sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

crônica da semana - areal o campo dos sonhos

O campo dos sonhos
Caminhando pela Visconde de Inhaúma, partindo da Lomas Valentinas, no sentido da Doutor Freitas, aos poucos vou reconstituindo uma geografia sentimental. À direita, pouca coisa mudou. O conjunto residencial dos militares sempre existiu sob a proteção dos muros e das divisas. Do lado esquerdo, o traçado suburbano. Casas modestas com cobertura de zinco corroído ou de palhas vincadas sintetizam a estética da periferia, a arquitetura das margens. Mangueira portentosa no terreiro à frente. ‘Chagão’ estirado, anunciando lá no fundo, uma vila de casas geminadas. Cachorro enfezado atrás do portão de estacas farpadas.
A Visconde é larga... Naquele tempo não tinha asfalto, mas assentava-se a rua sobre terreno de piçarra seco e duro. Moleques, fazíamos o trajeto em várias e divertidas modalidades: beirando as casas modestas, mexendo com os cachorros e saindo em desabalada. Batendo bola de uma margem da rua à outra, numa evolução controlando ao mesmo tempo, velocidade e domínio da pelota. Em outras ocasiões, nos largávamos à aventura. Juntávamos as moedas para o aluguel de bicicletas. Era comum, pelas redondezas, oficinas que alugavam bicicletas para a molecada. A gente pegava as mais pirentas, só para ‘esmerilar’ mais. E era cada exemplar. Sem pedal, sem freio, sem o selim, só com o varão. Pneus com câmaras expostas. Era um verdadeiro rali, aquela ruma de moleques com suas máquinas mortinhas, fazendo e acontecendo. Em todas as modalidades, o destino era sempre o Areal.
Era um terreno imenso, traçado em planície de areia branquinha que começava nas imediações da Pirajá e ia dar na biqueira da Doutor Freitas. Plano, ventilado. Livre, desimpedido. Tapete estendido para os garotos da periferia. O campo dos nossos sonhos.
Nas tardes de sábado, o Areal recebia dezenas, centenas de meninos com fome de bola. A organização de dava sem muitos esforços, a língua da diversão era falada com desenvoltura e gentileza. Os campos eram demarcados virtualmente, respeitando a divisão possível e impossível. Embates eram travados entre estudantes das mesmas escolas, mas de turmas diferentes; time do lado de cá da rua contra o time do lado de lá; Passagem do Arame confrontando a passagem Itamarati. Time com camisa versus time sem camisa. Cabia todo mundo. O único limite era a linha de fundo. Não havia limites laterais. Se o lance migrasse para o outro jogo, do lado, crise não havia. Licenças eram dadas, espaços eram criados. Às vezes até os times que tinham o campo invadido paravam o jogo e assistiam à peleja dos intrometidos se definir.
Aquele mundo de moleques, aquela ruma de bolas sendo alçadas daqui pra’colá, as chinelas marcando as travinhas, os suores e os cordões de sujo no pescoço eram cenas e ornamentos que se adiantavam nas horas. Só quando sol caía no horizonte e as cigarras se animavam em cantorias é que as primeiras partidas eram encerradas e os times começavam a diáspora.

Caminhando pela Visconde, me avio reconstituindo minha geografia sentimental. E o que fazem hoje, nas tardes de sábado, os garotos que têm fome de tudo e de bola?

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