sábado, 21 de junho de 2014

crônica da semana - degelo

Degelo
Estava tudo tão nos conformes que até estranhei. Saímos cedo de casa. Sem estresse. Tão tranquilo estava que dei uma relaxada, saí contando os passos. Pensando na morte da bezerra. E tanta foi a minha patetice que perdi o pôr do sol no Veropa, sábado passado. Quando cheguei na escadinha havia só o clarão no horizonte. A sorte é que era um clarão bem clarão mesmo. Um matizado lindão, turbinado. Todo o encanto, todas as cores (com uma queda drástica, radical para um fervoroso vermelho). Os flashes e os desenhos luminosos estavam ali emoldurando o céu. Menos o sol. A bolona do sol não deu pra ver, não deu as caras, porque um nublado sem quê nem pra quê se dispôs malino na linha do horizonte àquela hora certinha de 6 e  uns caroços da noite. Foi legal que só ver aquele bordado doirado se exibindo altaneiro como índice, como signo, como significado da palavra beleza. Mas...mesmo assim, mesmo diante do deslumbre daquela paisagem, eu fiquei piriricas. É que tô tareando o lugar certinho em que o sol se põe por esses dias. Tenho porque tenho de saber isso. É uma questão de honra. No ano passado, nesta mesma época, perdi a pegada. No retrasado, também. Deste ano não me escapa. A minha valência é que daqui a pouco, tenho uma outra chance. E olha que vai ser na data tida e batida para esta observação, para esta certificação.
E é bem hoje, olha só. No dito dia de hoje acontece o solstício. É um evento que tem a ver com o caminhar do sol pelo céu. Já falei dele aqui. Acontece em Junho e Dezembro. Na conta certa do dia de hoje ele marca o ponto mais distante que o sol alcança do Equador, pro lado Norte. Esta posição delimita uma região da Terra conhecida como Trópico de Câncer e define o início do Verão no hemisfério Norte. Aqui na beira da baía do Guajará, o sol está se pondo pr’acolá pras bandas da ilha das Onças, nas imediações do furo do Nazário. E é esta posição cravada que vou buscar hoje. Fotografar, anotar. Descrever o entorno. Depois, vou monitorar a caminhada do sol. Sei que em dezembro ele vai se pôr já perto do porto do Arapari e até lá, quero acompanhar este passo-a-passo até o outro extremo. Sei que isso não é coisa de gente sã. Mas é meu calibre, meu prazer, arte que me vale.
Mais ainda quando faço um recorte neste dia de hoje e me abalo numa viagem imaginária lá para o Norte do mundo, naquela região onde o Verão começa de vera. Construo um cenário em meio à floresta boreal: um céu azulado sem filtro. A umidade se enxerindo depois de um tempo seca por aí. Em meio às coníferas regos pedregosos começam a drenar uma água cristalina, quase jóia, quase bênção. Um fluxo que faz um barulhinho igual ao de sininhos de bronze, e que desce alegre, liberto do degelo dos glaciares efêmeros esculpidos num vítreo agudizado, desenhados em traços dominadores sobre a Taiga. Éras-te, chega aqui, no abrasador meio do mundo, me dá um friozinho. E eu me entrego a este ‘pra dizer’ gélido, a esta fantasia setentrional. Lá em cima, a Primavera cumpre sua sina e se retira despertando a matéria morta escondida no gelo. Então um verde revolucionário desponta pelos estirões. Flores reinam nas reentrâncias e vales. Coníferas grassam nos cerqueiros. Os animais reaparecem, uns pássaros migram pra lá, a formiguinha sai dos subterrâneos. O dia não anoitece tão cedo e a vida se multiplica no Norte do mundo... O barulhindo de água descendo dos vales encravados...

Daqui a pouco, vou localizar o ponto exato onde o sol se põe na ilha das Onças e dizer pra ele bem baixinho “e tu heim, seu rapazinho, que daí do teu cantinho degelas e comandas os tantos e longes, e tu, heim”.

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