domingo, 16 de abril de 2017

crônica da semana:dordolho

Caso de amor, cólica ou dordolho
Primeiro: ajusto o fone de ouvido, sintonizo o celular na minha rádio preferida e daí ganho meu rumo no final da tarde. Uma rotina que há muito eu estava a fim, esta de interagir com o agito do centro da cidade no fim do expediente. E vou sacando. O cenário, as pessoas, os vícios, costumes e imperfeições.
Um sinal de como foi o dia, é o vendedor de coco que fica no largo das Mercês. Se ele ainda está ali, naquela hora, quer dizer que o dia foi frio (Belém 23 graus), o povo não se animou e a venda foi pouca. Por causa disso, vai aventurar até mais tarde. Enquanto bato o pé na praça Visconde do Rio Branco e interpreto o tempo e a temperatura, a moça da ótica passa por mim. Aparece sempre descendo a escada na outra quina da praça. Com a postura, elegância, cílios postiços e salto alto de vendedora de ótica. Outro dia, quando nos cruzamos, percebi que chorava. Imaginei coisa ruim, desemprego. Mas não. Nos dias seguintes, nos topamos de novo. Ainda bem que continua empregada. Deve ter sido algo de amor ou de cólica, ou mesmo de dordolho por causa dos cílios grandes.
Após a estátua do doutor Gama malcher, confirmo que a mureta que fica pros lados do belo casario, é um autêntico mictório público. Não tem um dia que eu não flagre um cidadão fazendo xixi ali. E sem cerimônia alguma. Na maior naturalidade. As pessoas passando, os ambulantes se desmobilizando, fregueses escolhendo coisinhas na feirinha ao pegado e ele ali, se aliviando na maior. Na Santo Antônio, me deparo com o relógio lá no alto da Paris N’América, que não funciona, e que marca a mesma hora toda a vida. Um trabalhador, como sem falta, recolhe as travas de uma porta metálica, acomodadas na calçada do prédio abandonado em frente. Barraquinhas cobertas com lonas azuis pingando o restinho de chuva da tarde entremeiam-se às calçadas falhadas, assentam-se sobre um trilho silencioso e rompem o paralelismo dos paralelepípedos, expurgados do leito da rua. A loja mais animada da cidade surge no meu flanco direito. Barulhenta que só ela, mas com certa graça. No final do dia, os vendedores se agrupam à entrada, ainda acesos. Dançam, sorriem uns para os outros, vivem um momento deles, de missão cumprida. Ainda vou comprar um isto ou um aquilo naquela loja. Talvez um pouco de ânimo com o futuro ou um fogão de seis bocas.
Ao despontar na Presidente Vargas, faço uma leitura da minha parada. Antevejo se meu ônibus vai lotar ou não. O sinal abre para os carros. Embora haja um estirão a percorrer até o ponto sinalizado, o ônibus para bem antes; um outro, para logo atrás e fecha o cruzamento, o meu que vinha abeirando, tira por fora e queima a parada. Dá uma raiva! Que povo é este que atrapalha o trânsito por birra, por opção. E que serviço é este que me deixa acenando em desespero, feito besta, para um ônibus que não está nem aí pra mim? Minha cidade descompensada, descontrolada. Agitação ao fim do dia. A chuva pingando. Os olhos ardem. Lacrimejam. Um olho chora de amor por esta cidade, o outro por causa de uma cólica, de um assombro, ou de um dordolho mesmo

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