sábado, 30 de agosto de 2025

crônica da semana - surpresa

 Surpresa

Se eu abrir meu coração no claro e justo, não escapa a minha recatada frustração com o ser humano. De besta que sou. De me achar metidão, exigente, a ponto de formar um padrão de personalidade e correr atrás de perfeições, ainda que ao custo alto da solidão. Mesmo admitindo que não sou o suprassumo da retidão, que não tenho um isso que o periquito roa de santidade e muito pelo contrário. O certo é que ante tantos descaminhos, ainda mais hoje com a indústria do ódio e da desinformação em alta, igual a muita gente, minha luta é diária pelo lado probo da vida.

Ninguém é perfeito. Eu é que fico tareando no espaço as beldades de caráter, quando deveria sim, me conformar e garimpar aqui e ali, boas almas que se salvam, cravadas de defeitos, mas limpinhas, ajeitadinhas, sem dolo ou marcas de maldade. Pessoas legais, que resistem às contaminações diárias, às rasteiras do mundo vil. Se eu me livrar de preciosismos, dos jeitos e modos de ser ideais, vou perceber que do nada, na vulgaridade das horas, emerge do mar agitado desta sociedade impregnada de egoísmo e ganâncias, pessoinhas da mais alta qualidade. Na diversidade dos termos e medidas, e que se assentam em todos os calibres. Do prestativo, ao desapegado. Olha que surpresa agradável aconteceu quando meu amigo deixou o celular dele dentro do táxi. Com o detalhe das reações. Dele e do motorista que encontrou o celular:

No começo, tem a chamada para um carro de aplicativo. Estávamos em folgada tarde a celebrar anos e anos de amizade. A corrida era pra experimentar a porção famosa de bolinhos de bacalhau produzida por um bar que ele conhecia. Ao ter a corrida cancelada e percebendo um táxi nas proximidades, no repente, deu sinal. Entramos no táxi. Ele ainda com o telefone celular na mão. Entendo que dada a inutilidade do aparelho, já que a tarifa viria não mais do aplicativo, mas do taxímetro, meu amigo deve ter se desligado, se distraído. Desviado a atenção para a conversa com o motorista, que estava era boa. Na certa, por estar atento aos casos ao largo, largou o telefone por cima do banco do carona. Eu, no banco de trás, prestava reparo, me surpreendia com a desenvoltura da conversa. Uma agradável viagem, versada em ironias, risíveis passagens e até em combinas para o próximo show do Roberto Carlos. Gente boa, o taxista; meu amigo, muito dado. Fizeram uma boa dupla.

Meu amigo tem uma consideração distante pelo celular. Sei disso por causa das nossas comunicações via ‘zap’. Quando passo a mensagem sei que ele só vai visualizar e responder depois de um tempo bem atemporal perto do que hoje é o costume da maioria. Daí que assumindo esta distância, quando descemos no destino, deixou o aparelho no táxi e só foi dar por falta, após a chegada da primeira rodada de bolinhos de bacalhau. Anunciou a perda na maior calma e alertou que não adiantaria ligar porque na última lembrança que tinha do telefone, constava a imagem da bateria já ir-se indo. Estava ali uma pessoa desapegada desses valores rasos modernos. Eu, por outro lado, fiquei num desespero só. Quis ligar pra Deus e o mundo. Fui desestimulado pelo meu amigo que alegou tudo ter senha e que no dia seguinte iria tomar as ações. Estávamos ali para celebrar nosso encontro e um aparelho celular não iria cortar nosso barato. Pesquei um bolinho do prato e tentei relaxar. Quando toca o meu telefone. Que surpresa agradável!

Ao encontrar o aparelho, o motorista cuidou para dar uma carga. Na certa, rejeitou umas corridas e se concentrou na devolução ao dono. Buscou as últimas ligações e me achou lá numa chamada. Postei a localização. Minutos depois ele apareceu com o aparelho. Oferecemos um agrado, não aceitou. A companhia para a outra rodada de bolinho e o profissional da direção declinou. Jogou as prendas para o dia do show do Reiberto. Voltou ao volante levando minha admiração.

 

sábado, 23 de agosto de 2025

crônica da semana - a sesta e o sexto sentido

 A sesta e o sexto sentido

Depois, depois... Não tenho culpa se os fatos acontecem comigo desse jeitinho, se bandeando para o lado dos impressionantes mistérios. Mas parece uma coisa. Dita, escrita e subscrita pelo destino.

Aconteceu há alguns anos, muitos até, d’eu sonhar com o encarreirado de números certinho no tanto de quebrar a banca do bicheiro. Contei este causo aqui, certa vez. O relevante da história é que foi um sonho que me ocorreu naquele sono da tardinha, aquele depois do almoço, que a gente não dá nada por ele. E também, foi num contexto de precisão. Pra eu estar dormindo a sesta, em casa, era caso de ócio forçado. Barra pesada e imprensada do desemprego. Estava, como se diz no trecho, urrando. Na pira-paz de grana, chorando um olho e remelando outro por um anúncio nas páginas de jornal ou uma indicação da parceirada das lidas, para uma oportunidade de trampo. Não domino a arte do jogo, mas passei os números na ordem que apareceram no sonho, pra mamãe. Ela fez as contas, somou, dividiu, tirou a prova dos nove, a prova real, vai um aqui, empresta outro ali, fecha o parêntese, passa a régua e ela preencheu a pule na extração do corujão. Éraste! Cravou na cabeça. Rolou uma grana firme, que se não fosse a reaplicação no jogo, nos garantiria vida boa, sem travanca, só na manha, por uns três meses, tirando até onda, fazendo extravagâncias, escolhendo a pá só com o osso da peça, no talho do Manduca. Mas tirando um pelo outro, o ter e o haver, foi um tutu rechonchudo que nos valeu que só.

De tal sorte que se maldo para os desdobros, era de colocar uma plaquinha na porta de casa para me ocupar as tardes, antevendo números pra galera. Resisti, mais porque não mais sonhei com piriricas de nada, que por algum pudor guardado no coração (confiava, porém, que pelo sagrado ou pelo profano, numa hora ou outra a premonição me visitaria de novo).

Eu fiquei impressionado com essa história dos números. Deu de desconfiar mesmo que me avio com uns fenômenos aí extra-sensoriais, fora, além dos nossos comuns pendores. Porque não foi só daquela vez que me vi envolvido nessas paradas. Outras, com sonho, sem sonho, às vezes com uns arrepios ou esquentamento de orelhas, sinais silenciosos, sentimentos estranhos; outras vezes, desta ou daquela forma, me ocorreram.

Ou mesmo atuando nas beiradas das coincidências. Como agora, este ano, quando os extremos me acompanham.

Pelo que torna e pelo que deixa, nos tempos atuais tenho me dedicado a periódicas jornadas de vovô em terras cariocas. Na minha missão de início do ano, experimentei um calor espetacular por aqui. Uma aventura de contornos térmicos dramáticos. Temperaturas acima da média. Em alguns pontos da cidade a coluna de mercúrio subiu além dos 47 graus. Agora mire e veja, se não é um chama sobrenatural para os sobressaltos. Desde o início do mês de agosto, cumprindo outra fase de vovozinho, estou vivendo exatamente o contrário. O mês todo é de frio bem doído para os padrões cariocas e uma sequência inteiriçada de dias gelados que não se registrava há pelo menos 20 anos. Diante das vivências extremas, posso considerar que se alguém está querendo uma reviravolta climática, é só me chamar que o tempo desanda. Tenho a liga, o chama. Ensejo as consequências mais atarantadas do aquecimento global. Não que eu queira.

Posso colocar na conta de um sexto sentido, um fluido ativo outro e oportuno, que se manifesta ao acaso e faz acontecer. Me vejo na pretensão de ser um arremedo dos mutantes, aqueles dos filmes com seus poderes sem controle. E nem sei avaliar a minha qualidade de mutante. Se da turma dos bonzinhos ou dos mauzinhos. Por agora, percebo que para forjar as tendências do frio-quente, nem é necessário o expediente da sesta, da premonição, do esquentamento de orelha, dessas esquisitices. Os absurdos mundanos fazem por mim. Nem sonhar sonho mais.

sábado, 16 de agosto de 2025

crônica da semana - ser normal e tal - conexão

 Ser normal e coisa e tal

Da vez que vim de Lima, no Peru, para o Brasil, aconteceu igual. Estava com um parceiro meio desligadão, nem seu Souza para as urgências e contingências. Fui na dele, patetei no horário de pico da cidade, e no trajeto para o aeroporto demos de encontra com um trânsito daqueles, lento, travado. O que se deu é que chegamos ofegantes e na batida da campa para o embarque. Por aqueles dias ainda se marcava lugar no balcão, na ocasião do ‘chequim’. Pedi janela. A atendente me respondeu dizendo que só havia sobrado uma janela, na última fileira, aquela aonde a poltrona não reclina e que fica de palmo em cima com os banheiros. Me dei foi por satisfeito. Estava na conta do nosso atraso essa prenda. Peguei a vaga. Íamos atravessar a cordilheira dos Andes e por causa de uns dramas pequeninos de últimas poltronas eu é que não ia perder o espetáculo grandioso das montanhas. De jeito e maneira.

De modos que já estou passado na casca do alho de viajar me batendo com os desconfortos da última fileira do avião. Por isso não queimei as piriricas quando no aleatório para a viagem mais recente que fiz, fui lançado para a mesma colocação. É certo que reinei numa insatisfação por jogarem os avós e a netinha no fundão, mas um outro e dramático fato daquela viagem de regresso do Peru,  me requereu mais atenção. O curto tempo de conexão.

Agora desta vez o cuidado era com a troca de avião em Brasília quando tínhamos minguados 50 minutos para sair de um e entrar noutro. Com criança, bagagem de mão, um estirão a vencer às carreiras e o demorado desembarque de mais de 200 passageiros.

