sábado, 24 de julho de 2021

crônica da semana - sem sapato e paletó

 Sem sapato e sem paletó (amuado de dar dó)

A festa estava boa. A banda mandando as clássicas em arranjos agitados, bons de balanço. Meu amigo, escolado, catita mesmo em outras praças, craque nos passos marcantes do brega ao axé, cortando e arando no salão. Fazia até fila de candidatas a fim de dançar uma parte com ele. Chega pingava de suor, o rapaz. Ia lá, vinha cá com simpatia e graça. Volteava com estilo, exagerava na elegância e na sensualidade. Arraso total. A fila, ó, por acolá. De repente, o pequeno parou. Procurou lugar pra sentar, em nossa mesa, aquietou-se. Ficou mais sério que bode embarcado. Nem na hora do filé ao molho madeira se abalou. As candidatas a uma parte dispersaram-se desconfiadas.

Não foi nada, não foi nada, o que de grave aconteceu, foi que descolou a sola do sapato dele.

Acontece. É de esmorecer mesmo.

Ouço dizer que, mesmo que seja novo, se a gente não usa regularmente, o sapato pode perder a sola por um isso assim de esforço. Dizque a cola resseca e quebra de miudinha em miudinha até soltar toda a sola. Penso que isso explica o que aconteceu comigo pelo menos duas vezes.

E é certo, não fazia uso encarreirado não. Calçava uma vez aqui, outra lá além. Não sou de ir às partes que exijam trajes engalanados, ou figurino, digamos assim, conservador.

A primeira vez foi desconcertante. Tinha me virado nuns panos para viajar. Aquele padrão: camisa manga comprida, lenço no bolso, calça social, meia de bolinhas, e sapato brilhando na pura graxa. Embarque cedo. Cinco da matina.

O custo foi eu pegar o cartão de embarque. Assim que deixei o balcão, senti um chiado debaixo do pé, a cada passo. Procurei um cantinho para verificar o ocorrido. Meu pai eterno! O solado das duas bandas do sapato estava pendurado. Ainda pesquisei um quiosque pra bater umas tachinhas, mas quite, naquela hora, nem cravo, nem pau-ferro. Não tinha jeito. Disfarça daqui, arrasta o pé dali, ajeita um andar saltitado acolá, embarquei.

A viagem era a uma mineração pra’li, subindo o Amazonas. Chegando lá os pés se ajeitaram. Eu e minha companheira de visita técnica ganhamos EPIs completos. E um par de botas novisco. Seguro e confortável.

Na volta foi que foi. Ainda reinei negociar a posse das botas, mas o orgulho, além do compliance de parte a parte, exatamente nesta ordem, impediram qualquer menção.

O pior n’enada. A viagem teve uma conexão em Manaus. Um tempão no aeroporto, sem muita coisa pra fazer até pegar o vôo para Belém. Depois de uma ida ao café, ou uma passadinha na banca de revistas, minha amiga perguntava intrigada, por que raios de motivo eu andava arrastando o pé no piso lajotado da sala de embarque, com se estivesse patinando sobre uma camada densa de gelo, ou como se fosse um molequinho presepeiro. Eu respondia que não era de se preocupar, eu é que gostava de andar assim, folgazão, tipo esnobando o aeroporto dos outros. Curtia a cizânia bairrista, sabe. Mal a companheira desconfiava que faltava um grau pra sola sair dos sapatos todinha sem regra ou pudor.

Assim que cheguei em casa, mandei costurar os bichinhos de fora-a-fora. Estavam amarrados. Passaram desta para melhor de velhice. Descolar não descolaram mais.

A outra vez eu já contei aqui, foi no porto do Arapari. Na ocasião, apelei para o cinismo.

E a festa? Tava era boa, mas o pequeno amofinou. Mais abatido ficou ainda ao verificar que o paletó alugado que havia deixado no encosto da cadeira, enquanto bailava no salão, arranjara um dono. Amuou de dar dó.

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