sábado, 12 de abril de 2025

crônica da semana - é capaz de

 É capaz e é bem capaz

Acompanho a turma que pensa que tal coisa assim, assim é difícil, mas é capaz de acontecer.

Dou fé e testemunho destas surpresas que se pulverizam no campo da probabilidade, e no mais que de repente, pluft, se realizam ali na nossa frente ou como um bólido, vêm de encontro à gente. Foi o que aconteceu comigo enquanto fazia a minha caminhada terapêutica num dia comum desses de sol raro, da época.

Estava na minha. Só na manha, só na batidinha da aeróbica. Ritmo bom, respirando no compasso do coração. Caminhava pelo canteiro da rua e cismei de atravessar para a calçada do outro lado, alpegada do Bosque, onde grassava uma fieira de árvores pródigas na boa fresca da manhã. Trânsito tranquilo, carro nenhum próximo, pista liberada.  Do meu ladinho, a ciclovia também não anunciava ciclista chegando perto. Olhei pra trás, gente correndo, caminhando, fiz um delta tê mental e cambei pro lado. Mas foi só uma lapada. Uma trombada federal. Lei da ação e reação na mais genuína experimentação. Eu prum lado, a pequena pro outro. Caminhantes vieram em socorro. Só fiquei meio zonzo pelo susto. Fiz a autoavaliação, nada quebrado, nenhum arranhão. Volvi à batidinha da manhã. Antes soube que a pequena que trombou comigo foi aquela que vi de relance enquanto me preparava pra atravessar e que pela resultante da função horária que elaborei na cabeça, de jeito e maneira cruzaria minha frente. Ledo engano. Simplesmente a menina era velocista em plena carreira contra o relógio, concentrada, focada, mirando, impávida o rumo, na direção do nariz. Não contava com minha guinada no repente. Quando tornou, já estávamos rebolando um pra cada lado.

O campo da probabilidade é campo de minas combinações, mas escaldado na missão, acompanhando a rotina dos freqüentadores contumazes da área, não achava ser capaz de acontecer uma colisão. A galera é contida, o mais ligeiro que se abala é numa puxada aeróbica só pra acelerar a suspiração. Quem corre, vai naquele jeitinho miúdo que se reduz a um trotado doce. Quando no meu toutiço que eu ia imaginar uma velocista-raiz infiltrada naquele mosaico de tímidos fundistas?

Um choque, um acidente de tal jeito espetacular que jogou o velhinho ali, lá longe no chão, no cedo do dia e rompendo o equilíbrio da serenidade e da cadência dos exercícios triviais foi fato raro.

Éraste-te! Parece uma coisa. Reinei até jogar na Loto, nesse dia. Nada, porém, vem do acaso, do jogo duvidoso de destinos. A atleta estava errada. Estava correndo na faixa destinada a ciclistas. Por isso não maldei quando olhei pra trás. Naquele rego da ciclovia, procurei bicicletas e não gente. Até vi de relance alguém correndo, mas em função do cenário, meu cérebro não processou. Não ligou lé com cré.

Estas anomalias devem, certamente, compor nossa carteira de sobressaltos e arrepios mesmo que a gente dê pouca trela pra elas. No entanto, o que inspira cuidados, o que nos põe em alerta mesmo é o que é comum, de tal forma que passa do capaz de acontecer e chega no alto grau do bem capaz de virar um fato.

Por exemplo, ficar de palmo em cima com uma motocicleta em plena passarela para caminhantes do canteiro da Marquês de Herval de Herval é bem capaz, a qualquer dia e a qualquer hora do dia. A probabilidade é altíssima principalmente naqueles trechos em que a calçada se dispõe de forma a ligar as duas margens do canteiro. É batata. Aquele pedacinho, na boa, é usado para mudar de pista. A calçada ali, é a extensão da pista de rolamento no termo e no jeito porque sequer reduzem a velocidade quando varam de um lado para o outro. Quem caminha, quem corre, aquele ciclista que usa a parte central do canteiro, cada um que se livre e se atine ao sobressalto.

