sábado, 27 de janeiro de 2018

crônica da semana - lourival

Os vetores da bola
Houve uma época que eu morei na Visconde de Inhaúma. Vila Três Irmãos. (como já ventilei algumas vezes por aqui em prosaicas rajadas, nesta Pedreira velha, já morei em tudo quanto foi canto). Com a patota da rua é que passei a jogar bola no Areal, com mais frequência. Entretanto, aquela região eu já conhecia desde os tempos da Aparecida. No primário, na escola da igreja, estudou comigo, um menino por nome Lourival. Morava no final da Vila Santa Isabel. É uma passagem que até hoje existe e que naquele tempo de dantes, ia dar certinho no campo do Asas. Compunha um outro vetor da bola, um cenário paralelo ao Areal e que tinha acesso pelas bandas da Marquês de Herval.
O campo do Asas tinha um gramado ralo entremeado de capim alto, daquele tipo que tinha uma vassourinha na ponta e dava coceira na perna da gente, marcações, dimensões oficiais. Os jogos ali eram combinas de escretes do bairro, pequenos campeonatos de rua, exibições em amistosos do segundo quadro de clubes já conhecidos. Era o templo sagrado do Asas do Brasil, time pedreirense de reconhecida tradição. Bem dizer, era o quintal do Lourival. Em tempo de curiosidade e muito desejo de aventura, sem contar pra mãe, a gente saía em turma da Aparecida, e se abalava para um futebol de travinha ocupando a metade do campo do Asas, até os grandes chegarem e acabarem com a nossa alegria.
Esticando um pouco este vetor da bola e saindo pela linha de fundo do campo do Asas, além de uma ponta de mata, aparecia o campo do Trabalhista. Ali, a parada era de vera. Jogos oficiais do campeonato de bairros, tinha o traçado do meio campo desenhado bem certinho e as traves tinham rede. Os jogadores jogavam de chuteiras. Ninguém se ‘astrevia’ invadir o campo do Trabalhista, para rachas de travinha. Pra lá a gente só ia apreciar mesmo. E era cada cracaço que a gente via. Todos muito plurais, de costumes pouco ortodoxos para atletas. Vi muito zagueiro, no calor da mais disputada partida, dar uma correndinha até a lateral do gramado para pedir o vinte de um Arizona a um obsequioso torcedor, ou tragar uns dois dedos de caipirinha ofertada pela animada torcida. Tropeços, porém, não haviam. As contendas eram  equilibradas, os contatos eram viris, a canela ia até o pescoço, e havia muito romantismo, muito amor à camisa. Os craques saíam com hematomas, raladuras se espraiavam pelo corpo, suando em bicas e trocando a roupa atrás d’uns pés de planta. Mas o gosto da vitória ou o prazer de uma peleja bem jogada, mesmo digerindo uma derrota era contagiante. Saíamos de cada confronto, vitoriosos e derrotados, com a mesma satisfação. Os jogadores, a torcida, a molecada da Aparecida, a ponta vassourinha do capim alto. O Lourival. Felizes.
A vaga do campo do Trabalhista nos nossos dias é ocupada pelo Hospital das Clínicas. O campo do Asas deu lugar a um espigão. O abstrato vetor da bola originado na Marquês, concretizou-se em uma urbanização baseada em condomínios fechados.

Uma horinha dessas vou dar uma entrada na passagem Santa Isabel e vou até o finzinho procurar um senhor por nome Lourival.

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