sábado, 12 de novembro de 2016

crônica da semana - bois mistério

Mistérios do planeta
Descíamos a ladeira, naquela manhã clara de sol. Ao longe, a estrada que vai dar no Gurupi, iludia a minha visão cotidiana com um tremeluzir aquoso, resultante da reflexão da luz no quente do asfalto.
Um vale alargado margeava um rego de água que escorria tímido no meio de um matinho rasteiro, lá embaixo. Dispersos, na planície, muitos bois pastavam concentrados, cabeça enfiada na relva.
Avistávamos os bois lá de cima, mas eles não nos viam. O corte na estrada formava um barranco alto e nos tirava da cena. Mas parece uma coisa, um mistério! À mediada que a gente foi se aproximando da parte mais suave da descida, e que o barranco foi se afinando numa linguinha de nada de terra, os bois começaram a sentir a nossa presença e iniciaram a formação. Foi impressionante! Parece que houve um estalo coletivo no miolo dos animais. Aquele que se escorava preguiçoso na encosta da serra, desceu para nos ver passar. O que ruminava distraído no barreiro amarelo, também veio. O outro que se mimetizava malhado com a folhagem fosca embicou decidido. Mais um que chapinhava brincalhão na água rasa do riozinho, se adiantou respeitoso. Vieram todos. Como se uma ordem severa vinda do misterioso grão líder dos ruminantes se espalhasse pelo baixão, todos os animais que ali pastavam, tomaram o rumo da estrada e se postaram disciplinadamente enfileirados à margem, a nos observar. Coisa que nos deu a pensar, olha. Nunca esqueci aquela cena tão inusitada.
Desde o início da descida, percebemos a movimentação, mas nem maldamos. Ao final do barranco, no estirão plano da estrada, uma cerca robusta, farpada, criava forma na lateral e se estendia até o outro lado do vale. Era o limite da manada. Pois eles ficaram rés à cerca. Certinho, simetricamente posicionados, um do lado do outro. Até onde a vista alcançava, tinha boi perfilado só na nossa bicora.
O que terá acontecido para que aquele ajuntamento se realizasse? Mistério. Enquanto nós que nos virávamos naquela pesquisa de campo, olhávamos pro lado e víamos ali, no máximo, futuros bifinhos, será que os bichinhos nos tinham como bípedes curiosos, depravados? Carnívoros nojentos e lascivos ou alguma coisa desse gênero, ou coisas além? Mistério.
Em outras aventuras, já me deparei com estes animais. Mas com outro perfil. Não tinham este comportamento marcial. Movimentavam-se em desordem, explodiam em carreiras, sumiam no braquiarão. Os bois que encontrei, num pasto na beira da estrada, já bem pertinho do rio Gurupi, aqueles que evoluíram em trajetórias bem definidas e ficaram ‘estaltas da silva’ de olhos tesos na gente, aqueles me são até hoje o mais intrigante dos mistérios.
Outros mistérios me envolvem.
A escuridão perto e certa. O suor cristalizado que brota e pesa sobre mim. A cor do medo e da dor que se define em borrões grises. O que sinto quando canto. Quando danço. Quando interpreto eus intensos e mentirosos. Mistérios de arte e verdade. Conhecereis a verdade e ela te comerá os olhos. Tantos mistérios céus e águas me rodeiam e me embalam a vácuo.
E aqueles bois, à margem, de olho em mim. 

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