terça-feira, 21 de dezembro de 2010

crônica da semana

Minha amiga

Quando a porta do elevador abriu, ela já estava a minha espera com um radiante sorriso. Nos  apresentamos formalmente e nos cumprimentamos com um afetuoso abraço. A seguir, me ofereceu café, pão torradinho, água e frutas. Sabia que eu tentava desde bem cedinho chegar a Belém, varando pelos furos da Ilha das Onças e estava com fome.
Quanto vale o que escrevo?
Minha amiga é leitora da coluna há alguns anos. É uma jovem senhora que já deu a sua preciosa contribuição para o serviço público do Estado e hoje redescobre mundos, como aposentada. Enquanto eu tomava café, nos ensejamos descobertas sobre cada um. Eu falei da satisfação danada que todo autor tem quando conhece uma pessoa que se identifica com o que ele escreve. No meu caso não era diferente. Estava pávulo, pávulo. Ela me revelou como aquele nosso encontro foi se construindo, se fazendo possível. Contou da sua fase de desapego e o que, exatamente, um aparelho de som Polivox tinha a ver comigo e com aquele momento. As coisas não eram assim tão reconhecíveis, explicou. Aquele instante foi orquestrado por essas forças, por esses movimentos desregrados, por essas intuições que permeiam céus e terras. Portanto nada era assim tão puramente racional e nem tão desequilibradamente emocional. Mas era por aí. Provinha de uma fé amplificada e da liberta, mas humilde conexão com Deus (e aí ela me mostrou uma música do amapaense Zé Miguel em parceria com o poeta Joãozinho Gomes que está até hoje, ó, aqui no meu cocuruto, animando os meus dias. E olha lá, heim, o que fazem os poetas, ah, esses poetas! A canção tem uma melodia linda, um poema certeiro que faz uma imagem da Terra como sendo uma ‘conta no colar de Deus’. Versos inspirados, conectados com a divindade, por certo).
Quanto vale o que escrevo?
E ela, a minha amiga, com uma voz flagrante, instantânea, bem postada, deliberadamente alegre, me guiou, com cândida superioridade aos humanos e possíveis caminhos que nos levam a entender melhor o amor pelo planeta, o zelo pela humildade, a pretensão pela felicidade... a livre e poética conexão com Deus. (Nessa hora, uns quantos passarinhos, provas da existência de Deus, como nos assegurou o santo de Assis, pousaram na janela e fizeram uma afinada trilha sonora para as nossas confissões).
Minha amiga tem uma alma rica. E tenho certeza que ela é feliz. Mora num apartamento cuidadosamente decorado, confortável, mas menor, bem menor do que seu coração. E pra falar a verdade, fiquei assim que nem mané besta, só admirando aquele lugar. Chegou uma hora que não resisti e tive que elogiar a casa dela. Na verdade, um lar abençoado pelo fogo vivo do planeta: a seiva mineral da terra está ali emanando energia em cada canto da casa, em texturas, em geometrias, e em cristalizadas relações forjadas pela genética das rochas plutônicas. E cada arranjo (de pedra e ambiente, de ambiente e gente, de gente e arte, de arte e céu, de céu e terra, de gente e terra), cada arranjo mais harmonioso que o outro.
Confessei uma pendência antiga de não ser amigo de ninguém que morasse em prédios, naquelas alturas onde eu pudesse ver a minha cidade lá de riba. Ela me levou então para conhecer as sacadas, os mirantes da casa. Fiquei um tempo ali, emocionado, reconhecendo os cantinhos da minha cidade.
Um detalhe é muito forte na expressão de minha amiga. Ela fala com os olhos. Mas não deflagra freqüências audíveis, decifráveis ou dedutíveis. Dos olhos dela, “surgem sóis”. Provedores, benditos, acolhedores e definitivos sóis.
Quanto vale o que escrevo?
Vale um dia feliz cheio de luz.

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