A chuva nossa de
cada dia
Belém é assim,
né, daqui pra’li nubla, cai o toró, passa, daqui a pouco emenda dois dias de
chuvinha chata e é carnaval.
Taí coisa que
sou íntimo aqui em Belém, é da chuva. Nos damos há muito tempo. E sem reservas.
Não lembro a vez que tive uma sombrinha, um guarda-chuva, uma capa daquelas
amarílicas. Nossa relação é transitiva direta. Dispensa intermediações. Encaro pampeiros
dos mais poderosos beirando as marquises, arregaçando as calças. Do tanto que,
em tudo por tudo, não é qualquer chuva que me para. Ainda mais indo pra casa.
Sou da turma que acha que quem vai pra casa não se molha. Mas não conto
vantagem sem um senão. Às vezes, ‘a sentença se anuncia bruta’ e sem defesa
posta, adiro a uma alternativa emergencial e um jornal da véspera dobrado ao
meio pra aumentar a resistência, me acode.
Alguns reveses
me abateram. No Auto do Círio de 2013, perdi feio. Não dei nada por aquela
nuvenzinha se formando no início da noite. Pingou e passou. Fiz uma volta na
concentração, estiquei até a Praça da Sé, admirei a cenografia, divisei
conhecidos no palco e quando ia voltando para a concentração, o temporal
arriou. E foi chuva! Em pleno outubro,
foi água que ninguém esperava. Tentei refúgio numa concorridíssima mangueira,
mas ela não deu vencimento. Consegui um cartaz da santa num papel bem grosso,
só que ele também não aguentou, foi se estiolando até se esbandalhar de tantos
e inglórios choques contra os pingos deste tamanhão que caíam do céu. Naquela
noite fiquei todo ensopado, tremendo feito vara verde e, já numa última
tentativa de proteção, colado a uma beiradinha da igreja de Santo Alexandre,
joguei a toalha. Não consegui resistir àquela chuva quase que horizontal,
aquela que vinha buscar a gente donde estivéssemos. Aceitei a derrota e fui pra
casa pingando de desânimo, mas como ia pra casa, confirmando o credo, quando
bati a chave na porta, estava sequinho da silva.
Doutra vez, o
golpe foi de revestrés. Não foi na rua, muito pelo contrário, estava bem
defendido pelo telhado do Cinema Paraíso. O filme era A Vida de Cristo, mudo e
ainda sem mostrar o rosto de Cristo (fita pré Zefirelli). Na hora da agonia
veio um barulhão lá de fora. Trovão, treque-treque no telhado, Um chiado
volumoso de água escorrendo pelo chão do cinema. Um medo tomou conta de mim. O
Cristo sendo traído, Maria chorando, Pedro mentindo três vezes. Aquilo foi me
dando uma coisa, pra mim era um aviso. O prédio iria desabar, alagar,
pulverizar-se. Algo iria acontecer. Convenci minhas irmãs do perigo que
corríamos e propus a saída imediatamente, mesmo debaixo de chuva. Elas objetaram
prevendo que a mamãe daria o maior carão porque tínhamos gastado uma boa grana
com os ingressos e saímos assim antes de ver a glória da ressurreição. Mas logo
concordaram comigo depois que um corisco iluminou todo o salão do cinema bem na
hora que Pilatos lavava as mãos. E foi pernas pra que te quero pela Pedro
Miranda com os olhos atrapalhados pelas gotas que não tinham modos nem fim.
Claro que chegando em casa, foi cinturãozada pra tudo quanto era lado. E não
teve nada de ai mamãezinha, não. Naquela sexta-feira santa friinha de tanta
chuva, dormimos com o couro quente.
Ocorre que nem
tudo é perda ou dano, tenho uma boa do carnaval de 1982 quando estávamos no
cordão do Aguenta o Tombo, eu e minha patota. Emprestamos a nossa ginga a uma
batalha de confete lá na Cremação. Fomos pegando chuva desde o início da
Alcindo Cacela. Do meio pro fim, uma pequena se achegou. E então, foi um tombo jeitoso
pra cá, um tombo carinhoso pra lá, sob a chuva nossa de cada dia.
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