Numa caminhada pela Marquês é capaz da gente achar prendas valiosas como um cajá madurinho. Mas é bem capaz da gente se emboletar, se surpreender. É bem capaz.

sábado, 5 de abril de 2025

crônica da semana - volta grande xingu

 A Volta Grande

Do meio pro fim de março, bateu uma inquietação, uma latomia íntima. Uma saudade molhada, fluida, livre, ganhando rumo além das margens e dos horizontes finitos. Imbricada a este tempo chuvoso de recolhimento, por certo, porque o inverno amazônico é palco úmido e fértil de lembranças. Então bati, virei e mexi pelas plataformas da internet atrás de vídeos que me atendessem a demanda da memória. A cidade de Altamira foi a razão da minha vexação de momento.

É comum, aqui na região, fazer a leitura da cidade a partir do rio. Dito e certo, todas as produções tinham como ante-sala o belo, o incrível, o afetuoso traçado do rio Xingu. Aproveitei o roteiro. Foi bom rever aquela beira de rio. Procurei os points que freqüentava há quase 40 anos: Aquele restaurante insular, mimetizado em um baixão atravessado por estrada em aterro que ia dar na franja do morro do quartel; planície de vocação oleira, que nos levava discretamente a peixaria que tinha como orgulho maior, ter servido aos políticos, inclusive presidente, envolvidos na obra da Transamazônica. Tirando as ideologias dos freqüentadores, tinha uma cozinha espetacular, variedade de pratos a base de peixes da região que entontecia a gente.

Voltando um pouquinho, em frente à cidade, tinha um restaurante japonês. Ambiente alternativo, comida diferente, e um atendimento marcado pelo zelo oriental. O tempo este devastador de gentilezas, esmerou-se em me fazer esquecer o nome da proprietária, gerente, atendente do restaurante, a japonesa. Mas as lembranças de uma culinária delicada, cheia de sentidos e das reuniões que fazíamos ali eu e minha patota ficaram em mim. Não era um lugar ao comum do barato, mas pelo menos uma vez por mês, quando saía o numerário, marcávamos presença lá. Valia a pena.

Saindo da linha de margem agregada ao centro, o Xingu nos reservava áreas de lazer, banho e confraternização. Eu era fichado no Pedral. Vi agora na internet que ainda há movimento naquela prainha simpática. Folguei às pampas por ali.

Dentro da cidade, minhas referências são as ruas Pedro Gomes, Luís Né, o bairro do Premem. Com exceção de um período em que fomos alojados em um motel que que virou hotel Juruá, na primeira ladeirona da Transamazônica no sentido Belo Monte, a maioria do tempo trabalhei e morei pelos entornos do centro. No entanto, me largava também para O bairro da Brasília.

Tentei achar nos vídeos, outras referências da cidade. O núcleo urbanizado, os arrabaldes...

Tinha um chamego com o bairro da Brasília. Minha equipe de campo, quase toda morava pra lá. Fiz amizades na música, na militância católica e política que tinham casa pelos arredores da praça da Brasília. Passei muitos fins de semana comendo peixe assado, entornando uma branquinha com limão, cortando uma gíria caiapó e intentando paixões, aninhado à peãozada, na Brasíla.

No aglomerado da cidade, se quisesse me encontrar era só ir ao restaurante do Carioca. Perto do trabalho, era o local onde fazíamos a refeição diária e pendurávamos a conta no prego mais alto da parede mais ao fundo do estabelecimento. Era lá também que nos reuníamos uma turma diversa que acomodava técnicos, pesquisadores, políticos de diversos matizes e simpatizantes do bom papo. Levávamos a liberdade de pensamento noite adentro, sempre cuidando para manter o teatro de operações municiado de apreciados petiscos. Por indicação, muitos que visitavam ou faziam jornadas ocasionais no projeto em que eu trabalhava apareciam em nossas confrarias. Especialistas do Goeldi, comissões estrangeiras, até o Paulo Vanzolini e o sertanista histórico da Funai José Porfírio Fontenele prestigiaram nossa patota. Às vezes o tempo fechava quando as divergências se mostravam inconciliáveis. Carioca entrava em campo e semeava a paz. Não queria rachas incontornáveis. Era um administrador da calmaria. E facilitava no que podia. Em tempo de inflação batendo 80% ao mês, nos quitava os fiados sem a indicada correção e em noites mais inspiradas do nosso grupo, ia-se embora e deixava a chave do bar com a gente.

Muitas das minhas referências de acolhimento em Altamira não existem mais. Só o Xingu continua afetuoso, mesmo que desidratado e tendo perdido o domínio sobre a Volta Grande.

sábado, 29 de março de 2025

crônica da semana - ganhamos emilinha

 Ganhamos Emilinha

Sabe aquela coisa que a gente poderia ter feito, não fez, depois ficou se batendo, se mordendo de arrependimento?

