sexta-feira, 24 de julho de 2020

crônica da semana - perguntas sem resposta


Pergunta sem resposta
O que fui inventar para sair de casa na segunda-feira? Esta é a pergunta que não quer calar.
Arte que prezo que me gasto de tanto prezar é o trabalho. Dou valor e estimo. Respeito. Tenho fé e gozo com as coisas que o trabalho pode criar. Operar nas raias do labor, trilhar a lida diária, neste período de isolamento, a mim, por certo, me ocupa, mantém a energia vibrando dentro do meu dia, e me afasta da melancolia com uma injeção, em dose nem tão grande e nem tão pouca de tensão; aquele tanto certinho, a conta batida que não fere, o fulgor viçoso daquela febre fabril de estresse que aquece sem molestar.
Atuar em home office, nos últimos quatro meses, em mim, tem o efeito tal da resistência ao caos. Contribui para que eu não me dilua nas incertezas. Dá pistas do giro do mundo. Deixa o recado diário de que ainda não se acabou a vida.
A execução das tarefas profissionais em casa foi uma alternativa para manter muitos profissionais ativos. O elenco dos trabalhadores que foi para casa contempla uma população ali afinada e alinhada aos grupos de risco. Tô na lista. Sistólica, diastólica são pressões que inspiram cuidados e precisam ser controladas. Aglomerações tão intensas quanto as filas de embarque para Cotijuba, no trapiche de Icoaraci, fazem das minhas coronárias conselheiras gabaritadas para que eu forme no grupo dos ‘te aquieta’. O coração bate em sobressaltos por esses dias. Tem que ficar no abrigo e submisso aos zelos.
A lida formal presente, as tarefas domésticas, invencionices culinárias, realização de estéticas visuais típicas da reclusão, canais com penca de filmes, docs, vídeos educativos, musicais na internet. Cumê, lazer, suprimentos e utilidades em atendimento delivery, a minha bicicleta ergométrica e o vírus circulando são argumentos funcionais, fisiológicos e biológicos pra lá de suficientes para me convencer a ficar em casa.
Então, o que fui inventar para sair de casa na segunda-feira? Esta é a pergunta que não quer calar.
Ocorre que desde a semana passada, venho admitindo esta possibilidade. Um ensaio. Uma caminhada pelo bairro só pra saber se ainda sabemos atravessar a rua, se ainda entendemos os códigos urbanos do verde-siga; vermelho-pare; se os tímpanos ainda toleram os fonfons e alaridos difusos das avenidas.
Fizemos uma reunião em casa. Pesamos, consideramos. Avaliamos dados do último mês, aplicamos a teoria ao nosso cotidiano. Até a largura das ruas escolhidas no roteiro mereceu a atenção. Período do dia de menor movimento, EPI’s e produtos de desinfecção necessários. A opinião geral foi a de que sim. Poderíamos fazer uma caminhada pelas ruas da Pedreira, ali em torno de seis da matina.
Mas por quê?
Na vera, motivo algum para sair, tínhamos, admitindo o acervo, supracitado, de ofertas para preencher o tempo e as comodidades de serviços que temos à porta.
No dia e na hora certa para o passeio fora da nave, tomamos conhecimento do movimento registrado nas praias no último final de semana.
A saúde sempre requerida, as coronárias tal qual a fila para Cotijuba, apinhadas. A fenomenal capacidade de transmissão desse vírus. E, mais decisivamente, aquela sensação de que uma saída de casa, sem um quê apresentável significaria a nossa anuência a este delírio coletivo, nos fez abortar a missão.
Não saímos para fazer não sei o quê na rua, e pelo cenário perigosamente restaurado, e, ainda, até que as perguntas tenham alguma resposta, tão cedo não intentaremos outra moda igualmente sem graça.


Nenhum comentário:

Postar um comentário