Sou desses. Espírito cartesiano. Dou maior valor no xis aventureiro lançado ao encontro com um ipsilone, de espera atenta, num cantinho certeiro do espaço. Acredito, em qualquer combinação, na geração de um inequívoco ponto P, objetivo, absoluto e dotado de algum sentimento. Daí que, dias antes da viagem, as noites se tornaram mais curtas, o sono dava lugar a simulações de situações limites, continhas, avaliação de imprevistos, julgamento antecipado de eficiência da infra-estrutura do aeroporto e da companhia aérea. Preocupação latente e insistente com os detalhes da viagem. Agendei documentar, filmar tudo, cada etapa do vôo. Caso perdesse a conexão teria provas suficientes para demandar os operadores do sistema.

Do meio por fim, encaminhei um plano de ação. Mapeei o aeroporto de Brasília, localizei os píeres, possibilidade de desembarque em cada um deles, estratégia de deslocamento. Fez parte do plano de ação também, uma pesquisa sobre o tempo de deslocamento entre os píeres. O destaque é que a quase totalidade dos vídeos que achei na internet é desprovida de funcionalidade. A maioria retrata o lado recreativo das conexões, exibem vulgaridades, registros vazios de finalidade. Nada sobre os aspectos práticos de uma conexão, como a distância dos portões e tempo de caminhada entre eles. Até que achei um perfeito. Um único vídeo útil indicando a duração da caminhada de um píer a outro. Captei a mensagem, 11 minutos. Agreguei a informação às minhas continhas.

Já na hora do embarque aqui em Belém, a dica. Enquanto esperava a chamada, medi o tempo de desembarque de dois aviões que chegaram. No máximo, 15 minutos. Mais uma parcela para calibrar minha soma de tempos.

Meus aperreios, minhas ações, noites de sono perdidas e as continhas, sem hesitar, são tidas aqui na família como sinais de ansiedade, apreensão e preocupações nada normais. Aqui ali, ouvi orientações para eu me aquietar, deixar tudo pela providência divina e levar a vida na boa.

Não desapeguei das minhas manias. Afinal, admito que ser cartesiano. Um articulador cronometrado, para mim é natural. Combinar xises aleatórios e ipsilones comprometidos, entendo que sempre gera um ponto certeiro no espaço, dotado de personalidade. Sou normal eu. E, então, deu tudo pelo certo na conexão. 

 

 

sábado, 9 de agosto de 2025

crônica da semana - no fio da navalha

 No fio da navalha

Tem já um poder de tempo que corto o cabelo somente no manejo basicão da máquina zero. Me avio naqueles salões populares, dou a letra da altura e, num tapa, antes que eu ensaie pronunciar a desafiadora trava-língua ‘pipabaquígrafo’, o trabalho se dá por encerrado. Foi nessa ligeireza toda que dei reparo que não usam mais, pelo menos no caso do estado mínimo do meu cocuruto ultraliberal, a navalha. Como não uso o serviço para outras demandas, desconfio que para o tratamento da barba, sim, ainda se usa a lâmina articulada.

Essas novas técnicas, com máquinas que cortam bem rés, vontades estéticas recentes, além do medo de contaminações, levaram a navalha para um patamar reduzido de utilização. Com ela, também a expressão ‘no fio da navalha’.

Consta que para que a barba ou os arremates no corte de cabelo se realizassem com êxito e no mais apurado refino, tinham que ser feitos ao fio da navalha, ou seja, com o máximo de precisão. No limite, no extremo do acerto. De tão afiada a lâmina, um movimento débil poderia provocar um golpe dolorido no cliente ou escangalhar o desenho do corte.

Este fino entendimento, o adelgaçamento definidor de resultados, a certeza e a perícia que pautam uma decisão, compõem o teor de minhas reflexões cotidianas quando admito que, por ora, vivemos no fio da navalha. Hoje em dia o sobressalto nos impõe zelo na opção ou opinião mais comezinha, coisa qualquer de calçada, de esquina, prosa vã ou sem sal. Qualquer deslize, qualquer falta de cuidado e a confusão se instala.

Recorro ao formigamento na mente, à associação de idéias para justificar porque minha narrativa se dá, na maioria das vezes, no tempo passado. Digo que sou um cronista retratista, memorialista. É um modo de sofrer menos. Remontar o acontecido não dói, e até mesmo se nos lega algum sofrimento, o cronista dá um jeito, recorre a uma anestesia de estilo, a uma figura poética. O que aconteceu já era, já é memória, não pode ser mudado, mas pode ser interpretado, romantizado, recontado em lirismo ou fantasias. Não há um momento tenso, delicado, decisivo ao se contar os causos já idos. Não temos que cuidar com o fio da navalha.

Agora, olhar a história de palmo em cima, daqui pr’ali, no presente e até, de forma ousada e previdente, rebatê-la para o futuro é missão que exige pé ante pé. Nos recomenda cautela, canja de galinha, remédios pra pressão em dia e uma dose altíssima de serenidade, porque senão, olha, a gente pira.

Mamãe já dizia: ‘o dia de amanhã não nos pertence’, acrescento que nem mesmo o dia de hoje. Nossa rotina é definida por humores e devaneios de poderosos investidos de mando e controle. Nos batemos a cada dia com reinvenções do óbvio, do curto e certo. Todo santo dia uma realidade é atacada e covardemente revista, reordenada, alterada no significado. Mesmo os mais consagrados tratados da ciência são vilipendiados. As narrativas circunstantes nos lançam ao ambiente perigoso, melindroso retratado na ferramenta usada pelos profissionais de barba e cabelo. O fio da navalha.

Eu que não me dou sofrer na ficção, porque, para que tal aconteça, me basta o noticiário matinal, me pego é com os tempos acontecidos.

Lá no seringal, eu tinha um padrinho que era barbeiro. Tinha um medo que me pelava dele. Não exatamente dele. Da máquina zero que ele usava. Lá pelos anos sessenta, a máquina era de acionamento mecânico e difícil de pegar um bom fio de corte. Cada passada do coco da gente era um suplício. Meu padrinho não perdia a viagem. Quando na passada a máquina não cortava, ela, a um manejo diferenciado dele, voltava arrancando o cabelo. Dindinho fazia visitas periódicas ao seringal para as sessões de tortura. Assim que o anunciavam, eu ganhava o mato e me escondia. Custava para me pegarem. Mas quando me achavam... fazendo a releitura, mesmo no passado, na época da inocência, acho que vivia no fio, sem fio, da máquina zero.

sábado, 2 de agosto de 2025

crônica da semana - seu legado

 O seu legado

Consta em toda notícia, todo boato, qualquer respingo de informação, opinião ou impressão que a gente dá de encontra por aí, pela cidade da COP 30, que o tal do seu legado tá que tá chegando e que a nós, nos vai valer que só. Sê bem-vindo.

O que trará abrigado nos afortunados bolsos do tempo? Nos envolverá em seu manto de realizações e divulgará cada uma delas num programa noturno do tipo “O bolso do seu legado?”.

Expectativas eletrizantes acompanham os regalos de seu legado. Dizque tem ponte se elevando, estrada rasgando a mata, igarapés maquilados, hotéis forjados, canteiros lantejoulados, serviços e entretenimentos ativados em nome do seu legado. A Belém que queremos bem sairá da COP 30 repaginada, brilhantinada, empoada e no rouge pó, ainda que sob o risco de borrar os traçados da face urbana ao contato, fugaz que seja, com a chuva da tarde.

Legados são registros que nos valem, representam conquistas, uma ou outra experiência de relevo, por vezes, nos passam a dureza dos dias. São heranças de corpo e de alma, de concreto, como as pontes que se elevam ou apenas espólios abarcados pelos sentidos e ações, como o bom caráter ou a má índole.

Em nossa caminhada por esta estrada fluida e veloz que é o tempo, vamos deixando fiozinhos indicativos, ou trançados afirmativos, assentados, acondicionados a uma realidade. Estes são os nossos legados que repassamos para os próximos, para os dignos e interessados.

Que o legado da COP 30 nos seja útil para, essencialmente, nos sensibilizarmos que os caminhos a serem trilhados nos próximos anos podem causar o nosso bem ou o nosso mal. Vai da gente. Sê bem-vindo, seu legado, se for do bem, pode até ficar para um açaí.

Eu por mim, me darei por satisfeito se o seu legado nos livrar das atitudes miúdas, simples, cotidianas, que nos levam a incredulidade quando ocorrem, de tanto que são absurdas, coisas que nos tempos atuais a gente nem malda que ainda aconteçam com elaborada desenvoltura, no meio do nosso povo.

Do jeito que presenciei ao caminhar pela principal avenida da Pedreira. Ali, o próprio desenvolvimento da nossa trajetória já é objeto do seu legado. Calçadas ocupadas, besuntadas de óleos, graxas aqui. Ali, uma atividade semi-industrial de palmo em cima com a gente, sucatas, obstrução do trajeto por carros imensos, humilhação e um sentimento íntimo de impotência. Mas nem é tudo. Deu-se que uma hora dessas, me vi de encontro a um rapazinho, olha só, um jovem, categoria etária aquela de quem a gente espera tanto! Aparentava ser funcionário de um dos estabelecimentos. Saía de dentro da loja com um copo plástico. Estava terminando o cafezinho do intervalo da manhã. Cruzou a minha frente com o copo na mão, tomou o restinho do café, adiantou-se até o meio-fio, e pluft, ali mesmo largou o copo. No meio da rua. Nessa hora, lembrei do meu legado como contador de causos.

Há algum tempo, publiquei uma crônica com este mesmo enredo. Estava num ônibus e o rapaz jogou uma porção de resíduos plásticos pela janela. Na minha reconstituição, forjei uma fala pra ele, explicando a ação: “depois o pessoal da prefeitura venhu e varru”. Fez sucesso essa expressão que criei. A família, os amigos quando se vêem em situações semelhantes, reproduzem o meu legado linguístico. E por certo, meu legado estava, em alguma versão, na cabeça do rapazinho quando deitou o copo plástico ao meio-fio.

