sexta-feira, 27 de maio de 2011

Crônica da semana


Lilás
A noite estava fria, a chuva havia estimulado o recolhimento e as preces. Aos pés da Virgem Santíssima eu rezava ajoelhada com um fervor desmedido (salve Rainha Mãe de Deus/És Senhora nossa mãe/Ó mãe clemente/ó mãe piedosa/Doce Virgem Maria). Pedia, desesperadamente, para que a santa o trouxesse de volta. Sentia saudades e meu peito amargava a solidão e a certeza mórbida de ainda amá-lo. Benzi-me, ergui-me e apeguei-me às lembranças.
O peso da idade já não me machucava tanto. Acendi uma vela para que a sala e o quarto, com a licença da porta entreaberta, ficassem igualmente iluminados. A outra, posicionei à entrada da casa como se a chama houvesse por  esperar alguém. Nessa época de chuva, a noite chegava mais cedo que o comum, avalizada pelos algodoados de nuvens plúmbeas e ameaçadoras: era o tempo apressando-se em escuridão.
Sob a dança vacilante do lume que escapava da vela, percorri um espaço que conhecia bem, um traçado decorado ao longo de tantos anos. E me dispus à frente de uma mobília velha. Tateei as mãos e fui agrupando os objetos de toucador que pude encontrar. Uma cápsula de baton oxidada, a caixinha de rouge que ganhei da minha filha no Natal passado, e uns frascos de extratos artesanais que eu mesma produzi.
Olhei-me no espelho e a penumbra fantasiou um rosto ante o meu. Um rosto ainda admirável de uma mulher madura que não precisa de nenhum cosmético para sorrir. Com um gesto decidido lancei aquela tímida coleção de cosméticos para longe e sorri para a minha louca paixão. Não mais o veria. Em fotografias, nos filmes descoloridos de minhas lágrimas, tampouco nos reflexos impiedosos do tempo. Não mais o quereria. Despejaria a minha angústia, agora, sobre a terra confidente.
Inadvertidamente, corri. Não posso justificar a urgência daquele ato, já que tudo era estático e inabalável naquele ermo. Mas algo me guiava para fora da casa com um quê de razão e pressa. Era uma réstia volátil de luz que suspirava em um horizonte lilás. (Teu nome/com gizes coloridos/escreverei/lilases vezes/na lousa desbotada/de minha memória...este é o meu castigo). A luz se fechou num poema e a vida ainda tentou me acudir no farfalhar aromático que o vento imprimia à roseira lá ao pé do alpendre. Aproximei-me e pus-me a remexer o solo junto à plantinha solidária. Não encontrei nada. Só folhas secas, vermes escarlates, argilas sombrias, gris ilusões, dor e umidade. A chuva passara, mas meu pranto...Não. Não posso esquecê-lo (teu nome...lilases vezes...na minha memória).
Deixei o fio de luz, os vermes encarnados, a rosa graciosa e o alpendre úmido para trás e reduzi-me ao sofrimento. Volvi ao espelho. Agora sem sorriso ou coragem. Só os cabelos prateados e reclamos débeis respondiam aos meus olhos. Injusto e infame este delator. Espelho, espelho meu. Dane-se. Apaguei a vela e fechei a porta do quarto.
Agasalhei os pés com meias grossas de bordados joviais; vesti-me com casacos bem cortados, ornados com ilhoses alegres e passadores anilhados; soltei os cabelos, sem charme, sem coquete, sem civilidade sobre o colo ressentido ; aproximei a cadeira da janela e busquei a luz de modos que, o que restou de clarão na sala, me proporcionasse uma leitura reparadora. Dane-se o espelho. Dane-se essa gente rude e fria sem nome...Danem-se a aurora e os arrebóis. Danem-se os trigais, os girassóis e tudo o que seja leve e colorido.
A ti, te consumi em todos os nomes impuros e sedutores que consegui ler naquela noite. E te li tantas e lilases vezes que, sem fôlego e exausta de tanto que te amei, morri feliz sob o fulgor indulgente de uma vela amiga.




Um comentário:

  1. "E te li tantas e lilases vezes que, sem fôlego e exausta de tanto que te amei, morri feliz sob o fulgor indulgente de uma vela amiga." perfeito...

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