sexta-feira, 11 de novembro de 2016

crônica remix Ciroca

Depois a gente divide
Uma grande amizade é como se fosse um cristalzinho multicor que a gente acha em meio a um mundo de pedras foscas e que depois a gente guarda com extraordinário cuidado, com dedicado zelo no fundo de uma gaveta perfumada de canforina, afeto e carinho. E vez por outra vai até lá, sorver um pouco de luz.
Tenho umas pedrinhas que iluminam a minha vida. Tenho amigos insuperáveis, pródigos em lealdade, companheirismo. Comigo acontecem casos até raros. Tenho amigos que datam da minha tenra infância. Dos tempos da ‘primeira série adiantada’ na Aparecida, dos tempos em que eu pegava aquela fila de uma da tarde com os pés ardendo do emborrachado do meu sapato Vulcalite, do tempo em que eu tinha medo de chuva forte, de trovão e do Sinalzinho (um dos mais temidos meliantes da pacata Belém dos anos 70). Altair Rocha de Oliveira é desta época. Dos tempos em que a gente jogava bola no Areal, no campo do Asas e no Trabalhista e o único risco que corríamos era a mãe ralhar com a gente porque chegávamos em casa com o pescoço cheio de grossos cordões, digamos assim, orgânicos e fedendo só a moleque. O Altair é do tempo do padre Geraldo, e dos desfiles escolares que começavam lá no início da Pedro Miranda (que na nossa escala era um lugar muito longe), onde a gente ostentava os laços verde-amarelos no lado esquerdo do peito, alçava ao ar o cata-vento com a cor da pátria e caprichava na contramarcha (do centro para os alagados do subúrbio) com muito garbo, muito patriotismo, muita elegância, muita inocência, muitas dúvidas e muita sede ao final do estirão. Eu e Altair, lá, rente como pão quente puxando o último pelotão (dos alunos que desfilavam de farda), nos anos em que a benevolência do governo militar nos oferecia bolsas integrais para freqüentar uma escola católica.
Na Escola Técnica conheci o Ciro. Nome que, se declamado por extenso, alude a uma estirpe sobrelevada das terras nobres da Europa Oriental: Ciro Segtowick, mas que, contrariando a raiz nobiliárquica, traz a humildade, a gentileza, o humor e a generosidade do povo do Abade, lá das bandas de Curuçá.
Estes traços na personalidade do Ciroca (uma derivação pra lá de minimizada para a altivez de um Segtowich) eu os experimentei mais concretamente quando das nossas atividades em grupo para as disciplinas finais do curso de Mineração. Formávamos uma equipe controversa e enviezada, mas obstinada, inquebrantável. A legendária equipe ‘tumulto’, repleta de estrelas como Rafael Nascimento, Armindo Sérgio e Edson Luiz. Nos nossos trabalhos de campo, cizânia. Ninguém queria subir nos afloramentos, era mais quem se esquivava de entrar nos igarapés e quando alguém se arvorava para coletar uma amostra, quede que aparecia um com um saquinho plástico. Na confecção de relatórios e mapas, barraco. Material de desenho, lápis de cor, papel vegetal... Era um jogando pra costa do outro. Aí entrava o Ciroca com a sua natureza apaziguadora: “tá bom, eu compro e depois a gente divide”. Deu-se então que fizemos um dos melhores trabalhos da turma e trago a impressão de que até hoje ainda devo um numerário pro Ciroca por conta daquelas paradas.
Depois de formados, eu e Ciro Segtowich fomos juntos para Rondônia e ali naquelas paragens ocidentais descobri um irmão. Sofremos de saudade, tomamos todas ao cair da tarde para nos livrar da solidão das verdes matas amazônicas e não raro, dividimos a mesma insônia relembrando a nossa querida Belém, com os olhos marejados.

Na segunda-feira, vou abrir a gaveta de minhas conquistas e vou agradecer a Deus por mais um ano de tão rica amizade.

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