sexta-feira, 29 de maio de 2020

crônica da semana - sobrevivente


Riscos aleatórios e riscos previsíveis
Já passei uma situação de risco altíssimo certa vez. Sobrevivi graças ao insuspeito acaso. Em uma missão de mudança de acampamento com o apoio de helicóptero, por pura lerdeza minha, para apanhar uma cesto de mantimentos, cortei caminho por baixo da aeronave. Passei exatamente entre a turbina e o rotor de cauda. Para entender a gravidade da ação, é como se eu me arvorasse entre a cruz e a espada. Estive em tempo de ser sugado para as altas temperaturas da turbina ou, do outro lado, ser triturado pelas palhetas do rotor que fica na rabeira do helicóptero.
Credito a minha salvação ao acaso porque não fazia a menor noção do risco. Poderia cambar para um lado, para o outro e por milímetros de deslocamento, ser tragado à fatalidade. Mas não. Quando cheguei do outro lado, o comandante me cortou e arou na esculhambação. Perguntou se achava que já vivera o bastante, se eu estava querendo me suicidar, informou, muito bravo, que um movimento mais acentuado naquela travessia e eu atravessaria para a cidade do pé junto, e que isso, e que aquilo, e aquil’outro. Quando tomei ciência do perigo que passei, chega me deu um passamento.
Fiar a minha vida entre dois mecanismos dos mais perigosos de um helicóptero foi um risco aleatório, afinal, desconhecia detalhes daquela máquina.
Em outros termos, tenho pra mim, que as minhas defesas naturais agiram para me proteger naquele dia. Meus instintos foram estimulados, meus sensores de proteção foram ativados. Varei do outro lado íntegro.
Outra peleja da qual boiei, foi quando tive uma papeira. Caxumba, para uns. Fui bater na indigência da Santa Casa, aos cuidados da freira, na ala de isolamento. Naquele tempo não tinha essa possibilidade de saúde universal do SUS não. A minha valência é que mamãe, por conta de um emprego com carteira assinada, do qual, inclusive havia saído recentemente, tinha a carteirinha do INPS. A papeira até que estava controlada, tratada com uma melecagem à base de boneca de anil. O que se deu, é que raquítico, subnutrido, carente de tudo quanto é vitamina, proteína, sais minerais e ânimo, não resisti às complicações. Baldeava o pouco que comia e a desidratação esteve um isso para me levar. Quando mamãe me viu desfalecendo, chamou o carro e nos abalamos para o atendimento infantil do INAMPS que ficava ali em Nazaré, perto da Doutor Moraes. O diagnóstico que aceito até hoje foi “complicações da papeira”. Uma ambulância me levou mais que depressa para a Santa Casa. Lá era na base da penicilina. Quando a enfermeira aplicava a bicha no glúteo, naquele tempo sem anestésico nem nada e com uma agulha de umas 10 polegadas de diâmetro, chega eu rabiava. Chega a lágrima escorria doz’oío. No isolamento, apenas a presença da freira para companhia. Visita era muito pouquinha. Para a galera da minha geração, infelizmente, por causa das condições sanitárias, sociais, e pelo número sempre grande de membros das famílias, perder a vida para a desidratação provocada por complicações de qualquer doença oportunista era um risco previsível. Passei tempos difíceis naquela enfermaria. Eu, um garoto de não mais de dez anos, vi um homem agonizar até a morte, na cama ao meu lado. Da papeira e da desidratação, saí curado de lá. Das lembranças de sobrevivente, não.
Esses dias, vivendo os horrores da pandemia, me vi admitindo este nosso pendor a ser sobrevivente, esta nossa sina de superar riscos, tanto aleatórios, quanto previsíveis.



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