O barranco fértil do rio Acre
A poronga ardia no alto da cabeça e o lume
fino e quente o guiava. A terra úmida o prendia, atrasava a rota, atolava a
vontade. Consumia o ânimo. Gotejos lembravam a noite perto, o sono querendo
mais, o assanhamento com a mulher no leito falhado de pachiúba... e o quentinho
do abraço.
Se não completasse a rua de seringa, não
haveria olhares carinhosos e nem cumplicidades promissoras. Tinha porque tinha
que vencer o lameiro. Nem sei dizer que período era aquele. Se era dia, se era
noite, madrugada alta, alvorecer. Para o seringueiro o tempo não é contado em
ponteiro de relógio. É medido em aviamentos, em cada palmo trilhado na
escuridão, em instantes curtos de carícias, carinhos, prazeres ásperos e
prestos. A poronga ardendo, o gotejo, a solidão. Os filhos, a mulher, dormindo
em leito de pachiúba falhada. A sina.
A jornada do seringueiro começava cedo e
tinha um motivo para isso, mas também, terminava cedo. Em 1992, quando visitei
o seringal onde nasci, lá no Xapuri, experimentei a rotina do campo. Na
‘colocação’ ainda havia boa parte da família do meu pai. Tios, primos, os
filhos dos filhos dos tios. Passei cinco dias lá, enfurnado. O ritmo é o mesmo,
de tantos e tantos anos. O seringueiro sai para a mata, por volta das quatro da
manhã. Tem uma meta de árvores pra cortar. As seringueiras são disseminadas na
selva, mas tantas existem no Acre, que dá pra organizar traçados de colheita
que são conhecidos como ruas. No início da jornada, no caminho de ida, ele vai
riscando os troncos e posicionando a tigela, que fica aparando o leite. Nessa
hora, a orientação que tem vem da poronga, daquela força vital de homem da
floresta e de alguma esperança de vida melhor. Na volta, o clarão do dia já se
anuncia. A seiva é coletada e dali, até o sol alto, o seringueiro se dedica ao
defumo das bolas (pélas) de borracha. O tempo desmilinguindo, rareando, o dia
indo embora. Quando o seringueiro se livra das desobrigas com o patrão, aí é
que ele vai pensar na casa, nos filhos, catar o de comer (por isso sai no
escuro ainda: para esticar o tempo, para arranjar uma beiradinha do dia em que
possa ir atrás de uma caça fácil, um veado mateiro, uma paca gorda; usa o
restinho de luz do sol, para chapinhar minhocas, tentar uns peixes, plantar
algumas raízes no barranco fértil do rio Acre).
Nem bem anoitece, uma última descida ao
igarapé para arear a panela ou para um banho restaurador sela o fim da lida. Um
radinho, ainda insiste na pregação do Ângelus, mas o sono vem irresistível.
Fiz essas coisas quando fui ao Acre na tentativa
de reviver o tempo perdido de meu pai. Sem certeza ou solidez porque o tempo
para ele não se deu ao ritmo dos ponteiros do relógio. Idealizei um
seringueiro.
Meu papai morreu aos 38 anos, num 31 de março.
Era jovem. Muita árvore tinha pra riscar ainda. Minhas débeis tentativas de reencontrar
meu pai, não deram resultado. Não o encontrei nas ruas de seringa. Mas não
esmaeci não. Depois daquela viagem ao Acre, alegra-me a certeza de ter meu
papaizinho abrigado esses anos todos, no lado esquerdo do peito.
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