sexta-feira, 18 de junho de 2021

crônica da semana - vovozinho

 Vovozinho

Vida girando, cenários e humores em movimento. Mundo partido, corações esmigalhados. Para tudo! Um instante. Volta um pouquinho:

Havia completado um ano de emprego em Barcarena. Morava numa república e neste dia folgava, sentado no batente e espairecendo vendo o tempo passar. Quando ela chegou.

Uma missão repentina tinha levado minha companheira ao meu encontro em Barcarena. Precisava de uns documentos que estavam em Belém, para regularizar meu contrato com a empresa.

Da feita que ela bateu o pé na calçada, logo reparei. Os olhos afundados, olheiras bem marcadas, uma certa palidez. Comentamos aquela panemice e avaliamos as expressões como uma resposta do corpo à viagem de popopô e da falta de costume em enfrentar o banzeiro da baía do Guajará, comum, no meio da tarde.

Passadas as impressões, e notada a recuperação, conferimos a papelada que ela trouxe, nos abrigamos, relaxamos um pouco, saímos à noite para o repasto e para conhecer um pouquinho do que a Vila dos Cabanos tinha, já que era a primeira visita de minha companheira ao lugar em que eu passava a semana trabalhando. No dia seguinte cedo, embarcou de volta para Belém, com a combina de que procuraria um médico para avaliar aqueles passamentos repentinos.

Pouco tempo depois, o telefone do alojamento tocou. Alguém gritou por mim, que, com certeza folgava lendo alguma coisa no quarto. Fui atender na salinha reservada. Do outro lado da linha, a revelação: “estou grávida”. Era isso, aquelas mundiações, os enjôos, as palidezes aleatórias. Era Algelzinho se anunciando.

Desliguei o telefone contendo a euforia. Comentei com meu parceiro de quarto, me imaginei como pai. Chorei em silêncio, de emoção. Depois, voltei ao mundo real. Nessa época ainda não tinha a planilha do Excel, rabisquei então nosso futuro com um filho, na caderneta que me acompanhava para as anotações diárias. Fiz contas, incluindo compra de berço e o custeio da educação até a saída da universidade, ponderei a distância que nos impunha a separação durante a semana e a primeira ação foi arrumar uma casa do projeto e mudar todo mundo para a Vila. Ali começaria a nossa família (dois anos depois, olhos fundos, olheiras, panemice de novo e Amaranta chegaria para completar a família e animar nossa vida com o espírito feminino).

Volta aos giros do mundo:

Na quinta-feira próxima passada, Argelzinho e Brenda vieram nos visitar. Mantendo todos os cuidados de distanciamento, os recebemos em casa, ainda eu, cultivando um descontentamento porque o casal veio no meu aniversário em maio, e não trouxe nem uma camisa do bicola de presente, que eu tanto queria. Um bolinho de visitante partilhado, e a seguir, folguei no sofá para uma prosa despretensiosa enquanto eles mantiveram a distância, ali na mesa, encostada à janela. Foi aí que dei com uma caixinha de presente sobre o balcão da cozinha. Hã hã... imaginei. Custou, mas veio.

Levantei, peguei a caixa do balcão, fiz uma cena agradecendo o mimo, desatei o lacinho e abri. Dentro, um par de sapatinhos de bebê.

O mundo gira e os bebês não se anunciam mais a peso de olheiras e panemices. Apresentam-se da forma mais fofinha que a gente possa imaginar. Chorei em silêncio de emoção por descobrir naquele momento que vou ser vovozinho. Fui lá em cima e voltei.

Refeito, corri para o computador, abri o Excel e fiz as contas do berço, dos passeios no bosque, das voltas no carusser do arraial e dos estudos do netinho ou da netinha até a universidade.

 

 

Um comentário:

  1. Que lindo...É possível sentir a emoção nesse escritos de Raimundo Sodré. A crônica dele tem dessas coisas. De deixar a gente assim meio assim sei lá .

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