Emilinha Borba e Adelaide Chiozzo estavam em Belém. Dariam uma entrevista na rádio Cultura pela manhã. Eu morando aqui na Pedreira, bem dizer ao pegado, na certa cultivando o ócio àquele período do dia, e fanzésimo das duas, bem que poderia ter batido perna até lá, ao menos para vê-las de longe. Não fui. Nunca vi Emilinha ao vivo.

Conhecia Adelaide (“que beijinho doce/que ele tem...”) e Emilinha (“assim se passaram dez anos...”) das sessões na TV, que em épocas distantes reproduziam no horário da tarde, filmes clássicos da Atlântida, da Vera Cruz e nos apresentavam um elenco fascinante que incluía Grande Otelo, Oscarito, José Lewgoy, Eliana, Anselmo Duarte, Tônia Carreiro, entre tantas estrelas.

Minha avó era ligada na programação e nos chamava, a netaiada pra acompanhar com ela a aventuras de Oscarito e companhia. Eram tardes maravilhosas. Que reservavam dentro de mim, preciosos guardados. O riso farto de minha avó, os elogios que ela fazia à beleza das atrizes, uma descrição aqui, outra ali, dos acessórios e balangandãs que o elenco usava nos musicais. Minha avó interagia com as cenas. Cantava as canções junto com a orquestra. Mamãe ia na mesma pisada. Se estivesse em casa, eram as duas em frente à TV. Então era um momento em que vivíamos abrigados às matriarcas, sentindo e reagindo igualzinho a elas. Nos contaminando de cenas em preto e branco e do desprendimento que a arte do cinema inocula na gente. Quando digo que sou avovozado, amamãezado, é disso que falo.

Nessa leva, virei um admirador atento de Emilinha. Acompanhei reportagens que narravam a carreira dela. Os títulos de Rainha do Rádio e as disputas com Marlene (mais tarde eu conheceria com mais detalhes, o trabalho da cantora Marlene, que, ao contrário de Emilinha, tive a oportunidade de ver em duas oportunidades aqui em Belém. No teatro com “A Ópera do malandro” e no Projeto Pixinguinha cantando, interpretando e botando pra chulear no ginásio da UFPA. Um fenômeno! Uma artista espetacular. Justifica os sucessos que teve nas disputas pela coroa do rádio. Era um furacão. Virei fã de Marlene, também).

Meu coração, no entanto, era de Emilinha. Por vários motivos ligados ao talento dela, mas, mais ainda pela relação afetiva que a cantora proporcionava dentro da minha família. Esta relação se encorpava mais ainda porque minha mãe era uma cantora doméstica, de casa, dos instantes suaves... e que me encantava. Numa época em que Belém passava por eventos de falta de luz toda noite, o falado blecaute, mamãe nos presenteava com sua voz. Atava a rede na sala, nós nos arranjávamos pelo chão, nos acomodávamos no batente da porta ou em outra rede ao pegado e nos dávamos a ouvir mamãe só na capela.

Trago nos meus guardados do coração, minha mãe cantando “Dez anos”, sucesso disparadíssimo de Emilinha. Durante muito tempo, e até hoje quando ouço esta canção traço uma ponte até alcançar a margem dos meus afetos, as tardes assistindo aos filmes com minha avó, as aparições de Emilinha nos musicais; e os tempos sem luz em Belém com mamãe adoçando o amargo da vida e clareando o escuro da noite com aquela voz de nos emocionar, nós, a filharada espalhada pela sala, amparada às emoções.

Dessa forma, e com estas marcas gravadas dentro de mim, me definindo, me guiando, quando iniciei minha trajetória nesta coluna, no final de março de 2006, optei por fazer uma homenagem a estas mulheres. Emilinha tinha morrido dias antes; minha avó reconhecia o mundo com dificuldades, entregue ao mal implacável da idade; e minha mãe, no céu e nos meus sonhos, vibrando em doçuras musicais.

“Perdemos Emilinha” foi minha primeira publicação aqui na coluna. E assim, de lá a cá, se passaram 19 anos. Penso que, em verdade, ganhei Emilinha.

sábado, 22 de março de 2025

crônica da semana - escriturário

 O escriturário e todos os nomes

Não se parecia em nada com o tipo monótono, de modos contidos, sempre discreto. Personagem quase ausente, que organiza sua rotina escondido em uma mesa no fundo da sala de uma repartição pública; ou mesmo no escritório de uma firma de médio porte perdida nos apertados de ruas do centro. Mas era ele, o escriturário, e eu o localizei ali, na ala dos brincantes mais animados.

