sábado, 10 de janeiro de 2015

crônica da semana - chuva

A chuva nossa de cada dia
Belém é assim, né, daqui pra’li nubla, cai o toró, passa, daqui a pouco emenda dois dias de chuvinha chata e é carnaval.
Taí coisa que sou íntimo aqui em Belém, é da chuva. Nos damos há muito tempo. E sem reservas. Não lembro a vez que tive uma sombrinha, um guarda-chuva, uma capa daquelas amarílicas. Nossa relação é transitiva direta. Dispensa intermediações. Encaro pampeiros dos mais poderosos beirando as marquises, arregaçando as calças. Do tanto que, em tudo por tudo, não é qualquer chuva que me para. Ainda mais indo pra casa. Sou da turma que acha que quem vai pra casa não se molha. Mas não conto vantagem sem um senão. Às vezes, ‘a sentença se anuncia bruta’ e sem defesa posta, adiro a uma alternativa emergencial e um jornal da véspera dobrado ao meio pra aumentar a resistência, me acode.
Alguns reveses me abateram. No Auto do Círio de 2013, perdi feio. Não dei nada por aquela nuvenzinha se formando no início da noite. Pingou e passou. Fiz uma volta na concentração, estiquei até a Praça da Sé, admirei a cenografia, divisei conhecidos no palco e quando ia voltando para a concentração, o temporal arriou. E foi chuva!  Em pleno outubro, foi água que ninguém esperava. Tentei refúgio numa concorridíssima mangueira, mas ela não deu vencimento. Consegui um cartaz da santa num papel bem grosso, só que ele também não aguentou, foi se estiolando até se esbandalhar de tantos e inglórios choques contra os pingos deste tamanhão que caíam do céu. Naquela noite fiquei todo ensopado, tremendo feito vara verde e, já numa última tentativa de proteção, colado a uma beiradinha da igreja de Santo Alexandre, joguei a toalha. Não consegui resistir àquela chuva quase que horizontal, aquela que vinha buscar a gente donde estivéssemos. Aceitei a derrota e fui pra casa pingando de desânimo, mas como ia pra casa, confirmando o credo, quando bati a chave na porta, estava sequinho da silva.
Doutra vez, o golpe foi de revestrés. Não foi na rua, muito pelo contrário, estava bem defendido pelo telhado do Cinema Paraíso. O filme era A Vida de Cristo, mudo e ainda sem mostrar o rosto de Cristo (fita pré Zefirelli). Na hora da agonia veio um barulhão lá de fora. Trovão, treque-treque no telhado, Um chiado volumoso de água escorrendo pelo chão do cinema. Um medo tomou conta de mim. O Cristo sendo traído, Maria chorando, Pedro mentindo três vezes. Aquilo foi me dando uma coisa, pra mim era um aviso. O prédio iria desabar, alagar, pulverizar-se. Algo iria acontecer. Convenci minhas irmãs do perigo que corríamos e propus a saída imediatamente, mesmo debaixo de chuva. Elas objetaram prevendo que a mamãe daria o maior carão porque tínhamos gastado uma boa grana com os ingressos e saímos assim antes de ver a glória da ressurreição. Mas logo concordaram comigo depois que um corisco iluminou todo o salão do cinema bem na hora que Pilatos lavava as mãos. E foi pernas pra que te quero pela Pedro Miranda com os olhos atrapalhados pelas gotas que não tinham modos nem fim. Claro que chegando em casa, foi cinturãozada pra tudo quanto era lado. E não teve nada de ai mamãezinha, não. Naquela sexta-feira santa friinha de tanta chuva, dormimos com o couro quente.

Ocorre que nem tudo é perda ou dano, tenho uma boa do carnaval de 1982 quando estávamos no cordão do Aguenta o Tombo, eu e minha patota. Emprestamos a nossa ginga a uma batalha de confete lá na Cremação. Fomos pegando chuva desde o início da Alcindo Cacela. Do meio pro fim, uma pequena se achegou. E então, foi um tombo jeitoso pra cá, um tombo carinhoso pra lá, sob a chuva nossa de cada dia.

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