segunda-feira, 26 de junho de 2023

crônica da semana - do menor para o maior II

 Do menor para o maior II

Eu sou do tempo que a gente cantava o hino, na entrada da escola. Um rito que, encenado dentro daquele contexto de regime militar, catava sinais de ordem e progresso. Mas quando! A fila era a prova de fogo da sisudez militar. E dava de dez na rigidez comportamental. Moleque virava, mexia, pintava os canecos, antes e até durante a execução do hino. Desde a avacalhação desmedida na hora de formar, quando nossa camisa ficava toda pensa de tantos puxões que recebia na rebeldia dos braços ao cobrir à frente, cobrir ao lado, descansar; até a saída de forma, era um terror variado. Destaque que, na vera e no dito da malinação, tinha uma turminha que ia além, se superava. Arrisco pensar hoje, que aqueles meninos péssimos expressavam uma personalidade afeita à arenga, ao exercício de alguma superioridade sobre o outro, pelo uso de força, da intimidação e da humilhação. Mesmo que o outro fosse da mais pura paz. Que relevasse, fizesse que não era com ele. Não tinha escapatória. Os atentados não davam sossego, e se aviavam nessa prática naquele ambiente, dizque, higienizado pela ilusão conservadora atada ao cerimonial do hino.

Tirando uma pela outra, eram atitudes impulsionadas por um ódio latente, um fogo atentatório, digo até, algo próximo ao sadismo, e ligadíssimo à beligerância bem pensada, do mesmo jeito que aconteceu no último final de semana em que o Brasil jogou na Espanha.

Na Europa, o clima arremedava acolhimento, penitência coletiva, negação providente do racismo. Da discriminação e do clima tenso. Na pauta uma forma articulada, de modos a envolver o maior número de pessoas dispostas a apoiar as lutas contra a intolerância e especialmente contra as agressões sofridas pelo jogador brasileiro Vinícius Júnior.

Aí volto à fila dos anos 70, para cantar o hino. Naquela atmosfera cívica, todo mundo concentrado na letra nada fácil do Joaquim Ozório, não é que tinha um moleque que saía lá de trás, do último lugar e ia até o primeiro da fila, bicudar a canela do coleguinha! Desafiava toda a organização, desmontava qualquer discurso ordeiro, desfazia a menção que fosse de respeito fraterno e empastelava o rito. Causava, criava um desconforto, era reorientado, pegava uma bronquinha e saía na boa. Para alguns, deixava aquela cena de ataque gratuito, como herói. Ganhava fama e adeptos como o destemido, aquele que desafiava a organização, impunha o seu poder e subjugava os mais discretos ou aqueles que representavam a minoria abandonada de voz e vez. Do alvo constavam os baixolinhas como eu, os negros, os de roupas remendadas, as meninas, os educados e isentos...

O clima na Europa era, podemos entender, de reparação, de uma acanhada reação ao preconceito. Dias antes Vini Júnior havia sido atacado com atos e palavras preconceituosas, em um jogo na Espanha. Logo em seguida em atuação pela seleção brasileira, a delegação brasileira exibiu sinais de resistência ao racismo, representados pela camisa preta, inédita, do uniforme, protestos no gramado e sensibilizações fora das quatro linhas.

Porém, não tem aquelas personalidades afeitas à arenga? Pois não foi que, em meio àquela cordialidade, às pregações de aceitação e tolerância realizadas no estádio, me sai um cidadão péssimo, integrante, inclusive, do grupo de trabalho que atuava no estádio e pratica os mesmos atos de racismo contra o assessor do Vinícius Júnior, com o requinte odioso, de abrigar uma banana no bolso do uniforme!

Tem gente, sofro ao admitir isso, que nasce para espalhar a cizânia, criar o terror, puxar a gola da nossa camisa da escola, sair de trás da fila e bicudar o outro lá na frente.

Ah, a fila naquele tempo era do menor para o maior. Adivinhem vós quem era o primeiro, o bicudado...

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