Em verdade, o carnaval é a realização dos contrários, a menção aos invisíveis, o domínio dos rejeitados, o riso dos tristonhos, o beijo dos solitários, a exaltação dos pilheriados, a superação dos combalidos. É o céu na terra de um povo feliz. Faz a satisfação dos escriturários e outros tantos e todos os nomes que se reproduzem na sociedade. É assim como o personagem de Saramago ou um coadjuvante de algum romance de Machado de Assis marcado pelo padrão na personalidade sisuda, na postura retilínea (embora o ligeiro balanceio no andar).

Eu o vi tomado de uma alegria alheia, de um transe bom, entregue a movimentos dispersos, livres, evoluindo, soltando a voz no samba-enredo e até arriscando uma ginga de samba no pé, abrigado pela pequena multidão litisconsorte. Não parecia em nada o tipo ordinário, escravizado pelas formalidades da função.

A imagem do escriturário tão bem representado nos romances como emblema de conduta reta, adiciona mais um item ao caráter subversivo do carnaval. O carnaval é a negação do escriturário.

Ou de tantos outros e todos os nomes.

Vale a pena aqui, lembrar seu Dé. Ou Deoclidiano. Nosso vizinho de porta na vila em que morávamos na Mauriti.

Era o tipo comum e monótono. Embora o ao pegado das casas da vila nos estimulasse a intimidade, ou no mínimo, a cortesia, não dava trela pra comunidade. Entrava e saía de casa ofertando um econômico bom dia, boa tarde. Nessa ordem. Não por mal que era. Mais pelo calibre dele mesmo. Postura, jeito de ser. Era funcionário dos correios. Operário padrão com medalha colocada no peito pelo Figueiredo. Tinha todas as promoções na carreira, limitadas, claro, à função de carteiro. Nunca faltou. Respeitado na igreja, católico tradicional, ministrava palestras para cursilhistas. Em casa era homem de poucas palavras, segundo sua companheira que, taí, era bem mais dada com o pessoal da vila. Sabia dos filhos porque a vizinha lhe dava a missão do visto nos cadernos. Fora uma saída com um dos meninos no colo e o outro arrastado pela autoridade da mão, não era de estar batendo perna na rua. Era de casa pro trabalho e do trabalho pra casa...

Até chegar o carnaval...

Da feita que o sábado gordo despontava, já era. O escriturário, o carteiro, seu Dé de todos os nomes se destrambelhava das ideias. Ele desfilava em todos os blocos e escolas de samba possíveis. Entrava na vila só para trocar a fantasia. E era outra pessoa. Fazia gracinha com as crianças, carregava as vizinhas mais velhas no colo, trocava prosas animadas pela janela. A casa ficava aberta e as marchinhas de carnaval dominavam a frequência do três em um. Não se tem relato que bebia. Virava o comportamento de forma sóbria, consciente.

O carnaval e suas magias. Suas revoluções. Operações de resistência, de superação. Enredos ancestrais. Exposição de saberes ofuscados, metamorfoses pessoais. Personalidades oprimidas eclodem do centro interminável de transformações. O que se tem de desânimo ou pesar contamina-se com os ares indisciplinados da alegria.

Festa redentora que faz surgir na avenida harmonizada em cores e movimentos, uma luz, que no dia a dia do seu Dé ou daquele escriturário que identifiquei na ala colorida, infelizmente não se mostra.

Quando acabava o carnaval, seu Dé voltava a ser o carteiro condecorado, o vizinho descortês. Todos os nomes, o escriturário, voltam à sensaboria dos dias.

Pra mim, a vila perdia a graça porque gostava mais era do seu Dé destrambelhado.

sábado, 15 de março de 2025

crônica da semana - =e carnaval, oba!

 É carnaval, oba!

