quinta-feira, 30 de abril de 2020

crônica da semana - sem rir, sem falar


Sem rir, sem falar
Em 14 anos de colaboração nesta coluna, nunca ocorreu, d’eu ficar sem falar ou sem rir, na hora de começar a escrever.
Para não passar batido, já iniciei meu texto recorrendo a vários artifícios. Na mira de cativar o leitor, logo nas primeiras linhas, dei de, um tempo, começar com frases de efeito, lampejadas, eletrizadas, às vezes explorando o suspense: “não foi ao encontro. Tivemos notícias vagas. A expectativa não era boa”. Coisas assim.
Noutra hora, optei pela ondulação romântica, prolongada, em andamento lento que, não raro, varava um parágrafo: “a manhã se apresentava silenciosa. Era domingo. O céu ainda se abria azul entre novelos avermelhados dispersos no horizonte. Ruídos aqui e ali. Ela, na maior candura, semblante lívido, respiração leve, ainda dormia. Vez em quando, entrava no quarto e contemplava aquele sossego. A água do café aumentando de temperatura, o dia também...”. E por aí...
Houve outro momento que rezei na cartilha do jornalismo clássico. Resumia a história logo de prima. Usava da praticidade do lide. Oferecendo o núcleo, o âmago da crônica, em rápidas e eficientes pinceladas. Tipo manchete de jornal: “A derrota do Brasil para a Alemanha me fez virar a semana de ovo entornado”. Normalmente mais contextualizadas, minhas introduções em lide.
Com o passar dos anos, fui percebendo que não importa a forma de se iniciar. Todas valem. Respondem a uma necessidade que vem de dentro da gente e não de regras estabelecidas.
Assim, tomei a liberdade de prosear poemas meus. Eram versos que pediam para explodir para fora da métrica. E foram se ajustando no texto em marcações com letras maiúsculas, com pausas propositais no ritmo da leitura. Uma prosa generosa, abrigando a lírica, proporcionando minha libertação. Porque o poema a gente sabe, não obedece a outra voz que não seja a voz do coração.
Hoje eu queria iniciar falando das flores que estão nascendo no meu jardim. E como eu penso aquele festival de cores, de luz, de exuberante beleza, ser a mensagem de uma luta intensa; ser o sinal de uma força imensa se anunciando. Mostrando que a energia da vida sempre vai florescer, vai eternamente se fazer desabrochar. Vai vencer a pressão contrária. O clima triste. E restaurar a esperança nas nossas vidas. Eu queria falar desses sinais. Eu queria falar aqui de boas novas e de otimismo.
Preciso mais que nunca da energia de flores brotando, agora que me vejo  impotente, porque ao iniciar esta crônica, a única palavra que me inclinei escrever foi lágrima.
Ao iniciar esta crônica, me peguei sem rir, sem falar, sem lide decisivo, sem lírica palavra, sem a operacionalidade da comunicação. Apenas a palavra lágrima escorrendo pelo meu rosto, pelo teclado do computador, pelas ruas da minha cidade, pelos corredores da vilinha onde moro. Nenhum recurso estilístico me socorre. Artifício algum me alenta.
Até que visitei o jardim. As flores estão mais viçosas que antes. Olhei para o céu e a luz era plena e o dia tinha um frescor azul. Mas os amigos cambaleando, os parentes abatidos, o risco iminente, a morte rondando perto... tudo vibrando em contraponto.
Me impus voltar ao jardim sempre para sorver, capturar uma infinitésima parte daquela força. E que ela me faça resistir. Porque hoje, depois de 14 anos, escrevendo nesta coluna, estou sem rir, sem falar.
Não queria iniciar esta crônica com a palavra lágrima. Embora ela molhe os meus dias, não iniciei.





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