O não nascido
A
atendente do consultório chamou algumas vezes: “Raimundo Nonato, Raimundo
Nonato...” E eu, nem aí. Até que, de repente, atinei. Ai meu Deus, sou eu!...
Um
retângulo de um plástico duro, tingido com as cores da empresa, ilustrado com o
desenho de um elefantinho com cara de boa gente, no cantinho superior. Atrás,
um alfinete daqueles de fechar as fraldas de bebê, servia de atracador. No
centro da plaqueta em destaque sobre uma discreta tarja branca, em letras
pretas cursivas, meu nome: Raimundo Nonato.
A
plaquetinha de identificação fazia parte do meu look de empacotador de
supermercado. Tinha ainda uma bata, que sempre a mamãe tinha que ajustar porque
ficava deste tamanhão em mim, e que era completada com dois bolsos laterais, já
beirando o cós, que serviam pra gente descansar as mãos quando tava numa
folguinha da lida e pra guardar o apurado da gorjeta. A calça era a da gente
mesmo e o sapato, também.
O
ano era 1975. Tá na plaqueta. Número do meu registro e a data de admissão, em foto
antiga da minha primeira CTPS.
Vou
buscar lá daqueles tempos em que os supermercados só recendiam a sabão e a
cebola, este cenário comprovativo, para provocar uma constatação. Foi a
primeira vez que tive que me atar com o meu nome assim, no regular, no
compulsório. Estava, afinal, na plaqueta.
A
gerente, quando vinha desfiando uma ordem, evocava: “Raimundo Nonato, vai
passar uma vassoura no salão”. O freguês, quando requeria um serviço, agachava-se
um pouquinho, pra compensar a minha pouca altura, e olhando de palmo em cima o
Raimundo Nonato da plaqueta, me voltava com a ordem para deixar os paneiros
ali, no táxi. Na chamada para receber o numerário da semana: “Raimundo
Nonato...”
Em
casa, na escola, não estava acostumado com a conjugação do nome. Ou era um, ou
era outro. Ou Raimundo, ou Nonato.
Comecei
a criar uma bronca do meu nome, não porque vinha assim, no todo, na plaqueta,
mas, exatamente, porque em outras ocasiões, as pessoas teimassem em separar as
partes. Parece que não era conveniente, simpático ou atraente, chamar de
Raimundo Nonato.
O
tempo passou. O supermercado, os paneiros, a plaquinha com o elefantinho com
cara de gente boa, ficaram para trás. De lá para cá, houve uma redução para
‘Sodré’, que é a minha graça mais conhecida. Outros, mais íntimos e meu filho
Argel optam pelo solitário Raimundo, largando pra trás o “não nascido”. Nas
artes e nos dias, me apraz a conjugação Raimundo Sodré (daí a minha lerdeza no
consultório).
Raimundo,
o santo, tornou-se Nonato porque foi retirado do ventre de uma mãe já morta.
Ordenado padre, lutou pela libertação de cristãos capturados pelos muçulmanos.
Quando preso pregou para os pares escravizados. Para calar-se, houve de a boca ser
perfurada e lacrada por um cadeado. Sofreu pra dedéu na mão dos algozes. Recebi
o nome do santo porque minha avó paterna fez um rogo urgente e até hoje não sei
qual foi o teor desta promessa. Pelo sim e pelo não, eu que falo muito, e por
vezes, quando falo, firo; cuido para ficar a uma distância segura de cadeados e
algozes, ou do silêncio dos dois.
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