Este ano o desfile oficial das Escolas e Blocos de Belém acontece depois do carnaval. Esta variação de datas despertou aqui em casa uma curiosidade sobre os anos anteriores. O carnaval de Belém era antes ou depois das datas oficiais? Fomos lá, viemos cá. Fucei os meus registros e pelo menos o do ano passado eu garanto. Foi depois. O destrambelho nas idéias vem mesmo é quando a gente compara as datas. O desfile que se inicia agora neste fim de semana e se estende até o próximo, no dia 21 de março, se dá num período de mais de quarenta dias além do carnaval oficial, se compararmos os dias de feriadão de 2024. Só a terça gorda deste ano já conta perto de 20 dias de diferença com relação ao ano anterior. Este ano caiu no 4 de março contra o 13 de fevereiro do ano passado. Sem contar estas programações da prefeitura que levam o desfile ao tempo que dá, o próprio calendário que regra a festa de Momo já é de uma confusão enorme. Às vezes o carnaval cai em fevereiro, às vezes em março.

Isso ocorre porque o carnaval, em que pese o nariz torcido de uma pá de gente do bem, é uma festa pautada nas tradições cristãs. E nem adianta torcer o nariz com este moralismo toldado porque, alinhado aos hermetismos religiosos, o carnaval é uma exceção permitida. É um período em que tudo vale. A carne, principalmente e, diversamente, vale.

O tempo certo da festa muda tanto porque tem um viés sacralizado íntimo à Páscoa. E a data da Páscoa é definida a partir de um contexto astronômico.

É uma conta chata. Primeiro se marca a Páscoa. Ela acontece no domingo seguinte à primeira fase cheia da lua após o Equinócio (aqui, o contexto astronômico e o subjetivismo do dia da semana abonado pelo calendário ocidental). Aí, estando o dia da Páscoa marcadinho, se conta quarenta dias pra trás (é a Quaresma, tempo em que, diferente do carnaval, nada ou pouca coisa é permitida. É tempo de contrição e piedade) e se chega no carnaval.  Como a lua comanda a parada e a fase cheia pode acontecer em qualquer momento entre o dia primeiro e o dia 31 de cada mês, esta distribuição é que estica as possibilidades de datas tanto para a festa do pecado quanto para a da remissão. Carnaval pode ser em fevereiro ou março e a Páscoa, em março ou abril.

Mas não é preciso se preocupar com esta matemática, com a abstração dos dias da semana, com as fases da lua e mesmo com este tal de Equinócio que dá uma trabalheira danada pra explicar e é explicação que só adianta para quem acredita que a Terra é redonda levemente achatada nos pólos. Tudo vai ficar bem mais fácil. Soube por fontes seguras e não pelo zap da tia, que o Papa propôs a definição de um dia fixo para a Páscoa. Um domingo marcado assim como o nosso Círio, tipo primeiro domingo do mês tal ou segundo domingo ou aquele que valha da melhor forma para os fiéis. Entendo que é uma alternativa em estudo e que deva se submeter à secularização e teimas do alto clero, mas que, se vier, será uma mudança que virá bem. A variação de datas cairia imensamente e o impacto seria somente aquele um dia bissexto acrescido a fevereiro a cada quatro anos.

Faço gosto. Desse modo a gente se programa melhor. As agendas públicas podem ser mais estáveis e a combinação entre os carnavais mais fortes e midiáticos com os mais fracos e populares pode gerar mais prazer e mais alegria para a carne, lucidez e santidade ao espírito.

Eu por mim, descontando as quizilas de momento e um ou outro nariz torcido por causa do prolongamento da festa, já marquei foi meu lugar lá na Aldeia Cabana. É carnaval de novo, oba! Sou um entusiasta das Escolas de Samba, dos blocos. Admiro a capacidade artística e a energia, a vontade que a comunidade carnavalesca tem. São defensores desta arte. Tô com o samba de todo mundo na ponta da língua. Mas a minha torcida já sabem de quem é né.

Olha a Pedreira aí, gente!

 

 

 

sábado, 8 de março de 2025

crônica da semana - duas taças

 Duas taças

Algo de novo acontecia naquelas páginas. Uma história contada em arranjos libérrimos, sem amarras de rótulos ou de estilo, marcada por palavras proibidas e dores confrontadas. Trajetórias traçadas entre sonhos e armadilhas do destino. Uma construção adiante dos romances que eu estava acostumado a ler na época, aqueles que tinham composições dogmáticas. Não trazia a severidade estética parnasiana, nem a racionalidade mundana realista. Distanciava-se dos Modernos rincões regionalistas de Graciliano, dos versos geométricos Concretizados em vazios; e se realizava, se tornava uma história plena, comovente, acessível ao comum dos leitores. Grandiosa na essência, no íntimo humano. Entendo se tratar de uma narrativa autobiográfica. A autobiografia, ora veja, contra-indicada, atemporal, de um jovem de 20 e poucos anos (tinha aproximadamente a minha idade).

