sábado, 14 de fevereiro de 2015

crônica da semana - dinossauro

O menor dinossauro do mundo
Para nós, era um presente da hora. Indicado para a idade. Tinha função pedagógica. Cores que despertavam estímulos visuais, percepções de formas. Consistia na imitação de uma casa. As paredes eram em vermelho forte. Encarnado. O telhado, amarelão lustroso. Espalhafato de doer nos’oinhos. Dentro, peças de encaixar. Boleadas, em quina, chanfradas. Elementos de uma coleção de contatos certeiros. Uma casinha harmoniosa recheada de partes de um todo que se procurava. Cabia ao Argelzinho, juntá-las.
E foi assim provocando estes encontros que ele se encontrou com a infância obreira e fiel às impressões.
Aí, passou, passou. Ele teve, teve, brincou a valer, aceitando as regras da casinha. Até que a formalidade motora deu lugar à traquinagem, à liberdade criadora. O tempo voou. Ele entendeu, atendeu às conformidades do concreto, assimilou o aprendizado objetivo, reconheceu os sinais com esmero. E com a mesma atenção que os reconheceu, os colocou de lado e permitiu-se a abstração. Arrebatou a casinha de paredes vermelhas e telhado amarelo para o mundo das ilusões. Para a seara do ‘pra dizer’, para o universo do ‘faz de conta’.
Agregou às pecinhas de montar, elementos diferentes, descombinou tudo. Eu ficava só na bicora daquela insubordinação. Muito discretamente, prestava atenção àquela desenvoltura anárquica que Argelzinho engendrava usando a antiga casinha.
Sim, porque não era mais casinha. Agora era a caixa onde ele guardava todas as suas fantasias.
Chegava da escola, tomava banho, passava um talquinho, almoçava, ficava por ali um pedacinho, depois se recolhia ao quarto para um teretetê com um mundo só dele. Sentava no chão, abria a caixa (ao telhado amarelão era dada a função coadjuvante de ser apenas a tampa da caixa). De lá, retirava as antigas peças coloridas e os outros insólitos componentes. Petecas de várias cores, algumas, já bandadas; Letras do alfabeto moldadas em plástico endurecido; Um dinossauro anão, o menor dinossauro do mundo, menor até que uma lagartixa; Um feixe de lápis Faber Castel todo roído nas pontas; Tampinhas de refrigerantes diversos; Miniaturas de personagens dos desenhos animados mais famosos da época, acho que aqueles do Pokémon e alguns outros Cavaleiros do Zodíaco. Tinha mais coisas... um punhado de tento-vermelho, cartas de baralho, pedras de dominó, ilhoses, pregadores de roupa. Tampas de caneta. Vidrinhos de essências amazônicas, rolhas de vinho, bijuterias enegrecidas. Fivelas doiradas de bolsas. Tanto bregueço tinha guardado ali. E após descansar do almoço, na solidão do quarto, os tirava da caixa e dava vida a toda aquela tralha.
Às vezes eu ia devagarinho, e sem que ele percebesse, o surpreendia em uma aventura. E eram várias. Futebol entre os times do lápis de cor contra o time do A maiúsculo. Viagem interestelar com a turma do Ash e um punhado de tento-vermelho. Guerra valendo do exército do menor dinossauro do mundo contra as tampas de canetas. Todos falavam. Argelzinho narrava e dublava cada um. O que eu achava mais legal era a participação dos vidrinhos e do A maiúsculo. Eles eram sempre os artistas, os artilheiros. Imbatíveis.
Durante anos, o divertimento do meu menino foi a caixa das fantasias. No quarto, sozinho, inventando. Se reinventando. Eu espreitava, admirava aquele envolvimento, aquele mergulho no mundo das maravilhas.
Esta semana, Argelzinho vai fazer 19 anos. Tá um teba d’um preto. E eu aqui, ó, revivendo aquelas tardes anárquicas...felizes...as contendas do menor dinossauro do mundo... e o papaizinho só bicora, discretamente participando daquele encantamento.


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