sábado, 13 de junho de 2020

crônica da semana - Viscondinha


Viscondinha
Eu poderia classificar a Viscondinha, puxando o tom da conversa para os alinhavos que me dou tecer nesta coluna, como um portal. Uma bolha de sensações, um escaninho periférico minado de transcendências, de perturbações lógicas.
Por outro lado, posso explicar aquela varedazinha, sob uma ótica urbana corriqueira, olhando pra ela com sendo um truncamento, um entulhamento de casas, de jiraus, de móveis abrigados e gentes interferindo no traçado da avenida;
Ou ainda, tirando pela conformação que a avenida tem na sequência, quando a Visconde de Inhaúma se confunde com o leito de um igarapé, posso dizer que a Viscondinha é também a nascente, o olho d’água, o cerqueiro, um interflúvio sem referência de outras vertentes, a não ser o canal que se adianta, e se firma como um curso d’água sem nome, até se unir ao Galo, lá no longe da Pedreira.
Era ainda a década de 70 e eu me envolvia de vez com a Viscondinha. E na época nem a conhecia por este nome. Era apenas um caminho que eu usava para varar lá na Visconde larga e aplainada em aterro potente de piçarra a partir da Barão do Triunfo.
Andava por ali, porque morava na Mauriti, pros lados da feira da Pedreira e estudava lá atrás do bosque. Toda manhã, pegava aquele estirão, para chegar à escola.
Era um cantinho, para mim, especial. Nem bem eu saía de casa e já se anunciava. Atravessava a Marquês, passava pela frente do Donatila, já sentindo o bucolismo da Viscondinha. Ao dobrar rente ao muro do Abrigo São Vicente de Paulo, era como se eu me diluísse naquela rotina matinal. O cenário já indicava a fantasia, as ilusões. A continuidade do muro do abrigo era constituída de um lajeiro de pedras duras vermelhas. Para mim, montanha encantada e afável. No ponto mais baixo do lajeiro, um caminho bem traçado, pisado, marcado, se estirava até a iluminada avenida lá na frente. Apartado da montanha vermelha pelo estreito caminho, se formava o emaranhado de casinhas, dispostas em simbiótica relação. Naquele meu atravessar, eu experimentava sensações incríveis. Testemunhos de harmonia, cumplicidade e tolerância. Jiraus confrontando quartos de dormir; quintais ao’pegados às varandinhas; radinhos de pilha tocando músicas de despertar adoçados por cafés coados além da parede e meia. Escovações e gargarejos de confronte com o ato desafiador de amarrar os cadarços, no vão do alpendre vizinho. Telhas e beirais irmanados, escorando uns, os outros. Meninos chorando. Senhorzinhos roncando. Sabiás cantando equilibrados no zinco oxidado da biqueira; beija-flores planando entre os jambeiros. Neblina fina lá atrás, misturada com os vapores demasiadamente humanos, remanescentes da noite. Cachorrinho do lado de fora gemendo. Outros já despertos, latindo e fazendo menção de avançar em mim. Eu era sozinho naquela hora do dia a atravessar aquele caminho.
Hoje aquele espaço ainda é um marcador entre a Visconde alargada e a Visconde assentada sobre o igarapé. Algumas casas ainda estão lá. Outras foram retiradas para dar lugar à pavimentação. Três ruas fazem as vezes de caminho entre as duas faces da Visconde de Inhaúma. Passa até carro lá agora. Não vejo sinais da montanha encantada, das pedras vermelhas.
Penso que por aqueles dias poderia ter lido mais os filósofos, dominado as razões. Evitaria que eu fosse, dia desses, esmigalhado por um amigo próximo, erudito que só ele, que me flagrou em falhas a partir da exibição de minha filosofia rasa. Motivos eu tinha. A Viscondinha era um portal inspirador

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