A edição que tenho, é aquela com a capa de fundo preto e destacando em primeiro plano, duas taças quebradas, impactadas por um contraste em vermelho fazendo a menção de sangue derramado. Edição do Círculo do Livro datada de 1988.

“Feliz Ano Velho” foi lançado em 1982, três anos após o acidente de Marcelo. Minha memória localiza lá atrás em Rondônia, meu primeiro contato com o livro, isso entre 1983 e 1986. Daí que acho estranho o meu exemplar datar uns anos mais distantes. Penso que em Rondônia tenha tomado emprestado de alguém e só tempos depois, efetuado a compra do meu exemplar direto com o Círculo. É importante identificar esta linha do tempo porque antes, bem antes de 1988 eu já admitia a influência decisiva do jeito, da desenvoltura literária de Marcelo Rubens Paiva na minha vida, na maneira como entenderia o fazer literário e também como definiria a minha forma de escrever dali por diante. A edição de 1988 talvez tenha me empurrado para além. Embora desde lá atrás já praticasse o desapego estético em cada livro que lia, e também nas minhas pretensões criativas, somente neste ano é que me senti seguro para elaborar e divulgar a primeira narrativa em prosa na forma que referenciasse dali pra frente, meu texto.

Hoje se tenho algumas publicações, premiações que me deram até um bom dindim; se mantenho uma coluna no jornal há quase vinte anos ou se acumulo mais de mil crônicas publicadas na internet é, também, porque um dia, dei com a extraordinária habilidade narrativa de Marcelo, disseminada nas páginas daquele livro de capa dura com duas taças quebradas no destaque em primeiro plano.

As conquistas do filme ‘Ainda estou aqui’ evidenciam uma teimosia nossa de lutar pela arte. O filme despontou após um período de desmonte em todas as frentes de trabalhos culturais. Representa, o filme, de certa forma, um renascimento das cinzas de uma fênix impulsiva, alimentada de um desejo transformador que não se pode reprimir. E mais ainda, traz, na origem, a linguagem reveladora de Marcelo Rubens Paiva (que já se mostrava para mim lá atrás, nos primeiros anos da década de 1980).

O primeiro livro dele, com duas taças na capa nos coloca no mundo de um jovem que passa por momentos de violência e dor. O desaparecimento do pai pelas mãos da repressão e a fratura da quinta cervical são traumas que ressignificam as mais simples operações cotidianas do corpo e da alma de Marcelo. O jeito como ele nos conta a história, tenho como a eficácia de uma literatura humanizada. É a técnica do dizer imediato, sem rodeios, por isso, é de toda sorte alentadora, alinhada em emoções, verdades, reconhecimentos, empatias, solidariedades. Uma maneira de escrever que me fez prestar reparo em detalhes livres de travas ou amarras. Uma narrativa que alterou meu modo de ver, de ler, entender, viver e escrever histórias. O livro com duas taças na capa denuncia um crime violento, covarde, de um regime cruel e também corrige os rumos que damos ao corpo, à alma.

sábado, 1 de março de 2025

crônica da semana - uma boa pessoa

 Uma pessoa boa

Nas últimas semanas, convivi, na rotina, com uma piada instigadora. Dizia que o jeito era a gente mudar, melhorar a conduta, ganhar vaga no lado bom da força porque, se não aguenta 10, 15 dias de calor intenso; no inferno, mergulhado na fervura eterna é que não vai se dar. O jeito é lutar para ir pro céu.

Calha dar atenção à dica. Pelo certo, experimentei este treino. Foram alguns dias fora de casa passando por tudo em quanto de termos e jeitos de uma vida além dos nossos costumes e das baixas latitudes. Vivência diferente daquela de férias ou fugidinhas rápidas. Coisa mais comunitária. Enraizada. De ir à padaria todo dia, à feira nas quintas, reclamar da coleta de lixo, cuidar com a pavimentação deficitária e traiçoeira das ruas, levar um di cumê simples que seja para o morador da calçada que ao nascer do sol, desarma seu nicho montado um pouco adiante da escola tradicional do bairro. Um período vencido a cada instante e motivado por um destaque, para nós paraenses, sem segredos. O calor.