Seu legado da COP 30, se nos deixar lá dentro do cocuruto, um quê de sentimento de cidadania, de respeito pelo espaço urbano, se gerar uma menção de fazer o mínimo, reconhecer a necessidade de descartar apropriadamente os resíduos que geramos, bem o mínimo mesmo, como o exemplo de admitir o uso de um recipiente para lixeira... Se refletir, nas maquilagens, uma mensagem de preservação, educação e consciência cidadã. Se nos fizer entender que nós somos o pessoal que ‘venhu e varru’, a mim já me agrada que só.

sábado, 26 de julho de 2025

crônica da semana - direção e sentido

 Direção e sentido

Na vida, por vezes temos a direção, mas nos falta o sentido.

Aconteceu de uma vez, eu me perder no mato. No exercício da profissão a gente valoriza a atenção, recorre às recomendações e treinamentos, mas pra gente se perder, ó, é daqui pra’li, num piscar de olhos. Não era área boa pra se perder não. Estávamos na margem direita do Xingu. Hoje, pesquisando imagens e mapas, fico besta de ver como aquela região se modificou. Tem cidade, vilas, ocupações, fazendas pra tudo quanto é lado. A floresta é só uma lembrança. E, nos contornos, o ambiente carrega também o trauma ocorrido em Anapu causado pela violência cometida contra irmã Dorothy. Naquele finalzinho da década de 80, entretanto, era a selva densa e soberana. Poucos andavam por ali. Minha equipe de Geologia, os técnicos da Florestal, e as turmas da Topografia se arriscavam naquele ermo. E do projeto, que eu saiba, só. Ao contrário da margem esquerda que tinha ligação com a Transamazônica e trechos mais povoados, era frente de rara movimentação. Por isso, era meia bronca se perder por lá. Não tinha rota de fuga. Mas foi o que se sucedeu.

Saímos em dois para uma jornada de mapeamento. Eu e o Geólogo da campanha. Tudo bom, tudo bem, trabalho fluindo na boa, martela uma rocha aqui, um bloco disperso, ali, sempre orientados pelo mapa e pelas marcações deixadas no eixo das picadas abertas pelos pioneiros da Topografia. Quando se deu o temido branco. Meu amigo saiu para um varador dentro da mata. Eu guardei posição. Ele considerou importante aquela rocha escondida na brenha alta e me chamou para conferir. Levantei a vista, fui no rumo dele, anotei, medi junto com ele os parâmetros do afloramento, e catalogamos o ponto. Borimbora. Mas quando! Ao erguer a vista, cadê a picada! Fizemos um reconhecimento, uma regressão, nos arriscamos uns passos além, outros atrás e nada. A mata era de uma textura só. Tudo igual. Reconhecemos: estávamos perdidos. Valeu a serenidade. Não nos afobamos. Usamos o protocolo. O procedimento ensina procurar região baixa, achar uma drenagem e seguir o caminho da água. Deu certo. Localizamos o igarapé no mapa e verificamos que em algum momento cruzaríamos com uma picada transversal ou linha base aberta pela turma da Topografia. Não foi fácil. Muitos desvios, trechos mais fundos do igarapé que evitamos, alternativas pelas partes mais altas, retorno ao leito do rio... Não tínhamos facão ou outro recurso para vencer as partes de mata mais fechadas e haja arrodeio! Quase duas horas depois, varamos em cima de um piquete. Identificamos a numeração, visualizamos no mapa. Era só traçar a caminhada de volta. Nessa hora foi fundamental saber a diferença entre direção e sentido e dar razão, estabelecer uma lógica entre um conceito e outro.

Pelo comum, a gente não faz essa diferença, digo até que a gente tem um pelo outro. Normalmente chamamos de direção o que na regra é o sentido de um caminhamento. Dizemos: ‘segue na direção que aponta teu nariz’.

O que torna é que o sentido é um componente da direção. No nosso caso, o piquete que achamos, por ser parte de um alinhamento, uma reta horizontal, representava a direção. Dali, tiraríamos o sentido que caminharíamos sobre a reta, para sair da mata. A decisão nos levaria ao nosso acampamento ou nos encerraria no fundo da floresta, perdidos, por tempo indeterminado. Se a gente pudesse ver o sol ainda próximo do horizonte, orientando o mapa, seria galho fraco. O sol não nos valeu. Então, só teríamos certeza se o sentido seria o correto, se achássemos em campo, outro piquete que estava localizado no mapa. Mais uma andada operacional.

Na vida, o mesmo acontece. Temos outras direções até. Vertical, horizontal, inclinada quase em pé, quase deitada. O sentido, não depende exclusivamente do sol. Vai da gente. Podemos seguir para cima, para o lado. E sempre atentos, para não nos quedarmos ao lado errado da história.

 

domingo, 20 de julho de 2025

crõnica da semana - a mensagem - 30 anos rádio cultura

 A mensagem

Lembra muito bem o dia que chegou ao garimpo. Vinha de uma jornada de mais de uma semana vencendo as corredeiras do Tapajós, os atoleiros da Transamazônica. A saudade

Sem experiência, ombreou-se ao amigo que o acompanhava na peleja. Tinham o sonho de voltar para casa ricos. Logo se adaptou, habituou-se a seguir o veio. Entendia os sinais que o ouro emanava.

Quatro anos haviam se passado e a fortuna não chegara. O amigo, depois da sétima malária, desistiu. Fez as contas, tirou o saldo e voltou pra Belém. Estava só.  Ele e seu radinho de pilha.

As ondas que chegavam ali traziam o bom dia de Edelson Moura e Márcia Ferreira; os dramalhões de Artemisa Azevedo; as historinhas infantis de tia Leninha. Era a Rádio Nacional da Amazônia aquecendo lembranças, alimentando vazios, reclamando presenças. Todas as noites, uma infinidade de mensagens ganhavam os céus a procura de silenciosos destinatários.

Tinha a esperança inabalável do garimpeiro empedernido. Porém, não menosprezava de todo, as dores do coração. À noite, colado ao seu radinho de pilha sob a cantilena monótona dos mosquitos volteando a lamparina, mordia os lábios, cerrava os olhos, entoava cantigas tristes bem baixinho, ali no fundo da rede. Ouvia com irrevogável empatia o rogo desesperado de mães para que filhos distantes, sumidos por anos e anos, voltassem pra casa.

Era irredutível. Sem o brilho amarelado do ouro no comando, permaneceria em silêncio, sofreria, viveria apenas a vida dos outros pelas ondas do rádio.

“Bom dia, Amazônia!” Pressagiavam os locutores da rádio que reverberava o otimismo pela mata naquela manhã de um Abril molhado. Desceu para o trabalho. Sem nenhum motivo explicável, tirou todo o maquinário do canal pedregoso, fez um corte no barranco mais acima, liso e instável. Esperou que uma boa quantidade de terra se deslocasse e daí em diante, ligou os equipamentos para explorar aquele cerqueiro. Passou o dia todo tratando aquela areia fina e enferrujada da margem.

À noite, cumpriu o rito. Lamparina, mosquitos, ouvido colado ao radinho, empatia. Num repente, foi tomado por uma instabilidade incontrolável. Uma alegria-tristeza tórrida, destruidora. Pelas ondas do rádio, uma mensagem de sua mãe chegava ao seu coração.

Adormeceu e sonhou que, animado por um “Bom dia, Amazônia”, ao despescar a mesa concentradora da “cobra fumando”, explodia de felicidade. Nunca tinha visto tanto ouro na vida.

Ficou rico no sonho. Fez as contas, tirou o saldo. Era hora de voltar pra casa.

 

sábado, 19 de julho de 2025

crônica da semana - Leonel

 Como por encanto (Leonel)

Mas deixa que bati, virei e mexi atrás dessa foto. Buli, vasculhei caixas, pastas, postagens nas redes sociais e nada. Desanimei, creditei a perda aos cupins que sempre dão uma blitz na minha trajetória de acumulador.

Acontece que tive uma surpresa deste tamanho agora por esses dias. A foto apareceu em um dos arquivos recentes que montei no computador. Trata-se de uma composição de acervo listando registros antigos que me servem para ilustrar as publicações que venho fazendo de crônicas pautadas em passagens que tive pelos estirões amazônicos. Ao repassar o acervo, foi como por encanto. A foto apareceu misturada a outras que eu havia resgatado de uma pasta com material digitalizado. Isso quer dizer que a foto em papel, realmente não existe mais (os cupins? Ou um desapego distraído?).

Na foto, está Leonel e, em destaque, ao lado dele, um bloco de rocha exibindo figuras desenhadas pelos povos primitivos que habitavam aquela região do Xingu.

Eu tinha porque tinha que achar este registro porque temo que seja a única imagem retratando as pinturas rupestres disseminadas em pontais e ilhotas encravadas no trecho encachoeirado do baixo Xingu.

Explorei o local com o Leonel. Estávamos acampados rio abaixo e numa tarde de folga no domingo, nos abalamos até aquele local. Tínhamos notícias das inscrições nas pedras. Decidimos conhecer o sítio arqueológico de palmo em cima. E foi tudo muito espetacular. Deslumbrante. Era época que o Xingu ainda tinha uma carga boa de vazão e aqui, ali, as barreiras de pedra formavam quedas d’água fascinantes. Aportamos em uma prainha. Nos surpreendemos com tantas artes nas pedras, tantas figuras e símbolos diferentes. Não éramos especialistas, mas dava pra identificar uma rica estrutura de comunicação representada nas inscrições. Naquela hora, entendi a importância do sítio e me bateu a inquietação sobre o destino daquele conjunto arqueológico, já que as obras da barragem estavam chegando. Hoje me pergunto: o que aconteceu com aquela herança cultural? Não achei trabalho publicado sobre, exatamente, esta acumulação de rochas grafadas. Nem imagens nem nada. Este fato dá valor à foto que guardei e que mostra o Leonel ao lado de um bloco bastante representativo, de desenhos nítidos. Pode ser um testemunho raro. Ainda bem que achei a foto. Meu coração ficou mais aliviado.

Era um lugar de difícil acesso. Só fui até lá porque o Leonel estava à frente da aventura. Fomos de canoa a remo e ele era nosso melhor remador e exímio navegador. Sabia das correntes, dos remansos, dos pedrais e de coisas outras que não captávamos.

