sábado, 22 de fevereiro de 2020

a última ceia


A Última Ceia
Aquela noite fora marcada pela desesperança. Pelo desânimo e pela incerteza. Os presentes desenhavam passos errantes sobre o quadrado frio. Zanzavam insanos pelo mesmo palco que dias atrás (oh, destino cruel!) fora abrigo de alegrias desregradas e sorrisos gentis.
Lá fora, a noite chorava.
As frias lágrimas da noite anunciavam o desterro e a solidão. Profetizavam a aviltante hegemonia dos ‘amores servis’. Prediziam a pulverização de sonhos e esperanças.
O pranto de uma noite escura dava a conhecer a todos, a dolorosa imolação das almas. 
Alguém fez o convite. A mesa estava posta. Os outros se aproximaram e o pão, fatia por fatia, foi distribuído. Um valioso rumor fez-se ecoar: “parece a última ceia”.
“Tomai e comei todos vós.”
E cada um tomou para si a sua cota de glórias e sacrifícios. E cada um repassou a sua história, ali em volta da mesa.
Um deles disse: “por quantos bosques escuros e traiçoeiros nos embrenhamos, mas com o norte de nossas verdades, com a luz da justiça a nos guiar, sempre nos achamos. Quantos gigantes de um só olho enfrentamos, e munidos de cajados e pedras miúdas, mas com a pontaria providente e com a precisão da razão, conseguimos derrubá-los a todos.”
“Este é o meu corpo...”
Um outro relembrou: “Quanto frio nós sentimos subjugados a imponderável solidão em ermos descampados intermináveis, sujeitos a poeira e pó, mas conseguimos, enfim, respirar aliviados ao fim de cada caminhada. Quanta dor nos consumiu as energias quando, por insuportáveis torturas, sucumbimos à força brutal da repressão impiedosa, porém, como a Fênix rediviva, desafiamos as trevas e, como resposta aos ataques, alçamos subversivos e desafiadores vôos rumo ao infinito.”
Um terceiro reiterou: “e foram as vitórias que o bom Deus nos concedeu. E foram os obstáculos aplainados pela nossa modesta destreza e humilde sabedoria. E foram os estímulos poéticos humanísticos ‘quando me encontro no calor da luta/ostento a aguda e empunhadora à proa...’ que nos sustentaram  durante toda a jornada.”
Um outro abriu o coração: “e esta saudade de um tempo passado? E esta frustração por amores perdidos? Amor de pai que não viu o filho nascer. Amor-amante sem o perfume das flores. Amor entregue a tantos corações e, desgraçadamente, a nenhum coração. E esta angustiante dor no peito por não ter um lar. Por não ter um colo confidente aonde pudéssemos recostar a cabeça. E esta saudade de um tempo perdido, irrecuperável. De um tempo jogado ao léu. Um tempo ‘...que o vento geral tragou, em lufadas, para além dos fios de alta tensão...’ Inalcançável...Inalcançável...
“Fazei isto para celebrar a minha memória.”
Aquela noite não vai sair da minha memória. O gesto cristão da partilha da dor e do pão A história revisitada, ali presente: um memorial. A solidariedade e a união (como nos tempos das primeiras comunidades cristãs). O vil tilintar das doze moedas. A existência sentida de um Judas.
“Serei eu, senhor?”
(Naquela noite, foram derrubados no campo de batalha. Abatidos em pleno vôo. Quando o resultado da disputa foi anunciado, a platéia não se manifestou: naquele momento, reinou um reverente silêncio.
O vencedor não comemorou.
O líder derrotado, então, pediu a palavra e falou. Talvez, como nunca tenha falado antes, na vida. Proferiu um discurso grandioso, opulento, elegante. Assumiu uma postura de estadista, de tutor. De pai. Mesmo derrotado, manteve a cabeça erguida e o semblante sereno.
Poucas vezes na história, um perdedor foi –paradoxalmente- mais sinceramente aplaudido que o vencedor, como naquela noite).









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