Não deveríamos estranhar. Mas estranhamos e sentimos os efeitos do calor, na tez, no ânimo. Por outro lado, deu no aprendizado. São efeitos diferentes gerados por eventos que não conhecemos. Nos batemos com fenômenos até então apenas títulos distantes e específicos como sistema adiabático ou bloqueio atmosférico e até mesmo cavados, ressurgência... Alarmes no telefone alertando sobre notações térmicas extremas. Todos, nomes táticos compondo técnicas para explicar um céu azul azul, sem nehuma nuvem por dias e dias. E um desconforto térmico de tirar paraense da morga.

Quando ouvimos, agora voltando para Belém, o piloto do avião anunciar que estava descendo dos dez mil pés e que iniciava manobras de pouso, olhei pela janela o pacote de nuvens densas que atravessaríamos até chegar ao solo. Detive o olhar, dimensionei, aferi, estendi a visão ao maior alcance. Localizei tonalidades diferentes de cinza. Sinais de chuva. Alertei minha companheira. Taí, para que não via uma nuvem carregada faz tempo, temos aí embaixo um cardápio variado. A turbulência ao atravessarmos aquela úmida camada nos avisava que estávamos em outras latitudes, regressando aos nossos comuns dias amazônicos. Sob o comando da zona de convergência intertropical, subordinados à dinâmica da evapotranspiração e ao traçado climático equatorial que não nos deixam faltar, de jeito e maneira, e em tempo nenhum, as nuvens no céu.

Contrastes, particularidades, intimidades de um planeta que precisa ser cuidado.

Hora de se pensar as contradições, as resultantes de impacto que as alterações climáticas apresentam. Principalmente. E, é necessário que se der ênfase, principalmente quanto à intensidade dos eventos (lembremos da fervura do inferno). Precisamos urgentemente, diante do quadro de não retorno, de reformularmos políticas públicas ambientais, sanitárias, estruturais, e muitas no campo da engenharia. Precisamos entender como reestruturar as cidades para a vida com temperaturas acima de 40 graus (ou alagamentos espetaculares ou vendavais). O exemplo disso foi um acidente registrado em Magé, no Rio de Janeiro, quando um trem descarrilou por causa da dilatação dos trilhos a partir de uma temperatura medida na estrutura de 71 graus Celsius. Já pensou? Temos que redimensionar materiais e técnicas. É uma corrida contra o tempo. A Europa, por exemplo, que vem sofrendo com ondas de calor fortíssimas nos últimos anos, já tem uma vanguarda de engenharia agindo. Novos conceitos urbanos de proteção e reação, devem ser implementados com urgência para amenizar sofrimentos. O calor mata.

As conseqüências das mudanças climáticas são gravíssimas e a gente sentindo assim de palmo em cima os efeitos de um bloqueio atmosférico, se enche de dor e apreensão.

Mas tem negacionista que diz poder pagar por tudo. Mesmo diante da fervura, queixa-se ter dinheiro pra superar as alterações do clima. Não precisa sair de casa, tem ar condicionado, não tem que pegar transporte público, submeter-se ao tórrido dos dias e dos trilhos. Acha que já agora, liminarmente, usufrui do refrigério do céu.

 

 

domingo, 23 de fevereiro de 2025

crônica da semana - sacode a poeira

 Levanta, sacode a poeira

Segundo minha netinha, caí de maduro.

Coisa que tenho mais zelo é evitar os tropeços da idade. Faço as minhas caminhadas, academia, tento fortalecer os músculos, a cabeça e o esqueleto. Tanto cuidado, tanto cuidado, enchinei foi com beira e desabei na calçada um dia desses sem poder nenhum de reação.

Nenhum machucado, a não ser um latejado na ponta do dedão do pé e uma vergoinha difusa. Caiu um velho de quatro pernas.

