É capaz e é bem capaz
Acompanho
a turma que pensa que tal coisa assim, assim é difícil, mas é capaz de
acontecer.
Dou
fé e testemunho destas surpresas que se pulverizam no campo da probabilidade, e
no mais que de repente, pluft, se realizam ali na nossa frente ou como um
bólido, vêm de encontro à gente. Foi o que aconteceu comigo enquanto fazia a
minha caminhada terapêutica num dia comum desses de sol raro, da época.
Estava
na minha. Só na manha, só na batidinha da aeróbica. Ritmo bom, respirando no
compasso do coração. Caminhava pelo canteiro da rua e cismei de atravessar para
a calçada do outro lado, alpegada do Bosque, onde grassava uma fieira de
árvores pródigas na boa fresca da manhã. Trânsito tranquilo, carro nenhum próximo,
pista liberada. Do meu ladinho, a
ciclovia também não anunciava ciclista chegando perto. Olhei pra trás, gente
correndo, caminhando, fiz um delta tê mental e cambei pro lado. Mas foi só uma
lapada. Uma trombada federal. Lei da ação e reação na mais genuína
experimentação. Eu prum lado, a pequena pro outro. Caminhantes vieram em
socorro. Só fiquei meio zonzo pelo susto. Fiz a autoavaliação, nada quebrado,
nenhum arranhão. Volvi à batidinha da manhã. Antes soube que a pequena que
trombou comigo foi aquela que vi de relance enquanto me preparava pra
atravessar e que pela resultante da função horária que elaborei na cabeça, de
jeito e maneira cruzaria minha frente. Ledo engano. Simplesmente a menina era
velocista em plena carreira contra o relógio, concentrada, focada, mirando,
impávida o rumo, na direção do nariz. Não contava com minha guinada no repente.
Quando tornou, já estávamos rebolando um pra cada lado.
O
campo da probabilidade é campo de minas combinações, mas escaldado na missão,
acompanhando a rotina dos freqüentadores contumazes da área, não achava ser
capaz de acontecer uma colisão. A galera é contida, o mais ligeiro que se abala
é numa puxada aeróbica só pra acelerar a suspiração. Quem corre, vai naquele
jeitinho miúdo que se reduz a um trotado doce. Quando no meu toutiço que eu ia
imaginar uma velocista-raiz infiltrada naquele mosaico de tímidos fundistas?
Um
choque, um acidente de tal jeito espetacular que jogou o velhinho ali, lá longe
no chão, no cedo do dia e rompendo o equilíbrio da serenidade e da cadência dos
exercícios triviais foi fato raro.
Éraste-te!
Parece uma coisa. Reinei até jogar na Loto, nesse dia. Nada, porém, vem do
acaso, do jogo duvidoso de destinos. A atleta estava errada. Estava correndo na
faixa destinada a ciclistas. Por isso não maldei quando olhei pra trás. Naquele
rego da ciclovia, procurei bicicletas e não gente. Até vi de relance alguém
correndo, mas em função do cenário, meu cérebro não processou. Não ligou lé com
cré.
Estas
anomalias devem, certamente, compor nossa carteira de sobressaltos e arrepios mesmo
que a gente dê pouca trela pra elas. No entanto, o que inspira cuidados, o que
nos põe em alerta mesmo é o que é comum, de tal forma que passa do capaz de
acontecer e chega no alto grau do bem capaz de virar um fato.
Por
exemplo, ficar de palmo em cima com uma motocicleta em plena passarela para
caminhantes do canteiro da Marquês de Herval de Herval é bem capaz, a qualquer
dia e a qualquer hora do dia. A probabilidade é altíssima principalmente
naqueles trechos em que a calçada se dispõe de forma a ligar as duas margens do
canteiro. É batata. Aquele pedacinho, na boa, é usado para mudar de pista. A
calçada ali, é a extensão da pista de rolamento no termo e no jeito porque
sequer reduzem a velocidade quando varam de um lado para o outro. Quem caminha,
quem corre, aquele ciclista que usa a parte central do canteiro, cada um que se
livre e se atine ao sobressalto.
Numa
caminhada pela Marquês é capaz da gente achar prendas valiosas como um cajá
madurinho. Mas é bem capaz da gente se emboletar, se surpreender. É bem capaz.