Leonel era um encantado. Trabalhava na empresa com a gente, mas naquela época, se formos comparar, seria uma espécie de consultor. Só ia pra campo em situações especiais. O resto do tempo, operava em um primitivo home office.

Era cultuado porque não recebia missões comuns. Atuava achando pontos distantes que ninguém achava, prevendo cenários em segmentos desconhecidos dos rios ou dos morros, e resolvendo problemas delicados com os encantados da floresta. Conversava com as árvores, se aconselhava com os animais, fazia acordo com o Curupira e com a Iara, quando a gente precisava caçar ou pescar. Era o primeiro voluntário a se apresentar nas comissões de busca quando alguém se perdia na mata.  Ficou famoso no caso de um trabalhador nosso que ficou 15 dias perdido. Leonel foi atrás. Descia o ouvido até o chão, ouvia o coração da floresta. Virava vento, virava luz, água e frutos silvestres para alimentar o perdido. Por fim, se transformou em um coelho branco reluzente e indicou o caminho ao trabalhador até ele ser resgatado em uma fazenda da região, na noite do décimo quinto dia.

Subi o rio para conhecer o sítio arqueológico porque fui sob os cuidados e acordos do Leonel. Calhou, esses dias, d’eu achar o registro desse momento incrível. Por encanto.

sábado, 12 de julho de 2025

crônica da semana - chuva ao contrário

 Vento de revestrés

Já havia acontecido no ano passado e aconteceu de novo. O chiado da chuva veio di’cunforça, anunciando o pampeiro. Me aviei pra fechar a janela e de prima estranhei o chuviscado forte pra dentro de casa. Dei de olhar pro tempo e, vigi, constatei. Corri pra sala e chamei a atenção da família. Nem maldavam. A chuva estava vindo de revestrés. Num adianto, mesmo que me molhando todo, à varanda, fui me certificar do ‘fenômeno’. O meu indicador é um açaizeiro que se eleva de um dos quintais da avenida Pedro Miranda. Pelo comum, é atacado pelo vento e os ramos jogados pro rumo da feira da Pedreira. Essa dobra sinaliza um sentido de propagação do vento, aproximado, para o Sul. Mas nesse dia, o bicho tava era descaindo pro outro lado, assim, dobrando-se para os lados da Dr. Freitas, meio que sentido Norte. Coloquei foi todo mundo pra se molhar na varanda pela necessidade de testemunhas, de cumplicidade nas provas daquele fato raro. Para registro, essa chuva ao contrário aconteceu no dia 27 de junho. De lá pra cá, o pampeiro não se aquietou. Levou a cidade ao fundo, inclusive, várias vezes. É de se esperar que, por agora, já nas beiradas de julho, vai estiar.

Tive que tive de escrever sobre este tema porque me bateu um tique-taque atrás das orelhas. No significado dito de tempo mesmo e também de relação com eventos paralelos: as fortes chuvas com raio e tudo, de final de tarde que nos chegaram até a biqueira de julho; o frio intenso no Sul; o deslocamento da ZCIT; a cheia do rio Amazonas e este vento de revestrés do dia 27.

Bora então triscar no tempo. Olha que coisa. Esta chuva ao contrário, eu já tinha visto. Aconteceu no final de novembro do ano passado. Exatamente na época que o inverno amazônico deu as caras. Não é uma conclusão científica, é apenas uma cisma interessante. A chuva ao contrário está marcando o início e o fim do período chuvoso aqui na Amazônia pedreirense. Obviamente que para admitir esta observação como regra, há de se ter a dita recorrência. Vamos aguardar os próximos capítulos do clima. Mas eu, assuntando uma brisa aqui, um redemunho ali, um relampejo acolá, cruzados por trovões e securas no ar, arrisco prever que a chuva deste ano começa de novo, em novembro. Bori casar as fichas?

O que valida a minha previsão é o fato dela, para mim, ser a normal. Tenho aqui nos meus registros: tempo seco a partir de julho, chuva da Santa em outubro e início de dezembro já trazendo o pinga-pinga o dia todo. Isso é que é para mim, o usual, a rotina e não aquela presepada assustadora registrada em 2022, de o inverno amazônico calhar de começar somente nos últimos dias de janeiro. Vôte! Tava muito errado mesmo. Parece que as coisas agora estão se ajeitando.

Não me tenham como presunçoso, aquele que se queixa ser o que a folhinha do ano não marca. É que há um sinal. Este ano, depois de um bom tempo contado, não temos a atuação do El Niño e nem de La Niña no processo de ressurgência no Pacífico. E este é um fator de relevo. Talvez a gente tenha desapegado, esquecido mesmo como são os conformes do clima depois de atípicos sucessivos no oceano.

Estou trabalhando num livro, que pretendo lançar assim que o bom pai me der inteirar a providência financeira da edição, por título “Parece até que vai chover”. São crônicas que traçam harmonias de saberes. O conhecimento popular e o acúmulo científico. Os textos exploram os humores do clima. Trazem eventos e cenários que chamaram a atenção nos últimos tempos. As crônicas que detalham os fenômenos são datadas, exatamente pra servirem de referências. De lá foi que tirei a informação de um inverno começando só em janeiro e  a cheia do Amazonas no maior pico ocorrendo em maio. Por aí a gente tira as distâncias para o que temos hoje. Estamos nos primeiros dias de julho. Pelo certo, chuva agora, só no final de novembro. Bora casar? Se vier com o vento de revestrés, ganho uma prenda.

 

sábado, 5 de julho de 2025

crônica da semana - Bené, pois bem

 Pois bem

Eu só ouço é os gabaritados nisso e naquilo das opiniões em farto conversio atravessado sobre a Amazônia e, aqui, ali, disparando aquele lero besuntado de humanismo lembrando que além da floresta e da diversidade biológica, na Amazônia tem gente. O povo da mata, o habitante do ermo.

Presto reparo neste discurso e procuro sempre identificar a origem. De onde vem, explica muito do que realmente, certas pessoas pensam sobre as gentes da floresta. Sei bem de algumas intenções que usam das simpatias (ou das promessas), para mais adiante, dar aquela famosa rasteira e tirar de cena as pessoas, aquelas das quais nada sabem de vivências ou de sonhos.

Nem sou especialista nem nada, seria um homem afortunado se dominasse efeitos e causas comportamentais e sociais do nativo, do ribeirinho. Mas dou meu pitaco a partir de oportunidades experimentadas assim, de palmo em cima. Muitas. Em destaque aquelas vividas no Xingu.

Foi o tempo da minha vida profissional que mais me aproximei dos trabalhadores e muitos, a grande maioria, daquela região do baixo Xingu. Ficávamos acampados direto e por muito tempo, a cada jornada. Dividíamos a mesa das refeições, as horas de trabalho e de lazer; partilhávamos da precariedade dos barracos improvisados, cobertos de lona, na mata; arengávamos no limite, nas várias mesas de jogos formadas, após o jantar, em partidas nervosas de dominó, baralho, porrinha, sob a luz dos candeeiros e o zunido das carapanãs. Respeitávamos a hora e a vez de cada um, quando do uso da retrete. Houve época de ter no meu acampamento, mais de 30 pessoas. Riqueza de gente pra prestar atenção, pra descobrir detalhes, sentimentos, potenciais e razões de viver.

Tínhamos várias equipes que atuavam de forma independente. Eu tinha a minha e era com essa turma que me permitia mais intimidade. Todos dali. Tinha ribeirinho do baixo, das bandas do Sousel e Vitória; Uns quantos do meio, dos bairros da periferia de Altamira, principalmente, do bairro da Brasília. Havia também os lá de cima. Eram os remanescentes dos castanheiros, gateiros, dos regatões. Desciam do Riozinho do Anfrísio, do Iriri, dos remansos da pedra do Ó, para batalhar na firma.

Convivendo, tecendo prosa, deu para reconhecer algumas essências, propriedades e naturezas do ser da floresta. E até condensar em traço único, estas particularidades, no Bené. Para mim, quando se fala em gente da floresta, posso na boa, explorar as qualidades que encontrei no Bené.

Ali, no meio da equipe, embora demonstrasse uma atenção, valor real às interações e tarefas, aquelas eram expressões físicas, do corpo, dos sentidos. Na verdade, Bené flutuava acima de nós. A matéria estava ali, mas a alma, a energia dele, se largava pela mata. E tanto, que muitas vezes, após uma discussão ou conversa vaga que seja da equipe, mesmo que elaborada, quando demandado para uma opinião, respondia com um reticente ‘pois bem...’ como se minimizasse o enredo e priorizasse a velocidade dos ventos, um ou outro ruído ao longe, o canto de um pássaro desconhecido, o barulho da cachoeira lá bem longe. A cada intervalo das tarefas, saía da picada e quando voltava, trazia um coquinho, uma fruta doce e caudalosa, uma fava, um cipó fatiado jorrando água, um palmito ainda com a herança da casca espinhenta. Encontrava na mata tudo que lhe apetecia, de luxo ou de precisão, tudo que a gente não encontrava. Parece que marcava encontro, que tinha tudo mapeado.

Quando ouço discursos traiçoeiros de preocupação com o ser amazônico, creio com a intenção de sequestrá-lo para o mundo das ambições, penso no Bené. Ele era parte da terra, do solo úmido, das águas livres, do vento moleque. Jamais seria seqüestrado, e se o fosse, dispararia um ‘pois bem’ revestido em desdém e casca espinhenta, sairia da picada e tornaria ao que lhe apetece na floresta, nas vezes da vivência e dos sonhos.

 

sábado, 28 de junho de 2025

crônica da semana- o piano

 O piano

Eu dou de ficar vendo essas séries antigas, tramadas no épico e desafiador e calha é de minha moleira mexer e remexer em lembranças. Agora, estou revendo, em visitas encarreiradas à plataforma de streaming, a série Mad Maria. E é num repente que me vejo ali no meio daquela vuca instigante.

