sábado, 30 de janeiro de 2016

crônica da semana - um bom lugar

Um bom lugar
O tempo vai passando, a gente vai reconhecendo perdas, percepções saltadas, instantes queimados, marcas atalhadas. Aí nos chegam os filhos, crescidos, atentos. Mais atentos e bem nutridos de realidade que o mundinho de Raimundinho, e nos apresentam Sabotage, o Maestro do Canão, artista da favela, rapper compromisso, cantor e compositor de rimas nuas e cruas. Poeta de versos providentes e também agradecidos quando retratam um bom lugar.
E um bom lugar para o cantor de Rap, que morreu tragicamente há 13 anos, na zona Sul de São Paulo, é o ambiente onde as relações, os amores, e os temores são construídos. Onde o cantinho da mãe, o tanque e o ferro de engomar reaquecem a alma; a história, a vida curta e perigosa dos amigos são cantadas, na moral. Raras felicidades fertilizam intensas e eternas no chão do bom lugar. São lembranças boas de conquistas, são contornos emotivos, vielas e traçados afetivos, bosques e calçadas que guardam carinhos doces. Na curta exposição pública que teve Sabotage, deixou claro ele, o apreço e o respeito pela favela de onde veio.
Fragmentos mínimos do nosso lugar, inegavelmente somam-se e agigantam-se quando compõem a nossa personalidade. Nosso jeito de ser fabrica o que se pode chamar de nossos grandes tesouros: valias do bom lugar. E quando eles nos faltam, sofremos.
(Nos tempos de hoje, percebo vazios, um abandono, tesouros roubados).
A Pedreira é meu bom lugar. De tudo que faço, os versos que construo, as canções que componho, trazem a Pedreira como tema. Mas... Revelo sem tergiversar: na biqueira, bem ao pegado do meu coração está a Sacramenta gozando dos mesmos afagos. Quedei-me as asas pela Sacramenta, na adolescência, logo após ter ingressado no movimento jovem da Escola Salesiana do Trabalho. Antes disso, nem imaginava o que se dava por ali. Minha maior aproximação aconteceu, num triz, também na Escola, quando da realização de uma das primeiras edições da Coleta de Emaús, que acontecia ali, antes de ir para o Jurunas. Anos depois, criei uma intimidade tal com a Sacramenta que das pontes de todas as passagens, tenho história. Desde lá, das bordas da Maracangalha e do Elo Perdido, até o rego serpenteado do canal da Pirajá.
Nos tempos de hoje, o contato geográfico entre Pedreira e Sacramenta sofreu uma drástica modificação. A Pedreira (digo com toda convicção, não quis isso) estendeu seus limites, e com tal insensibilidade se deu este novo desenho que abarcou em seus domínios o campo do Sacramenta e a praça Eduardo Angelim. Eu mesmo me sinto pouco à vontade diante destas conquistas. Imagino os moradores deste bom lugar. Penso como anda o coração do professor Guilherme Pimenta, herdeiro de um dos fundadores do Sacramenta Esporte Clube Beneficente, sendo apartado da glamorosa Quadra do Sacra. Um bom lugar inspira o animus, o apego. Não se mora num bom lugar. Domicilia-se. Abriga-se o ser, conforma-se o espírito.
Nos tempos de hoje, um certo constrangimento me consome, quando vejo um bom lugar como o bairro da Sacramenta ser amputado de território, de estilo e de histórias.


Um comentário: