sábado, 9 de julho de 2016

crônica da semana - crase

O caso da crase e outras introspecções
Mas olha que reinei em detonar com este sofrimento que é a crase. Mas calma, calma. O tempo é de férias.
Este é um dos conflitos íntimos que me consomem, por absoluta falta do que fazer, nestes primeiros dias de férias. Acho que acontece com todo mundo, mas comigo é pior. Uma cuíra apavorante. O sem nada pra fazer é um desafio, uma odisséia de sobe-desce escada, abre-fecha geladeira, espia pela janela, escuta ao longe, dá um soninho, acorda e dorme de novo no meio do capítulo mais longo do livro. Uma aventura branda, pastosa e enjoada. Neste período me largo à introspecção. Enquanto todo mundo sai pela manhã (porque a vida continua, mano), eu distancio o olhar o mais que posso para além dos telhados da Pedreira e tento achar razões para o meu ser em início de férias. Entre uma agonia ou outra, ante uma crise espacial de não entender o porquê de não se estar no trabalho às sete horas ou frente o mistério de não se discernir o cenário que se completa com a TV ligada no jornal da manhã, no meio desta embrulhada existencial, dei com as palavras profusas do professor Leandro Karnal.
O historiador, palestrante admirado pela abundância nos entrelaços lógicos, pelas felizes, vastas e bem encaixadas citações e por um domínio cuidadoso de assuntos modernos, confessou que não perdoa aluno acima da graduação, que não saiba usar a crase. Tem lá suas razões, o professor. Valendo-se do cabedal de conhecimentos que o faz transitar à vontade pelas alamedas ladrilhadas dos clássicos, ao mesmo tempo em que visita o calçadão popular, tem todo o direito de cobrar dos acadêmicos. Mas em se tratando da crase, penso que tem que relevar.
A minha vontade era que a crase fosse extinta. Mas não foi. Então, fui lá dentro de mim procurar uma razão para este sofrimento.
A crase é um efeito fonético provocado pela fusão da proposição ‘a’ com o artigo ‘a’. Este efeito a gente até percebe na fala mesmo (vou a a escola.Tá vendo como tem dois ‘as’ na parada?). Esta união, na escrita é sinalizada pelo acento grave (que é aquele acento agudo ao contrário). Há uma tendência geral de que só ocorra a crase, quando a palavra seguinte está no feminino, porque o artigo ‘a’ é que define este gênero. Epa! Para tudo!
Hoje, o tempo me é amplo. O universo me é atraente. A sublimação, o êxtase, uma inquietação morna são contaminantes do meu humor diante de Karnal, diante da TV, diante dos primeiros raios mais quentinhos do sol. Diante dos mistérios insondáveis. Na verdade a crase não é fusão de preposição mais artigo. É sim, a união estável, amigável, entre dois ‘as’. Por isso sinalizamos com o acento grave, o pronome “aquele” que é masculino. Tenha dó dos acadêmicos, professor, a coisa não é fácil, não.

Mas o dia já ia alto. Deixei a TV e o Karnal falando sozinhos, abri a janela, vi um limão bem grande no limoeiro do vizinho, em tempo de cair, me voltei pra dentro de mim e me convenci, nestes primeiros dias de férias, que não há nada, energia mais potente, mais absurdamente grandiosa que a luz do sol. Nada. Nem a crase.

Nenhum comentário:

Postar um comentário