A versão para a TV traz uma adaptação do escritor Márcio Souza dos fatos que marcaram a construção da estrada de ferro que deu início à cidade de Porto Velho; e fez por onde e até donde, honrar o compromisso de dar uma saída para o mar à Bolívia.

Tive uma experiência naquelas paragens. Morei na região em um período muito interessante. Rondônia tinha passado a ser Estado recentemente, o governo desenvolvia um devastador modelo de ocupação do território, a mineração de estanho, no interior do Estado e ouro, no leito do Madeira, passava pelos seus momentos de euforia econômica. Com um currículo de meia página, fui bater lá para ganhar a vida no meu primeiro emprego na profissão. Tirando os entretantos e as conformidades da lida, eu me passava era pra’quele sentimento de pioneirismo, de novidade. A história de Rondônia era muito recente. Ao contrário da maioria das capitais da Amazônia, que datavam do Brasil colônia, Porto Velho surgiu um dia desses, no início do século 20. Um lugar bem ali no tempo. E esse aspecto, nos fazia, aqueles que se ajeitavam por lá, conhecer, e por estarmos próximos no tempo, sentir, quase viver o clima dos primeiros anos da cidade, aqueles que compreendiam a construção da Madeira-Mamoré.

Sobre o nome da ferrovia, cabe dizer que é uma referência espacial. A estrada de ferro liga a cidade de Porto Velho no rio Madeira a Guajará Mirim, cidade que tem a fronteira com a Bolívia controlada pelo rio Mamoré. A estrada de ferro ficou conhecida também como a ferrovia do diabo e tenho aqui em casa um livro raro que traz na capa este título. Numa narrativa distanciada de Márcio Souza, o pesquisador Manoel Rodrigues Ferreira descarta os enredados românticos e trata a construção no campo do rigor histórico.

Em uma manhã de folga da minha turma da mineração, praticando a liberdade desregrada da idade, exercendo o direito de aliviar a cuca do confinamento na mata, que o trabalho nos impunha, nos instalamos em uma mesa de bar, ali para um café da manhã. Todos muito jovens, energia potencial além do entendimento físico ou psicológico, emendamos a reuniãozinha no rumo de tomarmos logo a primeira. E assim se deu. Mais uma, e mais uma, e desce uma rodada de sopa. O bar se chamava Canto do Arara e a partir daquele dia se tornou o nosso bar. Ficava na esquina da Sete. E dá de manhã, e dá de tarde, e dá de noite e a gente ali, multiplicando as rodadas, e sopa de novo, e petiscos. Cantávamos, contávamos causos, chamávamos a atenção.  Passantes viraram amigos, amigas, sempre parava um ou uma para entender aquela presepada. Até que Silas Shockness sentou com a gente. Um grande momento. 

A estrada de ferro Madeira-Mamoré foi construída entre 1907 e 1912. A obra foi alvo de muitas críticas que iam da credibilidade dos contratos formados, à segurança e legalidade do empreendimento. Houve de ser conhecida como a estrada em que cada dormente significava uma vida perdida. A grande massa de trabalhadores que atuou na construção era de fora do país. Silas era descendente do barbadiano Charles. Contou tanta coisa. Gostava de falar, ou melhor, relatar, testemunhar. Ele próprio, com o passar do tempo, também fez parte da equipe que operou a Mad Maria fumaça.

Isso foi ali, por 1985. Já vivia há dois anos em Rondônia. Era fascinado por aquele movimento. Muita gente de fora, a plataforma da rodoviária sendo a vida daquele lugar, os refugiados, os pioneiros...

A história viva de Silas, ali na nossa frente. Revelando muito sobre aqueles dormentes e sobre a dama boliviana que escapou do naufrágio no Madeira agarrada à cauda de um piano.

sábado, 21 de junho de 2025

crônica da semana - remador

 Remador, remador

O verso nos alerta: o poeta é um fingidor. E neste causo, o é também, o remador.

Uma aventura aquela. É dos meus tempos fabulosos em Altamira. Contado está que tinha minha atividade de campo, uma equipe numerosa, convivências e cumplicidades. Em outras paragens narradas também contei que no meu plano de trabalho constava um plantão no fim de semana, na frente de operação, a cada quinze dias. De ritmo diferente, carga reduzida. Turma pela metade. Fazíamos uma atividade complementar, sem exigir muito da galera. Com jornada que não varava um período, de forma que, pra banda da tarde, estava todo mundo no pano (que era o código para definir a esticada na rede ou, que seja, dar-se ao lazer e ao descanso merecido). E só pra não ficar assim que era no melzinho, a carga reduzida, o ritmo mais abrandado que falo era resgatar as amostras da semana deixadas ao longo das picadas e isso significava pelo menos duas viagens aos estirões, e transportar para o acampamento, nas costas, quantas amostras (de 20kg cada) fossem possíveis. Era na base da, como se pronunciava por lá, ‘empeleita’. Tinha um ousado que para dar só uma viagem e acabar cedo, trazia quatro, cinco amostras de uma vez, isso em distâncias beirando os 5km, subindo e descendo ladeira, na mata.

Deixa estar que num desses plantões, tudo se resolveu cedo, equipe almoçou, se aninhou nos panos e deu aquela relaxada. Com pouco mais, bateu a cuíra. E quando a patota fica inquieta, arruma coisas pra fazer. Uns descem com anzol e linha para o rio arriscar pegar um tucunaré, outros desafiam quem parte mais lenha no machado, os boleiros procuram competir no futebol, em vazios na mata arremedando campinhos. Dessa feita, me aliei a aventureiros e me enxeri a explorar o Xingu até um sítio arqueológico que ficava no trecho encachoeirado, logo acima do nosso acampamento. Na canoa a remo.

E eu não remo nada. Até Paysandu sou.

O ponto em que estávamos era uma lagoinha, apartada por uma ilha, de um segmento estreito do Xingu, que no verão chegava a 70m de largura. Formava uma corredeira de alta velocidade e muita turbulência. Exigia cuidado redobrado na navegação. Nosso rumo era acima deste trecho. Contornamos a lagoa, demos no remanso. Agora, ‘mire e veja’, bem cima do estreitinho brabo, o Xingu se abria numa imensidão de margem a margem. Coisa de quilômetros, estimo. Essa amplitude explica o alvoroço abaixo. Imagine-se a água que passa em quilômetros, ter que passar numa brecha de 70 metros de largura. É fluxo convulsionado.

Rumamos pra riba, no largo, com cuidado no remo para não embicarmos pro apertado adiante abaixo. Quando falo assim, no sujeito plural, é só mentira de poeta. Verso sem rima. Fake. Não remava era piriricas nenhuma. Éramos três na canoa. Só os outros dois remavam. Eu só fazia menção. Só pose. Tirei até foto, com minha Olympus Trip 35, manobrando o remo e de cigarro estilizando um sorriso de canto de boca. Lorota. Revelo que os meninos pediam até que eu nem enfiasse o remo na água para não atrapalhar. Estávamos na corrente que levava à corredeira braba e qualquer falha, poderíamos perder o controle e sermos arrastados. Depois dessa dica, fiquei ‘estaltinha da silva’.

Um dos condutores da canoa era o Leonel, personagem pra lá de simbólico da cultura ribeirinha. Uma horinha dessas, volto aqui pra falar só dele. Era encantado. Ele sim, remava só na caté. Liderou a navegação e nos levou até aquela maravilha que era constituída de um acúmulo desordenado de blocos rochosos lavado aqui, ali por poderosas corredeiras, e a maioria dos blocos exibindo pinturas rupestres.

Botei pra chulear nas fotos. Delas, acho que sobrou apenas um registro, as outras não resistiram às intempéries. Na foto que sobreviveu, estou ao lado de uma gravura ancestral. Esta comprova este meu relato. A foto que, dizque, estou remando, de tão poeticamente fingidora que era, virou almoço de cupim.

 

sábado, 14 de junho de 2025

crônica da semana - cabeça branca

 Cabeça branca

Acompanhava a setinha do painel trazendo o elevador para o térreo. Tinha uma consulta no décimo andar. Demora. Nisso, dois jovens se posicionam perto de mim. Um deles se adianta, vai até o quadro de aviso instalado na parede, faz um gesto de desdém, volta-se em minha direção e me confronta querendo saber a minha opinião sobre aquele panfleto. Nem tinha notado. Estava na mira era da minha consulta lá no décimo andar. Será que o médico já chegou? Tem muita gente na espera? O que é que eu tenho, meu Deus? O que deu no exame? Não estavam na minha conta, outras preocupações.

Tratava-se de um comunicado alertando sobre o bullyng. Exibia um desenho representando uma criança em sofrimento e um texto reproduzindo argumentos que definem este tipo de prática como crime. Pois então. O rapaz se dirigiu a mim querendo saber o que eu achava da mensagem. Voltei o olhar à parede, fiz um gesto com a cabeça de concordar com o conteúdo e respondi a ele, assim, sem muita profundidade que eu estava alinhado com a idéia expressa ali. Mas cuide, não, que foi um choque para o camarada. Esperava outra resposta. Não se conformou e partiu para a fase de argumentação. O elevador demorou no sexto andar. Descendo.

Voltou-se para mim demonstrando inconformismo e declarou a convicção de que, ao me ver ali, a espera de uma consulta médica, cabeça branca, com algumas experiências vividas, esperaria uma opinião das antigas, conservadora, no rumo de admitir que este tema hoje é tratado com mimimi, como afetação de ‘gente que só leva as coisas pra esse lado’. Pretendia ouvir de mim que no meu tempo essas coisas, essas encarnações se resolviam era no soco. E me pressionou para uma guinada de opinião sugerindo que eu confessasse que fazia isso mesmo no meu tempo de moleque. Partia era pra cima do garoto que mexesse comigo. Outro baque. Reagi, agora com mais energia. Confirmei até com uma legenda temperamental que carrego comigo há anos: Nunca levei e nunca dei um soco em ninguém, na minha vida. Meu revide sempre foi com palavras. Nessa hora, o elevador desengatou do sexto e até o outro rapaz se indignou. Nunca brigou com ninguém? Reconheci a decepção no rosto deles. Jamais contariam encontrar na fila do elevador, uma pessoa da antiga que não confirmasse os modelos midiáticos atuais que eles admitem, de coroas do bem. Infelizmente para eles, eu não era o tiozinho que reproduz mensagens de ódio no zap, aquele que veste uma camisa amarela e sai por aí rezando pra pneu, ou aquele que se estatela em frente ao para-brisa de um caminhão aguardando atenção divina para a intervenção militar. E quando entramos no elevador, já com uma tensão instalada nos separando, ainda ouvi resmungos de insatisfação por causa da mira equivocada que fizeram em mim. Como pode? Cabeça branca?

