamado por extenso, alude a uma estirpe sobrelevada das
terras nobres da Europa Oriental: Ciro Segtowick, mas que, contrariando a raiz
nobiliárquica, traz a humildade, a gentileza, o humor e a generosidade do povo
do Abade, lá das bandas de Curuçá.
Estes traços na
personalidade do Ciroca (uma derivação pra lá de minimizada para a altivez de
um Segtowich) eu os experimentei mais concretamente quando das nossas
atividades em grupo para as disciplinas finais do curso de Mineração.
Formávamos uma equipe controversa e enviezada, mas obstinada, inquebrantável. A
legendária equipe ‘tumulto’, repleta de estrelas como Rafael Nascimento,
Armindo Sérgio e Edson Luiz. Nos nossos trabalhos de campo, cizânia. Ninguém
queria subir nos afloramentos, era mais quem se esquivava de entrar nos
igarapés e quando alguém se arvorava para coletar uma amostra, quede que
aparecia um com um saquinho plástico. Na confecção de relatórios e mapas,
barraco. Material de desenho, lápis de cor, papel vegetal... Era um jogando pra
costa do outro. Aí entrava o Ciroca com a sua natureza apaziguadora: “tá bom,
eu compro e depois a gente divide”. Deu-se então que fizemos um dos melhores
trabalhos da turma e trago a impressão de que até hoje ainda devo um numerário
pro Ciroca por conta daquelas paradas.
Depois de formados, eu e
Ciro Segtowich fomos juntos para Rondônia e ali naquelas paragens ocidentais
descobri um irmão. Sofremos de saudade, tomamos todas ao cair da tarde para nos
livrar da solidão das verdes matas amazônicas e não raro, dividimos a mesma
insônia relembrando a nossa querida Belém, com os olhos marejados.
Na segunda-feira, vou abrir
a gaveta de minhas conquistas e vou agradecer a Deus por mais um ano de tão
rica amizade.
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