sábado, 20 de março de 2021

crônica da semana - a rua

 A rua

Nós dois, em termos de coisas e de temas, nos embaralhamos. Nos mimetizamos na desgovernada saudade. Março nos chega atiçando medos. Mas o que incomoda mesmo é esta solidão compulsória, este ausente presente. Este futuro oco. Sem pé nem cabeça nessa semana de março que devastou minha alma, acudi-me a Argelzinho meu filho, e me alento no exercício de duvidar quem é ele e que sou eu, por aí, pela rua...

“Eu mesmo sempre fui um rueiro curioso. Aprendi primeiro todos os bairros e ruas que o charmoso Pedreira-Lomas dava o ar da sua graça. Descobri a Cidade Velha, as vielas do Jurunas e do Guamá. Quando fiquei grandinho, explorei as belezas da noite de sexta-feira. Que pulsava música, alegria, medo e violência - tudo o que o brasileiro gosta - nas ruas escuras do centro. Na volta pra casa, eu apostava no infalível Pedreira-Condor.

O meu grupinho começava o circuito noturno no Meu Garoto, dava uns goles na cachaça de Jambu pra esquentar e tinha conversas um pouco mais tímidas sem tantas complexidades alcóolicas. Depois, atravessava a Praça da República sentido Bar do Parque, quase sempre cantando, carimbolando, sambando, pulando, frescando.

Nós chegávamos à batucada, pedíamos umas geladas - quase sempre quentes - ficávamos na nossa rodinha, bebendo, contando mentira, com o teor alcoólico lá em cima, a imaginação viajava pela copa das mangueiras… Ali, pensava um dia me tornar geólogo, quem sabe escrever crônicas sobre a noite, o tambor, a vida.

Lá pelo meio da semana, a rua chamava de novo. Dava pra sentir o gosto da cerveja gelada na boca, vocês sabem como é, o explodir de bolhas com o sabor amarguinho. A galera se arrumava toda desde cedo e emendava o caminho do dever, direto pro querer, pro Oito.

Ali, naquela esquina da Dr. Moraes com a José Malcher, ficava o bar que me iniciou, lá tomei meu primeiro porre de cerveja e fumei meu primeiríssimo cigarro. Falávamos de amor, de Belém, de música, divagávamos sobre o capitalismo, o socialismo. Nossas maiores preocupações eram o horário do ônibus e a vizinha - boatos que faltei um dia e, no dito, ela jogou um balde de água na galera -. além dos ônibus que vinham em alta velocidade na curva Palacete Bolonha, remexendo nossas cabeças de bêbados, nos lembrando da finidade da vida e da noite. Era um te esperta, moleque!

Um dia voltando pra casa, num banco solitário, no último Pedreira-Condor, olhando as ruas, pensei na truculência do Poder, e me impressionava a convicção de que aqueles 15, 20 jovens traziam algum perigo à sociedade, com um litrão numa mão e um cigarro entre os dedos da outra. Quase sempre com roupas de tons pastéis, cabeludos, apaixonados por alguém ou por alguma coisa, beijavam-se e abraçavam-se.

Parece que todas as vezes que escrevo tenho saudade de algum momento da minha vida. Meu único desejo sempre foi o fim desse pesadelo. Há um ano não vivo a rua, o sol ou a lua, nem a amizade. Imploro que se você puder, fique em casa e não aposte na sorte, hoje vivemos o auge do terror presidencial e viral.

Agora o “8ito”é livro. Paloma Franca Amorim nos contará sobre a tentativa de apagar até o fogo noturno na nossa acalorada cidade. Estou ansioso pra passear de novo pelas ruas escuras do centro, pelos largos, encruzilhadas e praças, que me fazem ouvir de novo os sons dos batuques compassados de samba e carimbó. Perdi o medo dos livros que falam do mundo lá fora, viajo nas palavras e faço da minha mente a nossa livre rua.”

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