Sobrou pra mim que subi para minha consulta com aquele peso da geração nas minhas costas. Outra dor pra cuidar.

Eram jovens. Brancos. Pele bem cuidada, roupas de marca. Frequentavam prédios comerciais e não era pra atendimento médico. Por certo, e esta é uma interpretação a partir destes traços que identifiquei neles, e é bem provável que esteja cravada de verdade; na certa, os caras têm a vivência circunscrita a uma bolha social que valida práticas cotidianas que negam conflitos graves como o bullyng. Imagino que dividem o tempo com tios de cabeça branca que anarquizam as políticas de inclusão, preferem ambientes selecionados da elite, para se divertirem a custa da humilhação de outros, e, tudo indica, gostam de resolver conflitos no soco. Não senti remorsos por frustrá-los, por isso a tensão, enquanto o elevador subia. Não confio.

A minha consulta deu tudo certo. Exames no jeito, medicação fazendo efeito. Tudo nos conformes, exceto um amofinamento, um banzo repentino, este fardo pra carregar, esta dor nas costas provocada pela pecha imputada à minha geração cabeça branca.

  

sábado, 7 de junho de 2025

crônica da semana - guarda-roupa de parede

 Guarda-roupa de parede

A conversa surgiu de um chafurdamento nas idéias para um passa-tempo de calçada até que o sol iniciasse a descida no horizonte. A gente trocando uma prosa enquanto esperava o colorido se definir ali na baixa do céu e, no repente, reaquecemos a idéia de partilha, de ombros lado a lado. No explica aqui, relembra ali, cata exemplos acolá, nos demos conta de que algumas das invenções de vida, superações de encalacres, dinâmicas de abrandamento de aperreios, alternativas para ir levando os dias com o que se tinha, foram seivas que percolaram nossas histórias do mesmo jeitinho, com a mesma sustança. Era tática de companheirismo que só mudava de endereço.

Quando veio do Acre com uma meninada agarrada à barra da saia, mamãe não tinha a menor idéia de como iria se virar. Voltou pro colo de minha avó e à proteção advinda de uma pecúnia providente deixada pelo nosso vô, conquistada pelos serviços prestados como Agente Estatístico do IBGE. Foi por causa desta carreira no funcionalismo público que vovô foi bater no Acre. Com razão neste translado é que se deu ensejo aos Sodreres paraenses do Xapuri. Ao concluir a missão, meu vô regressou para Belém e foi morar na Marquês de Herval. Mamãe ficou lá no Xapuri, gerando filho todo ano do seringueiro boa praça que cantarolava pelas ruas de seringa, músicas de Nelson Gonçalves.

Quando desembarcamos do táxi Aero Willys, de confronte a vila do Cruz, na Marquês, meu avô não estava mais entre nós, o seringueiro ficara no Acre cantarolando paixões e mamãe iria assumir a solidão para a vida toda, mas antes, ousaria agregar mais 5 demandas ao orçamento familiar amparado na pecúnia  do patriarca.

Barra pesadíssima aquela. Anos de chumbo. Governo autoritário. Ditadura. Povo cabisbaixo, desdentado, desnutrido. Sujismundo. Repressão a cada esquina. Um bolo econômico que crescia, mas nunca era dividido. Tudo pela hora da morte. Carne vendida no puro osso do contrapeso e embrulhada na folha do Guarumã. Óleo para as frituras aviado na medida pouca, comida aos retalhos. Cuidado, respeito nenhum pelos mais pobres. Os mercados e as feiras eram povoados de saqueiros, engraxates, pupunheiros, picolezeiros, biscateiros-mirins... Trabalho infantil sem nenhuma restrição. Vaga em escola, só se dormisse na fila (ou se tivesse um pistolão).

A avenida Marquês de Herval era, bem dizer, uma paragem bucólica. Tinha muito de interior. Vizinhança atenciosa, quintais minados de camapu, silêncios ou, no máximo, sapos e grilos cantadores ao cair da noite. Vaga-lumes clareando a rua carente de iluminação pública. A casa era de barro e geminada. Uma vila construída sobre o suave barranco que margeava a rua de terra. Morando nesta casa da Marquês foi que comecei a estudar na Aparecida. Iniciei pela Alfa, mas logo estava na primeira adiantada, segundo mamãe, porque era muito ‘intelixente’. Sabia contar todo o capítulo do dia anterior da novela Irmãos Coragem. Moramos durante um tempo, tudo misturado, os paraenses genuínos e os acreaninhos. Depois da Marquês foram muitas mudanças. O legado do vô não compreendia casa própria. O que deu, de certa vez, nos abrigarmos os onze da família, num apertado de três compartimentos, um nicho mixo, embora fosse uma casa ‘altas e baixa’.

Até que um dia, nós acreanos, ensaiamos uma desmistura. E daí veio a nossa reflexão dias atrás, na espreita do pôr do sol. Foi sobre esta ação latente no inconsciente coletivo. A divisão da mesma casa para duas ou mais famílias, arremedando privacidade. E o artifício comum à maioria das divisões: utilização do guarda-roupa como limitador de cômodos, como ordenador de espaço, uma parede móvel, submissa às precisões (o banheiro ficava em um dos hemisférios e precisava ser acessado via guarda-roupa). Muita gente que conheço fez isso. Embora não parecesse, fazia parte sim de uma ação de partilhamento. Com ajustes, advogo.

 

 

 

sábado, 31 de maio de 2025

crônica da semana - diário de um comunista

 Bate, escapole e deixa (diário de um militante)

Mais que depressa, escapei pelas ruinhas do centro. Se não sou rapaz, arisco nos guizas e abandonos no vácuo, o canzarrão tinha era me bocanhado com vontade ali, no agoniado da manifestação (que hoje, não sei por que das quantas, chamam de ‘manifesto’. Mudanças, hermenêuticas negacionistas, desconfio).

Nem sei quando me tornei manifestante. Sei que nesse dia que abeirei os horrores da repressão, já era taludinho, alvo certo pra uns transpescos. Se a tropa me alcançasse, os leais combatentes não iriam aliviar. Ainda mais que eu estava na linha de frente, distribuindo panfletos, gritando palavras de ordem, inspirando a revolução.

Sei apenas que, ao chegar do Acre, não era nada, não tinha nada, nem entendia nada. Mal comia, mal dormia, tinha dor de dente e me bati com todas as doenças da pobreza. Uma papeira quase me levou pro buraco. Fui salvo pela freira que atendia na indigência da Santa Casa e pelas espetadas no glúteo de salvadoras doses de Penicilina, aplicadas por ela, sem pena; e que doíam tanto que eu rabeava, ia ao céu, ao aperreio do inferno, voltava, batia, escapulia, ao fim, deixava a dor me dominar para meu bem e para o bem da sagrada teima de viver.

Devo ter-me avermelhado nas idéias por causa de alguém, uma influência do bem. Acho que foi na copa do mundo de 1978. E para esta conclusão, não há tema ou verbo que explique. Simplesmente, maldei algo errado nesta época. Penso que por causa das lições que recebíamos na disciplina de Educação Moral e Cívica lá na Escola Jarbas Passarinho. Ali se exercitava a defesa inconteste do regime em sessões que hoje se equivaleriam ao powerpoint da direita enferma e destrambelhada.

Pensando melhor, localizo em minha mãe, os primeiros movimentos em direção às minhas condutas comunistas.

Vivíamos num quarto-sala-tudo, numa vilinha da Mauriti. Éramos quatro bocas ávidas para alimentar, quatro estômagos para aliviar, crianças para dar o que vestir, lugar para se acomodar, cuidar da moral e zelar pela dignidade. Ainda no meio desse afogueado enredo, mamãe, de vez em quando dava uma doida, e abrigava mais gente no apertadinho da nossa casa da vilinha. Eu lembro de pelo menos duas companhias. A que mais chamou a atenção foi a de uma família de mineiros. Não me consta como os achou. Sei que quando vimos, tínhamos em casa, a mulher, o marido e a menina, uma criança que até hoje lembro o nome: Elis. Estavam magros, tinham poucas roupas e de lavagem fraca que ensejavam odores e encardidos. Fomos nos arranjando e até hoje, quando me deparo com um prato chamado nhoque, que pra mim  é um combinado de massa pra sopa com picadinho, lembro dessa família. O marido era alcoólatra e foi a primeira experiência que vivi com pessoa nessas condições. A mulher, uma guerreira, chamava a atenção pela musculatura potente e farta, não rejeitava trabalho e, de profissão, cozinhava bem pacas. Mais com pouco, voltaram para Minas, tornaram a velhos dramas. Com um tempo, não tivemos mais notícias. Ficou a lembrança do nhoque e a sincera intenção da mamãe de partilhar lutas e dores.

A vivência para mim, sempre significou partilha e foi deste conceito, desta ação humana, que nos valemos durante muito tempo. Em nossa casa, praticamente tudo era advindo de doação, inclusive uma cadeira de vime chique que abrigava uma colônia de microbinhos que pinicava a bunda da gente. Depois, bem depois da nossa chegada do Acre, quando eu já exibia uma carteira de trabalho assinada aos 12 anos, é que adquirimos algo nosso. Meu primeiro salário, usei para comprar uma TV que mesmo em sintonia baixa, aos chuviscados, nos permitiu assistir à novela Xeque-mate.

A partilha para mim, sempre significou alguma realização coletiva. E por isso, desembestei na carreira naquele dia em que os canzarrões, à potentes bocanhadas, dispersavam a manifestação. Tinha muito que realizar ainda.

