sábado, 14 de maio de 2022

crônica da semana - os baixões do Conde

 Os baixões do Conde

Neste instante em que o leitor folheia, passa os olhos procurando os títulos, as manchetes, a programação da semana, a página do Ismaelino, um alento no horóscopo... aqui no caderno de cultura do jornal, eu me encontro cá do outro lado da Ilha das Onças, num pé e noutro de ansiedade para me tornar imortal. E, me enfurnando de cabeça na modéstia, até digo, arremedando os pequenos da beira, que nem sou merecendente de uma cadeira na Academia Barcarenense de Letras.

Eis que rapidola, dou um guiza na desmerecência e reconsidero agradecido. Classifico a lisonja como uma homenagem ao meu fazer literário e também à minha vivência e às ricas experiências que tive nos 15 anos que morei na cidade. Um reconhecimento pelos anos a bom tecer causos, criar versos, arquitetar tramas e tratos, inspirado e motivado por nossa gente.

Ao povo de Barcarena, meu carinho... E a minha reflexão antes da cerimônia de logo mais.

Repasso e reviro o tempo. Procuro o fio condutor, o alinhavo objetivo que modela minha relação com a cidade. Não é fácil. São tantas as razões, as emoções, decisões e encantos. Mas cato do Conde, um momento decisivo, a marca que não desaprega, a voz que se repete no meu cocuruto. Foi numa comunidade que faz contato com um grande muro erguido por um empreendimento industrial, na área. O líder do grupo me levou para conhecer um pouco do trabalho que ali se realizava. Tarefas cultivadas, terreiros para criação de animais, a vila dos moradores e ao fundo, anunciou o maior baque que a comunidade sofreu. Entramos num baixão, com pequenas cavas bem marcadas. Eram os tanques, disse ele, dos peixes criados em cativeiro. Havia a esperança naquele ano de grande produção. Aconteceu, porém, o indesejado. Banzeiro, maré de lançante, aquela de lua nova em março. A água grande invadiu o igapó, destruiu as contenções, interligou canais antes apartados e na vazante levou tudo quanto foi peixe. Perderam tudo para a maré de equinócio. Não era homem de se abater. Considerou o prejuízo, e ao mesmo tempo partiu para uma alternativa. Ainda tinha a parte alta do terreno para plantar. O certo é que ficaria um tempo sem recurso, sem ter como manter a família. Era o momento de buscar ombros amigos.

Antes de findar nossa caminhada, retornamos ao muro. Breve silêncio. A seguir, ele declarou, com a mais doce sinceridade, que seria diferente se ele estivesse do outro lado. Lá estava a estabilidade. O salário todo mês, a cartela de tíquete, o crachá de batalhador que avalizava a meia passagem no ônibus que fazia linha pra Abaeté, a indiferença diante do banzeiro e da maré grande. Silenciou de novo. Não falamos mais nada, até nos despedirmos.

Aquele encontro selou meu compromisso com Barcarena. Dali e por muito tempo adiante, parte da minha energia eu dedicaria às lutas por inclusão, por trabalho, por educação. Minha escrita teria pé no chão. A palavra me serviria como o mais esperançoso meio de transformação (e a luta continua quando às vésperas de ser empossado, me ocorre a declaração atribuída ao núcleo de comando de Hitler,  orientando que ao se ouvir a palavra cultura, se busque logo uma arma). Destarte que, para transformar, temos que ser imortais mesmo. Ser imorrível é o plano B.

Reviro o tempo: os caminhos que me levam hoje a uma cadeira na Academia de Letras de Barcarena, que me possibilitaram ostentar sobre os ombros a leve elegância erudita do pelerine; os passos que me deram alcançar a imortalidade em solo cabano, se iniciaram, também, nos baixões renováveis do Conde.

 

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