sábado, 17 de setembro de 2016

crônica da semana - só pra dar o gosto

Só pra dar o gosto
Mas era conta batida. Todo sábado. Eu até que podia escambimbar os artelhos ou esfolar a cabeça do hálux no campo de serragem do seu Preá, mas antes da noite cair, tinha que estar inteirinho da silva, banhado e empoado, no jeito para fazer as compras da semana, nas estivas da Pedreira. Chegava em casa só fedendo a moleque, passava direto para o banheiro, enquanto mamãe preparava a lista. Nem precisava. Mamãe tinha precisão. Determinação. Constância. Eu já sabia de cor os produtos que deveria comprar, a sequência em que eles vinham listados, a falta de espaço e a separação silábica exatamente no mesmo item. As quantidades: uma quarta de cada. E a finalidade: o charque era só pra dar o gosto.
Minhas químicas, meu atavismo funcional, uma herança responsável ainda se animam em mim aos sábados, e meio que no automático, deu de tardezinha, me avio no banho, salpico um pó no pescoço, procuro a lista. O que me arde é que os sábados, acode-me a realidade, não são mais os mesmos. Não há mais lista, mamãe não está mais presente com seus padrões, as estivas da Pedreira transformaram-se em varejos refrigerados e caros.
Aceito estes tempos outros. Releituras, modernizações são necessárias. O grande eixo comercial da Pedreira, que antes se concentrava em atacados, secos, molhados e estivas em geral, se desintegrou. Partiu-se em segmentos, em variações e diversificação de produtos.
Um sábado, porém, sempre se anima em mim.
Então eu largo a missão ou o conforto e vou atrás de reencontros, listas e constâncias. Tiro no pé este estirão da Pedro Miranda, até lá no fim, perto da Eneida de Moraes. Em alguns pontos, me demoro. Tento localizar o prédio da Paragás, do café Século XX, do Pisco, da Casa do Bife. Desorientado, recorro às fachadas. Até um dia desses, ainda havia a exposição reliquiar da platibanda do supermercado Sandra (era lá que minha lista era aviada com zelo e qualidade). Não há mais. Uma pena não encontrar mais aquela tirinha da fachada do antigo Sandra. Também foi retrabalhada, destituída, substituída por um painel frontal colorido cheio de propagandas. Agora, das frentes originais de casas de comércio na Pedro Miranda, acho que nenhuma mais existe. Lá pro fim, além da Humaitá, em meio a um quadro de ruínas ainda resiste uma fachada residencial. Tem dias contados, estou certo. Meu bairro de desfigura, se transforma, se aparta dos afetos.
Mamãe fazia um esforço inominável para garantir aquela listinha. O tantinho certo para a sobrevivência e uma extravagância (algo para adoçar a boca, como dizia ela). Um biscoito ‘Champanhe’, uma goiabada.
Tinha uma seção, no Sandra, lá no fundo, que atendia no retalho. O pequeno de lá já sabia: uma medida e meia de óleo, duas viradas de faca de sabão em barra, três largadas de colher de manteiga, embrulhada no papel manteiga; duas bonecas de anil; uma quarta disso, uma quarta daquilo. O charque, não. O charque era um corte enviesado (como a mamãe mandou). Que pegasse uma parte de carne ‘muciça’ e outra de gordura. E não era na quarta não, era só um pedacinho. Só pra dar o gosto.


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