sábado, 17 de agosto de 2019

crônica da semana - Antônio saudade longe


Saudade longe
A crônica de hoje se destina a revelar minha saudade. Saudade longe de Antônio.
Certo dia, aprendi o significado da saudade perto. O poeta, num momento inspirado, definiu ser aquela saudade que a gente pode vencer. É aquela que a gente, com um pequeno esforço, resolve logo a parada.
Meu coração pressionado pela dor, hoje tem que falar da saudade longe. Aquela que é implacável. Irremediável. Aquela que não se tira e não se arreda da gente tão fácil, aquela que se inclina às angústias do tempo.
Nesta crônica, declino das prosas inventadas, e me imponho registrar, quedado à saudade, um pouco do cristal lapidado que foi Antônio Francisco.
Conheci Toninho em meados de 1982, na final do Festival de Música da Escola Salesiana do Trabalho. Estava ali naquela noite, liderando o Grupo Hera da Terra que era batido e cravado como um dos favoritos para vencer aquele festival.
Antes disso, só ouvia falar dele. Era considerado na Sacramenta.
O Hera não ganhou o primeiro lugar, mas eu ganhei a presença de Toninho na minha vida. O festival nos aproximou.
Dali em diante, foi só encantamento. Primeiro com a poesia que Antônio fazia. Tinha uma estética centrada na liberdade textual. Emoldurava de dramaticidade cada linha escrita. Ao mesmo tempo apaziguava corações com palavras doces e versos cheios de esperança. Cantava a Amazônia. Amava a Amazônia.
A música nos possibilitou a intimidade. Adiante, conheci o homem, o pai de família, o trabalhador. Um ser abundante, generoso. Tinhas asas maiores que as asas do maior dos condores. E sob elas, abrigou uma legião de amigos. Eu era um deles. Quantas vezes, chegando de viagem, encontrei um prato de comida e um lugar para dormir, na cada de Antônio. Quantos fomos nós a ter as noites passadas no sofá da sala, sentados no chão, procurando uma beirinha na janela, para participar das reuniões musicais que o Antônio fazia na casa dele. Era o lar de todos. Gerações de compositores, artistas visuais, poetas, atores, militantes culturais foram inspiradas em Toninho.
Politicamente era um cidadão fiel às suas idéias. Chegou a cursar Ciências Sociais. E da Academia, trouxe um discurso refinado. Teoria retrabalhada às práticas que ele já desenvolvia na Sacramenta, no calor das lutas populares.
Antônio Francisco foi fundamental para a cultura que se realizou durante muito tempo no eixo Sacramenta-Pedreira. Esta afirmação sou eu que faço, porque Toninho, nunca quis esta reverência. Atuou sempre na articulação, mas raramente ocupou o centro do palco (Embora, se recorrêssemos à Teoria da Relatividade veríamos claramente este movimento sendo invertido. O palco é que orbitava Antônio Francisco).
O nosso último encontro se deu pelas graças da saudade perto. Deu na telha e fomos ter com ele, num almoço animado e cheio de música. Havia em mim, uma fome de Antônio, naquele dia. Não tirava os olhos dele. Fazia perguntas, pedia que tocasse, cantasse canções próprias. Sentia o magnetismo dele me mundiando. Entreguei-me a um transe, que nem era novidade para mim. Fazia parte daqueles encantamentos que ele me proporcionava desde o dito ano de 1982.
Hoje, faz uma semana que Antônio partiu. “Nunca mais aquela saudade tão perto”. A nós, seus amigos, nos deixou um legado largo, estendido, sedimentado nos versos de vida diários... E a saudade longe.
Aquela, que não se tira e não se arreda da gente. Aquela que se inclina implacável às dores da alma.

2 comentários:

  1. Belíssima crônica, meu amigo. Dorida saudade de todos nós.

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  2. Sodré tua crônica é bela. Revela Antônio para os seus e pra quem não o conheceu. Essa saudade de longe, como diz a música, me rói.

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