Carrinho de pilha
Era um carrinho de brinquedo. Funcionava com duas pilhas grandes. Vencia
não sem alguma dificuldade, o chão áspero da calçada estreita e gretada,
tirando ronco das rodas e um zunido do motor. Ronnnnc, ronnnnc! Ziiiiimmmmm!
Tinha um sensor que à presença de um obstáculo, parava o movimento do carro,
fazia abrir o capô; então, de lá da frente, saía uma metralhadora que disparava
um ratatatá e um piscado de luzinha vermelha. Depois o capô se fechava, o carro
dava ré e rumava a outros caminhos. Embora independente nos movimentos e nas
proteções, não escapou da beirada da calçada. Despencou sobre a piçarra endurecida
de verão, que formava um lajeado no quintal, esbandalhou-se e o motor parou de
zunir.
Nunca me libertei daquela dor na consciência de ter deixado o carrinho se
espatifar naquela capa de chão vermelho. E, olha a frustração: foi no mesmo
dia, poucas horas depois de ter ganhado o presente do meu papai. A perda do meu
carrinho de pilha foi uma dor que lembro até hoje, mas não foi a maior perda
que sofri, naqueles anos setenta que, já no início, se anunciavam inclementes.
Meu pai chegava de Xapuri por aqueles dias para tratar da saúde. Na
passagem por Manaus, comprou para mim, o carrinho produzido na Zona Franca. Eu,
beirando os cinco anos, fiquei feliz que só, com o presente.
Desde que mamãe voltou para Belém, meu pai veio nos visitar em algumas
oportunidades. Largava as ruas de seringa e vinha matar a saudade, passeando
com a gente, pelas ruas da cidade. Essa vez, do carrinho, foi a última. Vinha
com a decisão de acertar os ponteiros com a mamãe, porque era mesmo necessário,
já que o seringueiro era sassariqueiro e naquele ritmo, não dava mais conta de
viver. Os males do estômago o levavam à decisão de largar o seringal e as
aventuras mundanas; se juntar à família e a construir algum futuro em Belém.
Tinha na mira comprar uma casa pra gente (e até hoje, quando passo ali na Lomas
e vejo aquela casa com varanda estirada, oratório de Nossa Senhora na parede e
escada harmonizada à fachada, penso que aquele seria o nosso cantinho). Não deu
tempo.
Papai deixou o carrinho comigo. O brinquedo quebrou naquele mesmo dia.
Naquele mesmo dia foi internado para uma cirurgia delicada.
Ainda em recuperação, me deixou a saudade, o carrinho disposto em
bandas, o desejo de morar num casarão da Lomas, e voltou para o seringal no Xapuri.
As imagens, os fatos, hoje se confundem na minha memória. A saudade,
não. O vazio na minha vida e no meu coração, não. É comum, as pessoas não
entenderem um homem além dos 50 anos, um senhorzinho, já considerando até a
possibilidade de ser avô, quedar-se aos cantos, choramingando a falta de pai.
Eu assumo, pois que a dor daquela perda é marca que do meu coração, não se
poder delir.
Sei de filhos que espezinham , ofendem, desprezam, reduzem o valor do
pai, enquanto eu, a peso de lembranças tantas, só queria ter vivido mais um
pouco, mais uns anos, fosse mesmo com um pai chato. Ainda choro pelos cantos,
porque daquela viagem para o seringal, no início dos inclementes anos setenta,
meu papaizinho nunca mais voltou.
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