 

 

sábado, 24 de maio de 2025

crônica da semana - fã número 01


 Fã número 01

Nem bateu a liga assim, de prima. Rolou um estranhamento inicial, até, considero, de parte a parte. Só depois, com os jeitinhos é que a coisa foi se firmando, mais adiante é que os corações foram se enamorando.

Um dos nossos primeiros encontros ocorreu ainda inspirando apresentações. Desde 2010, com a mudança no meu horário de trabalho e a família domiciliada num puxadinho no quintal da Pirajá, a minha presença em Belém se dava somente nos finais de semana. A Gata já habitava a casa principal da vilinha que a gente vivia. Numa dessas vindas a Belém, tínhamos gatinhos novos na casa. As crias estavam abrigadas num confortável escondidinho e achei de abelhudar. Pra quê, quando dei as caras por lá, a Gata se inquietou, fez uma zoeira, reclamou. Não me tomou como morador, viu naquela aproximação, a hora de, pelo expediente da adoção, ficar sem um dos gatinhos, como já havia acontecido das outras vezes que pariu. Em ação decidida, abocanhou os filhotes pelo cangote e mudou a família de lugar. Foi dar lá no nosso puxadinho, num apertado debaixo do tanque. Quero crer que até aquele momento era a Gata da vilinha, andava por cá, por lá, se arranjava com desenvoltura pelas duas casas, mas dali em diante, com aquela movimentação tática, configurou-se uma opção. Estabeleceria a moradia ali, junto aos Sodreres.

Aos poucos, foi se acostumando comigo. Algum tempo depois, deixei Barcarena e vim morar na Pirajá. E nessa rotina de ir e vir todo dia para o trabalho, acordando cedinho para atravessar a baía, tornou-se minha companheirinha nos extremos do dia. De forma que, no horário da madrugada, quando saía, e todos em casa dormiam; e depois, ante o conflito das ocupações de todo mundo à noite, quando voltava, admitia ser a gata a única pessoa que se permitia me acompanhar na hora de sair de manhãzinha e também a única que me recebia ao regressar, cansado e estressado. Anos e anos nesta batidinha só nós dois.

Na Pirajá, também desenvolveu o espírito comunitário. Em tudo em quanto a Gata marcava presença, dava o ar da graça. Era certa a participação dela, e de forma muito ativa, nas festividades de época, aniversários na família e, muito marcadamente, no badalado Sarau do Quintal. Tinha lugar cativo para, atenta, acompanhar as canções, a declamação de poemas e também as performances e danças. Era tida como ilustrada, famosa. Todo mundo queria uma foto com ela no calor das apresentações.

Nós os Sodreres, mudamos da vilinha e alteramos o nosso perfil de convivência. Não teria mais aquele formato comunitário amplo. Seríamos só nós, sem a diversidade da vilinha. Este fator que retrata de certa forma um isolamento, teve um efeito expressivo no comportamento da Gata. Com referências restritas, passou a assimilar um pouquinho das nossas personalidades. Esboçava costumes de um, de outro; Desta fazia menções de carinho; daquela, arremedava aplicação, objetividade. Continuamos madrugando. Me acompanhava no café, todo dia, na varanda, apreciando a Pedreira acordar. À noite tínhamos momentos certos. Ao chegar, tirava as botas, a camisa, sentava numa cadeira confortável e a chamava para a troca de carinhos no meu colo, enquanto esfriava o corpo e a cuca, para tomar banho. Adiante, banhado, ao pegar meu violão, no quieto do quarto, ela logo subia na cama para acompanhar as canções com olhares cândidos. Era minha fã número 01.

Nunca aceitou outro nome, atendia por Gata de bom e sincero grado. No início da semana, dia 19 de maio, a Gata nos deixou. Desde 2023, idosa, passou por três internações. Nesta última, a doença já era avançada, implacável. Foi liberada da clínica para ter seus últimos momentos aqui em casa. Acolhida, amada. Ao chegar, reproduziu aquela cena que realizamos tantas vezes de madrugada. Foi ali pra varanda apreciar a Pedreira. Parecia ter saudade. Esta mesma ferina saudade que hoje nos abate.

 

domingo, 18 de maio de 2025

crônica da semana - amar e outros medos segunda temporada

 Amar e outros medos (segunda temporada)

Vez em vez, me pego visitando o longe (“a miragem”), e sem defesa, me vejo entregue a um comichão reflexivo impactante. Uma batucada em alta frequência faz vibrar a pergunta sem freio, sem barreira. Sincera, consciente, urgida em penosas certificações: Como é que a gente veio dar aqui?

O mês de maio me traz mais um ano contado. Me adianto além dos sessenta revendo meu traçado, revisitando e ousando entender esta desilusão histórica que faz minha geração chorar um olho, remelar outro e manter os dois bem abertos, atentos aos custos de uma  frustração, vigilantes aos remendos possíveis ainda de serem intentados, mesmo que suportados por um inclemente cansaço.

Eu por mim, jamais pensei, nesta dobra sessentona da vida, nesta nova temporada, passar por situações que para mim já estavam superadas, relegadas a um démodé nicho autoritário.

Em 1978, o Brasil empossava o último presidente da ditadura. As greves no ABC ganhavam força, o Brasil saía da Argentina se gabando do título de campeão moral da copa do mundo de futebol, e apesar das brisas de liberdade soprarem discretas pelos céus do Brasil, o regime ainda era uma pedrada, o cheiro do povo incomodava mais que o do cavalo e as bombas continuavam a explodir as resistências democráticas. Um tempo difícil.

A molecada do meu top, na Mauriti, fazia 15 anos.

Dali pra frente, minha turma foi ficando mais taludinha, as coisas foram se ajeitando no país tropical, a sociedade ia-se libertando de algumas das mais ajustadas e incômodas amarras. Um período de transição, de conhecimento, descobertas, reconstituição e releituras de mundo. Nessa época, mesmo no sufoco de uma luta intensa e em várias frentes, havia sinais de humanidade emergentes. Era regra de berço a comunidade abominar o nazismo, Hitler era uma figura desprezada. A educação, mesmo sob a batuta da ‘redentora’, sequer ousou melindrar os postulados científicos. A Terra era redonda, todo mundo entrava na fila para tomar a vacina contra a varíola e a negação não ultrapassava o campo dos advérbios mundanos. Os amores eram adolescentes, aquecidos, incontroláveis. Medo era arte sem serventia. Não contava na conta dos nossos dias. Se era pra amar, a gente amava. Se era pra sofrer de amor, a gente sofria. Caso as conseqüências, nos arrancassem fora o coração, por isso ficava. Tinha aquela música do Vicente Celestino que tocava no programa noturno do Joel Pereira e remendava qualquer coração dilacerado. Tudo valia a pena. Ninguém se largava pra sempre aos lamentos. Não se chorava sozinho por amor. Chorava-se cantando. E além do mais, tínhamos uma revolução pra cuidar.

Avançadas as aventuras, a luta continuava e me vi envolvido em conflitos excitados. Movimento operário, confronto entre capital/trabalho, mãe, filhos, mulher amada, família. Turbulências por cima de turbulências, pequenas alegrias, medo nenhum. Perda do amor de mãe. Perda de poder passageiro e frágil, campo democrático fluido de humores. Medo nenhum de solidão, de sofrer por lutar sem parar, medo nenhum de amar. A vida em veloz evolução. Preconceitos caindo aos montes, Resistências agindo, vozes sendo ouvidas.

Desde a última bomba detonada nas bancas de revistas em meados dos anos oitenta, o país vinha se reagrupando em valores mais humanos, em suspiros coletivos de alívio. Minha turma na Mauriti respirando ao peso do dever cumprido e do cansaço. Hora de uma forra.

Que nada, jamais pensei que, ao alcançar o longe, aquilo que parecia ser uma miragem para um moleque da Mauriti que só tinha o dia e a noite, nunca imaginei que no caminhar de 62 anos conquistados de vida, fosse sentir algo parecido com medo.

Nunca pensei um coração batucar de preocupação ao ver políticos em plena luz do dia, repetindo gestos e discursos nazistas para uma platéia de patriotas. Nunca pensei ser necessário, ter que domar o medo e começar tudo de novo.

 

sábado, 10 de maio de 2025

crônica da semana - os jetsons

 Os Jetsons

Tem uma pá de coisas neste mundo doido que já está demais. O calor é de torrar os miolos. Guerras e covardias bélicas destruindo vidas inocentes, um povinho aí que mente que não se sente; e um espaço interior que nem é mais interior, não é mais nosso íntimo, nem em pensamento. Destaco por ação da Inteligência Artificial, dos algoritmos nossa alma sendo, sem resistência, sequestrada.

Deixa estar que eu folgava na minha caminhada rotineira com o fone de ouvindo ligado numa programação aleatória na plataforma de música; e trabalhava também um pensamento paralelo articulando uma homenagem à minha companheira por ocasião de nova primavera naquele dia. Respirando fundo, soltando o ar devagar ao sabor das passadas ritmadas. Imaginei, para a homenagem, uma postagem com uma foto bem bonita e ao fundo uma música que representasse nossos sentimentos. Me veio uma canção do Chico César: “É só pensar em você/que muda o dia”. Tudo a ver. Demonstração musical de carinho.

Tudo isso, sendo operacionalizado na cabeça, na imaginação, no meu pensamento.

Não é que de repente a mesmíssima música me toca na play aleatória que eu estava ouvindo! Ao perceber os primeiros acordes pensei cá com meus exercícios acelerados de respiração: Égua-te! Do nada o algoritmo capta nossas intenções.Vai direto no pensamento, sequer carece de manifestações concretas para que nossas intimidades sejam alienadas de nós. Eu fiquei passado com aquilo, olha. Cadê nossa liberdade de impressão?

Este mundo de alta tecnologia está me saindo além da encomenda. Fururuca nossa vida toda.

Pensar que umas décadas atrás, inocentes menções, singelas representações de futuro eram vistas de forma descrente, estampavam uma evidente ficção.

