sexta-feira, 16 de julho de 2010

Eu adoro comer verbos


Adoro. Não posso passar por uma banca de esquina que já me assanho e vou logo pegando uns intransitivos regulares, uns subjuntivos derivados, uns empanados verbos de ligação. Traço todos. Não precisa que sejam do presente do indicativo, é necessário apenas que indiquem um pretérito de bons modos temporais.
Importa, também, que se apresentem perfeitos, observo, mas por causa de algumas sintaxes calóricas, e por umas objetivas e diretas dicas do meu médico, hoje dou preferência aos mais facilmente defectíveis. Com enorme prazer estimulo a minha palatização, provoco revoadas linguodentais, realço a minha vocalização: huuummm! Hummmmm! E vou exercitando os meus mecanismos articulatórios, desarticulando em análises sensoriais os sabores dos radicais greco-romanos, franceses, saxões... tupi que seja; separando pro finzinho a vogal temática, nasalizando, percebendo as ambigüidades e por fim, me aquietando a espera de uma digestão tranqüila das desinências número-pessoais.
Se eu estiver com pressa, dispenso complementos. Mas se a conjugação estiver harmonicamente composta por um tempo de paz e por um presente do subjuntivo que permita que eu sente e que eu coma sossegadamente, procuro o conforto de um bom restaurante, a companhia de uma pessoa de singulares adjetivos e a luz confidente de uma vela ligeiramente oblíqua aos sujeitos.
Nestes momentos, uma boa música cai bem como aperitivo. Olhos nos olhos, mãos sobrepostas e afagos discretos somam-se como partes do discurso, agitam o meu íntimo infinitivo e impõem irrestritas locuções prepositivas acerca do verbo amar.
E é por isso que adoro comer verbos. Por causa das flexões possessivas: ‘nem sempre provocam a tua ação, e em hipótese nenhuma, imediatamente, atiçam a minha reação diante de um inominável adeus (o metabolismo da transitividade que transforma a tua ausência em minha solidão se dá ao longo de um tempo indefinido)’; os verbos me atraem ainda, por causa das digressões sensitivas do ser e do estar e também, das apreciações relativas dos fenômenos da natureza como daquele enluarado anoitecer que faz chover saudades em mim.
Não acho, no entanto, que sou um especialista. Não conheço todos os sabores. Sou um apreciador proclítico. Sou um pronome ali no início, suscetível aos destemperos de concordância, de conotação ou de significação mesmo. Desconheço completamente o gosto de uma mesóclise e me acanho diante de uma fulgurante construção em ênclise. Acho que por puro preconceito. Sei lá, acho que são petiscos degustados somente pelo alto clero. Não se vêem essas coisas nas esquinas da língua.
Alguns sabores me são distantes. Não sei dos segredos que compõem a receita de um ‘se tu vires’ condicional ou de um ‘para tu comeres’ impessoal. Mas adoro comer verbos. Apesar de alguns deles se dispersarem em receitas refinadas e exigirem articulações condoreiras, altas, muito altas...Altaneiras.
Mas se estiverem na base das frases, traço todos. Apesar de alguns fermentarem em meio a condimentos ocultos e depois sumirem no mundo, vaporizados pelos indecisos índices de indeterminação do sujeito. Quando me vejo nesta peleja, apelo para a minha partícula apassivadora e acabo me contentando com uns predicativos do objeto simpáticos ou com uns advérbios de intensidade legaizinhos.
Alguns verbos são amargos. Entram atravessados, dissonantes. Não são fáceis de engolir. Exibem-se em pratos frios como ‘morrer’, ‘sofrer’, ‘perder’.
Outros são doces, nos enchem de esperanças e nos estimulam a resistir, a amar, a cantar, a amar, a viver e a sorrir.
Eu adoro comer verbos.

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