sábado, 8 de abril de 2023

crônica da semana - trem das cores

 Trem das cores

Passei a semana ensaiando, fiz uma sessão em minha página na internet, expus a afeição que tenho pela canção ‘Trem das cores’, de autoria do baiano Caetano. É melodia refinada, tem uma harmonia delicada, embora de difícil execução, coisas de Caê. Se engolir uma sílaba melódica, a música desanda. Entretanto, no caso, se desandar, não se perde de tudo. Somos mortais, simples, de dons limitados, e a nós é permitido aquele generoso desconto. Digo nós, porque recrutei meu filho Argelzinho, para apresentarmos juntos a canção, no último domingo, como homenagem à vovó dele, minha sogra, que completou intensamente vividos 76 anos. A escolha da música tem um simbolismo. Uma razão potente, cheia de significados.

Fez a trilha sonora de um reencontro. Foi tudo muito denso no dia. O mundo estava assombrado com o Coronavírus. A gripe tirava a vida de muitos queridos sem licença alguma ou piedade. Minha sogra que no início da pandemia estava no interior, por lá ficou isolada. Contato somente com poucos membros da família e apenas para assistências inadiáveis. Isso tudo no interior. Passou meses sem vir a Belém. E era a opinião de todo mundo que ela, por lá, em favor da saúde, aguentasse o tempo e a distância. A situação estava delicadíssima. Aqui em Belém já chorávamos a perda de parentes próximos e amigos muito queridos.

O tempo passou lento e de forma sofrida. A família, as crianças, a netaiada, a bisnetaiada, mesmo no rigor do isolamento acusaram a falta da bisa, da mãe, da avó. Eu, mesmo defensor das eficientes resultantes do distanciamento, cheguei a admitir uma operação para que as saudades fossem aplacadas. E eis que aconteceu. Depois de longuíssimos cinco meses exilada no interior, pela precisão de uma consulta médica, ela retornou a Belém.

Houve uma elaborada estratégia, afinal, a curva da tragédia gerada pela Covid-19 só subia. Uma casa preparada exatamente para recebê-la, com freqüência restrita. Consultas e exames realizados no estrito termo da hora marcada e o alento das chamadas de vídeo. Calhou de chegar o domingo dos pais e de nosso núcleo familiar planejar um almoço com número contado de participantes. Daí pensamos: por que minha sogra não poderia vir e também toda a família ansiosa por vê-la? Faríamos horários diferentes, contatos limitados e visitação por batelada. Tudo certo. No dito domingo, ela apareceu no portão, cedo. Envolvida em avental, usando face shield, máscara, óculos, luvas. Venceu o corredor e acomodou-se no quintal, de forma soberana. Satisfazia ali a regra inequívoca que pauta a união da família. Estava presente, como em tantas ocasiões inspirando com a propriedade justa só dela, de unir aquelas pessoas. E a cada instante, cada núcleo na sua ordem foi aparecendo para reverenciar a matriarca e acreditar na vida. Realizando abraços simbólicos, recebendo a bença com os olhos, trocando carinhos com a alma.

Encerradas as sessões, nosso núcleo continuou a confraternização protocolar que o distanciamento social permitia. Cada qual com seu prato, seu talher, seu copo, seu alquinho. Ocupamos o espaço, agora amplo, no quintal, tantas vezes minado milímetro a milímetro de alegria e espontaneidade, nos saraus sempre estimulados pela minha sogra em tempos outros mais pródigos. E como meu filho estava com o violão, alguém provocou: canta aí, Argelzinho. Ele, sempre reservado, no caso desses estímulos no repente para cantar e tocar, dominou o recato, dedilhou as cordas, alinhou o tempo, sustentou a harmonia e de um jeito doce, sincero, expressando toda a grandeza daquele reencontro, cantou, sem errar nadinha, ‘Trem das cores’ do baiano Caetano. E todo mundo cantou junto. Inesquecível!

Domingo, agora, cantamos de novo.

 

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