domingo, 27 de novembro de 2016

crônica da semana: desfazecência

Desfazecência
A palavra que dá nome a esta crônica não existe. Não adianta procurar nos dicionários, que não vai encontrar. Fui eu mesmo, com meu próprio charme, que criei. E criei com a pretensa forma e com a intentada sonoridade para expressar este ato tão difícil de se desapegar da bregueçada que há anos nos acompanha. É um neologismo composto por aglutinação que tenciona expressar a dor (ou a sofrência) que sobre nós desaba quando nos desfazemos de nossas coisinhas.
Sou juntador de bagulhos. Tenho lembrancinhas, tercinhos, bonequinhos de petecas colombianas, chaveirinhos, lenços, caixinhas de fósforo, bregueços que datam de tempos tão distantes, meu pai! E tenho papel que só. Muito papel.
Meus meninos têm o mesmo baque. Quando me deixam visitar os quartos, percebo umas quinquilhazinhas espalha... digo, guardadas. Agora, minha mulher...Edninha, o que puder rebolar fora, ela rebola. O que puder deitar para a lixeira, ela deita. O que der para negociar nos postos de reciclagem, ela negocia. Não pondera. Não dá desconto, nem releva. Quando diz que vai dar uma arrumada nas coisas, aqui em casa, todo mundo treme. E haja argumento para segurar uma ou outra relíquia. E haja apelar para o valor estimativo, para o teor histórico, para as reminiscências que aquela peça traz. Se não convencer Edninha, amassa logo e joga fora, é que é, e sem chororô.
Nesta versão do desapego, que nos envolvemos neste feriadão, dei uma baixa na minha papelada. O acervo escolhido foi a minha rala e instável vida universitária, alguma coisa da ciência em linguagem popular e da multiarte. Os meus pontos, as minhas provas, trabalhos de campo, os meus desenhinhos coloridos, ai, ai! Tudo pra reciclagem. Foi de partir o coração. As minhas papeletas de consulta que usava na véspera das provas, e que me eram um exemplo de técnica para a boa decoreba. Lixo. Um mapa raríssimo da bacia do Xingu com registros de estruturas da atual barragem de Belo Monte. Deitado fora. Cartaz de uma exposição com peças do tamanho de um grão de arroz, atestado de meu envolvimento com outras artes, amassado e rebolado à companhia de outras preciosidades. E o que mais me doeu: abrir mão do meu catálogo celeste, uma publicação bem ilustrada, capa dura, com textos informativos e curiosos: “no planeta Urano, o ano dura 87 anos e 7 dias terrestres”. O que vale é que este catálogo está agora em boas mãos. Espero que olhos infantis percebam o céu, daqui pra frente com curiosidade e encanto.
A palavra que dá nome a esta crônica não existe. É um misto de dor e separação. Coisa que arde dentro de mim. Palavra que lateja. Saracoteia e vibra, e chacoalha tanto que só falta saltar pra fora em grito, em choro. É uma tradução para saudade. Para a saudade contida em pedaços de papel, em recortes de jornal. Desfazecência é o reviver enternecido de um aprendizado jogado ao espaço, largado a céus outros, estrelas frias outras. É palavra que não existe, mas surge da alma para explicar o inexplicável.

Sou um juntador de bagulhos, mas tem uma hora que dá o cupim e... não dá mais.

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