Agora, com parte da família morando fora, é comum a gente se falar pelas transmissões de vídeo no celular. E não dá outra, toda vez que pego o aparelho e interajo, me vem à memória o arremedo futurista de antigamente reproduzido pela família Jetson.

Os Jetsons formavam uma família localizada em um futuro que contava com muitos dos artifícios tecnológicos que temos hoje. Trata-se de uma série de desenho animado lançada em 1962. No Brasil ocupou espaço na TV até final da década de 80 do século passado. Atravessou eras exibindo um cenário futurístico, no início e até mesmo no finzinho dos anos 80, difícil de se imaginar possível. Um desses elementos tecnológicos que se evidenciava no seriado era exatamente a forma com que a família se comunicava quando estavam distantes uns dos outros. Utilizavam monitores, executavam um comando e a personagem aparecia na tela interagindo, conversando, estabelecendo uma comunicação verbal e visual na instantaneidade do tempo. Igual a conversa que temos hoje no celular.

Quando faço um contato com meu povo que mora fora de Belém, é inevitável comparar o estado atual de nossa comunicação com a singela menção futurista pregada pela série lá pelos entremeios das décadas de 60 e 80.

Dos avanços mostrados nos Jetsons, acho que apenas aqueles veículos voadores que a família usava para se deslocar pelos céus de uma cidade avançada, não temos ainda em circulação. Tantos outros elementos que compunham os episódios, hoje fazem parte do nosso cotidiano, inclusive a naturalização da Inteligência Artificial, na série, representada pela empregada robô Rosie. Servil autômata, extremamente eficiente, trabalhadora, programada para partilhar o sentimento comunitário, reagir emocionalmente e dar pitacos. De toda sorte, de poder atenuado, porque mesmo ali junto à família Jetson, não interpretava tendências, não elaborava algoritmos e também não executava comando como ler a mente dos seus tutores.

A modernidade tirou Rosie da parada. A gente não topa com robôs distribuídos pelos lares da vida. Não precisa desta interação física, a nossa submissão.

Basta a gente pensar que a música toca na play.

sábado, 3 de maio de 2025

crônica da semana - PS em alto relevo

 Em alto relevo

O sábado passado foi um dia belemense raiz. Amanheceu nublado, daquele jeito doce de não parar ninguém pelos caminhos. Sugeriu, entretanto, uma sombrinha sempre à mão porque daqui pra’li o pampeiro poderia arriar, como de fato se deu já do meio-dia pra tarde. Saí com a família para experimentar as ‘comidas de buteco’ oferecidas ali pelo estirão da Marquês de Herval. E o que se deu neste passeio foi muito além do que previa a minha intenção gastronômica. Aconteceu o reencontro, a reaproximação histórica, a reconstrução do ambiente, a busca por personagens emblemáticos... Tudo já debaixo dum toró daqueles.

O combinado era a apreciação dos petiscos em companhia do meu amigo Paulo, residente e domiciliado no bairro da Cremação e que surgiu na minha vida lá pelas brenhas escondidas de Rondônia. Nos conhecemos em 1985, quando ele chegou para trabalhar na mesma empresa de mineração que eu trabalhava há algum tempo. E veio para me tirar de um aperreio. Me sucedeu numa campanha que dava era medo. Ninguém queria aquela missão. Era realizada longe pacas da sede, para se chegar no acampamento base era um estirão de doer, com as tralhas nas costas, cruzando com rastros de bichos grandes, acompanhado de macacos pequenos, mas algo hostis e carapanãs da maleita ávidos de sangue sem respeitar  a luz do dia. O trabalho era barra pesadíssima. Fase pioneira da pesquisa. Mapeamento. O dia todo andando dentro de igarapés, almoço sempre um engana fome no meio da mata, longuíssimas caminhadas sem perceber a luz do sol. Somente a cobertura verde da floresta e o assombro do esturro de onça pra tudo quanto era lado e às vezes bem perto da gente. Comunicação com o mundo só por rádio. E muito ruim. Passei uma semana encarando os desafios da genuína hiléia, até que, graças ao bom pai, Sérgio chegou para me substituir no acampamento e também, para assumir um papel fundamental no meu futuro.

Ficamos muito próximos. Quando nos conhecemos, era perto do Natal. Ele entrou pro campo, fez um período nas campanhas de mapeamento e eu fiquei na sede. Depois de um tempo, veio passar o Natal com a gente. Foi aí que rolou a química. Eu achei aquele cara espetacular. De um dom para observar, captar detalhes de comportamento, sestros ou costumes nas pessoas que depois reproduzia com arte própria e de forma extremamente graciosa. Não digo que era um imitador. Acho que fazia releituras, reconstruía modos e jeitos, montava cenas, redesenhava fatos, em alto relevo. Tinha um acervo de personagens ligados à infância na Cremação que recriava, que reinstalava no contexto em que vivíamos lá em Rondônia. Ele me apresentou estes personagens na viagem que fizemos da sede da mineração para Porto Velho, por ocasião de nossa folga de Natal. O ônibus, um trambolho. A estrada um atoleiro só. Aqui, ali descíamos para empurrar a lata velha. Uma distância de pouco mais de 100 km, resultou em mais de 6 horas de viagem. E no meio de tanta dificuldade, eu me diverti a valer e me impressionei com a capacidade criativa de Paulo Sérgio.

A narrativa que ele empregava vinha enriquecida de bordões, ou como entendo, dizeres, ditados comuns que marcam as personalidades ou as cenas.

Tenho pra mim que depois dos fraseados da mamãe (“pra mim, tanto faz José como Cazuza”) são do Paulo Sérgio as mais exploradas intervenções verbais que utilizo nas minhas vulgares tagarelices, inclusive me utilizando dos traquejos, trejeitos e falsetes consagrados por ele. Naquele final de 1985 conheci um artista. Autêntico, singelo, cândido elaborador de alegrias.

Mas quando que o mundo roda como a gente pensa, né. Deu-se que seguimos o nosso caminho nos divertindo em acampamentos de mineração em Rondônia e Amapá ou pelas ruas da Pedreira, como sábado passado. Nos valendo apenas e orgulhosamente da permitida arte de viver. Experimentando os petiscos, debaixo dum toró daqueles.

sábado, 26 de abril de 2025

crônica da semana - agulha e linha moda

 Agulha e linha

Eu já contei aqui o vexame que passei por não entender os códigos do vestir social. Relembro: convidado para um evento que exigia traje passeio completo, logo me aviei na bermuda, camisa polo e percata. Na última hora quedei-me a calça comprida e sapatos. Mantive a camisa polo do Paysandu que à época era peça mais cara que eu havia agregado ao meu vestuário. Quando cheguei ao local da festa, tomei um choque, que só não foi maior que o espanto que tomou conta dos meus anfitriões. Estava todo mundo no mais chique dos panos. Os convidados exibiam-se em paletós, blazeres, as mulheres montadas nas mais vistosas maquilagens e em longos finíssimos. Pra completar a derrota, ao entrar, tínhamos que posar para a foto oficial da festa. A cara do fotógrafo foi de um descontentamento total. Eu, obviamente, me senti deslocado. Me acomodei numa mesa de canto, e fui reiteradas vezes confundido com um serviçal do bufê pelos convivas que se distribuíam ao largo, além de, indisfarçadamente ignorado pelos garçons que atendiam no espaço. Só fui beliscar uma coisinha quando um atendente se apiedou de mim. Aí eu fiz um derrame de chopinhos e aloprei nos acepipes.

Foi patetice minha, deveria ter feito uma pesquisa, catado umas dicas pra saber como se vestir nessas ocasiões. As fontes são várias. E olha que eu era fiel à coluna da Regina Martelli, no Jornal Hoje. A jornalista, de certa forma popularizou a narrativa, até então, distante da moda. Eu admirava a descrição que ela fazia dos modelos apresentados em várias reportagens que ela fazia e que envolvia desfiles, cobertura de festas, eventos, figurinos de filmes e shows musicais. De verso fácil, Regina construía graciosos discursos coordenados do tipo “ tricôs leves com brilho, maxicolares étnicos e estampas, desde as florais até as geométricas. Os sneakers não ficam de fora e continuam com tudo. As mulheres adoram salto e os sneakers proporcionam uma cara mais descolada, mais esportiva...” Eu me passava pra esses dizeres precisos, indutores, formadores de imagens.

Enquanto a mídia nacional contemplava uma abordagem mais abrangente da moda e também, admitia a ligação entre o ato de vestir-se bem com a sensação de sentir-se livre, aqui no campo doméstico tínhamos as nossas expressões na arte de coser. E que se ratificavam em camadas integradas de criação e consumo. Nossa terra ostenta nomes bem cerzidos na história como o de Lelê Grello. Já projetou o brilho de Dener para mundo. E também bancou circuitos populares de tal forma potentes, que arregimentavam as ativistas da agulha e linha de áreas afastadas do centro. Aqui na família, lembro das participações na Femip. Era na, hoje, praça Waldemar Henrique. Fazia um sucesso extraordinário, a feira, todo mundo baixava lá para ver nossas manequins exibindo modelos produzidos nos quatro cantos da cidade. A família aqui da Pirajá se organizava para prestigiar a etiqueta ‘Marilene Arte’, marca emergente da nossa estilista carinhosamente chamada de tia Churuca. Profissional requisitada por 10, entre 10 amantes da arte do corte e costura.

Revivi esta atmosfera por agora quando participei da Semana de Moda Amazônica. A mostra contou com um elenco incrível de talentos da região. Os desfiles apresentaram uma leitura ousada na composição visual das peças, com ênfase às cores de referências amazônicas e também a materiais adaptados ao conceito da sustentabilidade. Impressionado fiquei com os modelos apresentados na técnica macramê em tecidos forjados de sacolas plásticas. Um encanto produzido pela premiada figurinista Laila Maia.

Estas experiências, o contato de perto com os talentos, a seriedade da idéia de uma postura libertária diante das exigências de um mercado oxigenado pelo glamour, me dão a chance de revisitar meus constrangimentos. Sem trauma por não decifrar os códigos de um traje passeio completo.