sábado, 17 de julho de 2021

crônica da semana- trilobita que apita

 O Trilobita que apita

Eram, mal comparando, tipo uma baratinha. Habitaram a Terra antes dos dinossauros e se quisermos saber os rumos e os temas do mundo naqueles tempos primitivos, os Trilobitas, por certo, têm muitos causos a contar. Constituíram o grupo de ser vivo que mais tempo durou sobre o planeta. Esta façanha de varar eras e eras geológicas é um argumento poderoso para que eles sejam a categoria de fósseis das mais estudadas. Os exemplares encontrados nas diversas camadas de rochas dizem dos hábitos, do ambiente, das transformações que os indivíduos sofreram no decorrer do tempo e até das causas do desaparecimento das espécies.

Andei assistindo a umas aulas de Paleontologia, na minha fase- estudante-de-Geologia. Uma pena não ter concluído a disciplina. Era um encanto só. Apreciava as técnicas, os procedimentos, até táteis, que eram usados como ferramentas para classificar este ou aquele fóssil (lembrava dos pequenos lá de casa e traçava um paralelo com as experiências que as crianças faziam naquela época: na escola, em sessões sensitivas, passavam os dedos em determinadas superfícies e indicavam se eram lisas ou ásperas). A análise de fósseis pode ser feita assim, investigando o corpo do serzinho, passando a ponta dos dedos. Áspero... liso...fundo...raso. Marcas do passado. Milhões de anos passados.

O clã Trilobita apitou, e muito, em todas as matérias relacionadas à Evolução. Biólogos, Geólogos, os canônicos da Paleontologia e Darwin, o cara, valeram-se das relações temporais estabelecidas pela sucessão de formas das baratinhas paleozóicas para formular suas teorias.

Hoje em dia, com essa histeria negacionista, aliada à tórrida febre terraplanista que queima a história do planeta pelas beiradas, corre o risco de não apitar mais. Essa gente sequer se abala a catar conchas nas areias para tecer um colar, que dirá para criar teorias.

Conta-se na biografia de um dos pais da Geologia, o inglês William Smith, que ele fez dos fósseis seu objeto de pesquisa. Desde a infância coletava e prestava bastante atenção nos fragmentos de rocha desenhados que se espalhavam pelos condados ingleses. Anos mais tarde, após muito estudo e pétrea dedicação elaborou o ‘mapa que mudou o mundo’ um documento extraordinário que ajudaria a virar do avesso o pensamento medieval sobre o caráter imutável da criação. As pedrinhas que colecionou desde a infância formavam um argumento temporal magnífico, levavam a idade da Terra para a escala de milhões de anos e, avalie só a intensidade do choque nos credos e dogmas: expunham a finitude da vida. Deflagravam a idéia de que Deus criava e descriava. As camadas de rochas preservando testemunhos de animais que não existiam mais, definiam a dinâmica de extinções periódicas a que o planeta se submetia.

Essas genialidades, as iluminações do pensamento científico, a sucessão de baratinhas cada qual com seu barato, incrustadas nas rochas, nos revelam que o planeta vibra e resiste aos dramas naturais. A vida não.

Bem mais tarde, sem conhecer a história do Trilobita que apita, nem dos ermos britânicos, ou mesmo sem dar conta de arte ou ciência, mamãe mostrou-se sábia, e tanto, de fazer negacionista corar de vergonha. Voltando do campo, um dia, mostrei pra ela um fragmento de rocha contendo o fóssil de uma concha do mar. Mamãe sondou com o extremo dos dedos, percebeu o liso, o áspero, o fundo...o passado, identificou o finito e o infinito. E cravou: o mundo não se acaba. Quem se acaba é a gente

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