sábado, 24 de setembro de 2016

crônica da semana - jacaré

Pois não é, jacaré
Eu amanhecia com aquela zoadeira longe piriricando meu ouvido e isso sugestionava, pesava na hora de decidir. Não tinha conversa, nem ponderação: O barqueiro ia pelo rio, atravessava a cachoeira e esperava no remanso lá embaixo. A equipe, faria o arrodeio.
Durante o inverno amazônico de rios têi têi e muita chuva, essa era a opção mais segura. E pra falar a verdade, nem sei. Acho que em termos de segurança, era ‘elas por elas’.
É que o arrodeio compreendia cruzar uma prainha que àquela hora da manhã era apinhada de jacarés. Não é história de pescador, não. Era assim, ó. Mina de jacarés, um do lado do outro, esquentando o couro aos primeiros raios de sol.
Quando digo que sou meio conforme de cabeça, é porque tomo decisões desse tipo.
O que torna é que, na época que trabalhei no Xingu, acampei, bem dizer, ao lado de uma das cachoeiras mais temidas do rio. Era um estrangulamento radical que tinha, de ombreira a ombreira, não mais de 70 metros. Acima daquele local, a largura do Xingu batia fácil os dois quilômetros. Avalie então toda a água de 2km lá detrás passando num estreitinho de 70m. Alta velocidade e profundidade assustadora, tinha esta cachoeira. Pela missão do momento, tínhamos que encará-la todos os dias. Ou não. A outra opção, eram os jacarés.
Quando, recém-contratado, cheguei ao local para trabalhar, ouvi a história de um grande acidente na cachoeira. Contava-se que numa das jornadas, a lancha voadeira foi sugada por um rebojo enorme, o barqueiro não conseguiu escapar e a lancha emborcou. Sete engenheiros que tinham vindo de São Paulo para uma visita técnica morreram. Foi o que ouvi, não procurei aprofundar os fatos e nem checar se era verdade mesmo. Mas na primeira travessia que fiz, da cachoeira, nem precisei de comprovações. A volúpia das águas falava por si. Desde o primeiro dia, a respeitei.
O pessoal da minha equipe, a maioria da região e conhecedor dos perigos, partilhava da minha decisão. E todos, ora, nadavam bem pra caramba. Então, era na bucha. A água começava a subir, a gente se ajeitava pelo arrodeio.
Caminhávamos sobre um pedral por boa meia hora até darmos na prainha. De longe, ao avistarmos o amontoado de jacarés, gritávamos, batíamos palmas, fazíamos a maior algazarra. Eles se assustavam e um após outro, ganhavam o rumo da lagoinha que se estendia à frente. Aí a gente passava na caté, cheios de poder.
Andávamos mais um bom bocado sobre um lajedo muito acidentado, descíamos uma pequena encosta, nos embrenhávamos por uma vegetação rasteira e espinhenta, até que, lá na frente, dávamos no remanso. Esperando e mangando, toda vez, da gente, o barqueiro. Nos taxando de medrosos, desconfiados. Tirando onda porque a gente evitava passar na cachoeira.
A cachoeira logo ali, em cima. Dava pra ver a espuma se formando e a água estrondando contra as pedras. Olhava para a minha equipe. Mais de 15 pais de família. Pensava na minha responsabilidade aos vinte e poucos anos...E aquela zoada, piriricando, agora, perto, bem perto. Me dando a certeza de que a opção pelos jacarés sempre foi a melhor.


Nenhum comentário:

Postar um comentário