Metro e
meio de neguinho
Naquela
época, eu nem fumava, mas andava sempre com um cigarro de um tabaco bem forte
(que eu mesmo tecia com aprumo e zelo), no canto da boca, fazendo fumaça para
espantar o pium (um mosquitinho atentado que a qualquer vacilo nos drenava o
sangue sem pena). Não tinha rigor no vestir mesmo porque, ali, no campo, não
fazia questão de ser fashion. Uma bermuda surrada e uma camiseta de algodão
fina me valiam. Um chapéu de palha raso, para fazer frente ao sol de Rondônia,
também.
Tínhamos
uma campanha para realizar numa fazenda que ficava perto de Ariquemes. Eu tinha
um acampamento, ali próximo e fui escalado para fazer o reconhecimento da
região e iniciar os contatos com o dono da terra.
A minha
equipe contava com umas vinte pessoas. Deixamos o carro na estrada e seguimos a
pé até a sede da fazenda. Lá encontramos um grupo que veio nos recepcionar. Um
rapagão meio arqueado de tão alto que era, adiantou-se. Passou por mim, sem dar
muita trela para o meu povo que se alinhava organizadamente ao redor. Parou no
fim da fila, cumprimentou com respeito, um dos auxiliares e se colocou à
disposição para as negociações sobre a pesquisa da cassiterita. O rapaz, meio
desconcertado, declinou educadamente daquela intenção e adiantou para
grandalhão que o responsável pela conversa e pela pesquisa era eu, que estava
ali ao lado da turma, esperando o desfecho daquela indelicadeza. Ele voltou,
apresentou-se como capataz, desculpou-se meio sem vontade, disse já estar
sabendo do que se tratava e sem mais delongas nos liberou a área. Um cafezinho
sequer, daqueles puros, cheirosinhos, de fazenda, ofereceu. Tudo bem. Demos
meia volta e caímos no trecho.
Foi
fácil entender a atitude do capataz. O rapaz que ele escolheu para prestar
reverências era o único louro de olhos azuis da equipe. Nosostros exibíamos o
perfil cafuso amazônico e ele, como tinha a missão de ratificar um acordo de
alto nível que resultaria em uma boa grana, que modificaria a rotina da fazenda
e que definiria o futuro de muita gente ali, caso houvesse a tão sonhada
reserva de cassiterita, ligou este contexto delicado ao estereótipo
representado pela cor da pele. Interpretou que o poder de decidir sobre aquela
campanha, só poderia vir de alguém igual a ele de pele branca, estatura
avantajada e dorso arqueado. Jamais pensaria que essas atribuições estavam
concentradas exatamente naquele neguinho de um metro e meio com chapéu de palha
com abas desfiadas, ostentando uma vestimenta barata e enganando os piuns com
baforadas difusas do poderoso ‘Fumos Leão’.
Na
história recente do Brasil, não registramos conflitos raciais tão
explicitamente drásticos como aqueles que conhecemos na história da África do
Sul ou dos Estados Unidos. O que não significa que aqui a discriminação
inexista. E o que não significa também que com este aplainamento dos ímpulsos,
sem reações mais significativas, a gente tenha conseguido o paraíso da
tolerância racial. Aquela experiência em Rondônia, me causou desconforto e me
mostrou que o caminho para vencer o preconceito, exatamente por causa desta
indolente hipocrisia reinante no país, é bem mais tortuoso do que nos pregam as
doutrinas ladrilhadas de fantasias.
Depois
daquele dia, consegui até conversar com o capataz taludão. Rolou até o café. (A
possibilidade de royalties polpudos arrefecia qualquer ímpeto de segregação).
Só que deu azar, o gigante. Ao final da pesquisa, a área deu negativa e a mina
com o cobiçado minério não vingou.
Quanto
a mim, ainda bem que não me impressionei com aquela vexação e segui meu caminho
evitando dar sangue aos piuns.
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