Final de tarde, saímos para espairecer e fugir do calor causticante que consome o humor e torra os miolos aqui em terras cariocas. Um passeio na praça com a netinha até a chegada da noite, que aqui, só acontece perto das 19 horas; a ilusão de um alívio na temperatura e voltamos para casa. No meio do caminho, aliás, em boa parte do caminho, o calçamento é deformado pela exposição ou elevação de raízes das árvores que resistem à margem da rua. Por isso, em muitos pontos a calçada se quebra e forma desníveis radicais. Num deles, patetei, desviei o olhar e só senti o pé dando de encontra com uma face saliente de pedra. Perdi o equilíbrio. E aí é que vem a parte da tensão e da graça da Santa Nazinha nossa paraense. Minha netinha vinha andando de mãos dadas com a gente, comigo e com a avó (o que faz parte da valência da Virgem de Nazaré, já que na maioria das vezes, por causa da travessia da rua, ela vem no meu colo). No entanto, mesmo a neta no chão, quando desequilibrei, senti que podia puxá-las ela e Edninha, junto. E seríamos dois, três tombos de uma vez. Na outra mão eu trazia uma sacola de supermercado com pequenas compras, mas com força suficiente para me lançar para frente. Foi o que se deu. A sacola fez o pêndulo e me tirou a possibilidade de reagir à queda. Mais que depressa quebrei a correntinha que nos unia, larguei a mão da neta e desabei para frente. Tudo aconteceu de uma forma bem cadenciada. Do jeito de uma cena em câmera lenta. Tenho consciência de todas as etapas da queda. Acho que por causa de uma sequência de movimentos que, particionados,  poderiam até evitar minha queda, mas por acasos desafortunados foram neutralizados. Assim, pude medir e analisar o tombo e, olha só, este domínio da cena me deu condição de definir o final daquele tropeção. Decidi por uma queda digna em rolamento lateral. Tentasse evitar, o resultado seria bem pior, com maior atrito, mais travas de corpo e tendência a deslizar e me ralar todo ou sofrer uma luxação, fratura. O que fiz foi largar o corpo, fazer o giro e me deixar levar. Uma queda espetacular, mas sem nada quebrado, sem sangue, arranhões ou raladuras. Juntou gente, passantes, populares vieram ajudar, tive aquela reação envergonhada sim, mas no frigir dos ovos considerava o fato positivo de estar tudo pelo certo. Retomamos o caminho, nos permitimos umas pilhérias já que estava tudo bem. A neta, ainda meio desconcertada saiu com essa de o vovô caiu de maduro e relaxamos. Sacudi a poeira seguimos caminho acreditando que vale a pena cuidar do corpo e, se caí, foi, em boa parte, culpa de uma configuração urbana que nos abandona, os vovôs, mas também as crianças, os adultos...

(Importa sacudir a poeira e seguir em frente. Eu fico abismado quando alguém ataca a Educação. E, nos tempos atuais tão sem tino, pipocam de todos os lados agressões. Quando não atentam contra métodos, insultam professores; quando não negam políticas ou diretrizes educacionais, solapam a carreira de educadores, encaminham reduções em planos salariais. Acontece nos quatro cantos deste país. Aconteceu no Estado da COP 30, na batida da campa do ano passado e foram ações que causaram sofrimento, frustrações e dor. O que aconteceu no Pará foi um caso claro de queda que resultou em muitos arranhões. Mas por outro lado, gerou resistência. Quem acredita que a educação muda vidas levantou, sacudiu a poeira e agora, segue em frente).

 

sábado, 15 de fevereiro de 2025

crônica da semana - imagens maravilhosas arpoador

 Imagens maravilhosas

Isso é que dá mudar o programa em cima da hora. Logo eu que sou chato pra essas coisas. Não me avio com saídas além dos trilhos. Me apraz o roteiro todo certinho calculado na introdução, desenvolvimento e conclusão, inclusive com a certificação de lanchinho para dar sustância, no entremeio da programação e transporte à hora para voltar pra casa. O que ocorreu é que mudamos o plano.

A idéia era fazer um traçado de visita aos museus do centro. Desconcentramos e quando demos fé, já era de tarde. Fiz a conta, deduzi os novesfora e concluí que não iria dar tempo. O objetivo era esticar o que desse e concluir o itinerário na Pequena África. Só que já chegaríamos lá ao cair da tarde, com tempo mínimo para conhecer. E lá não pode ser com pressa, muito da história de africanos escravizados está ali. No rumo do metrô, alteramos o passeio. Decidimos pelo tradicional, e de forma alguma descartável, pôr do sol na pedra do Arpoador. Uma boa, até porque ainda não havíamos acompanhado o cair da tarde nesta época do ano, de solão de rachar. A mim, especialmente interessou a possibilidade de registrar a distância de ocultação do sol com relação ao morro Dois Irmãos, agora pelo verão e caminhando o astro-rei para o Equinócio. Sou metido a apreciar e entender esses detalhes astronômicos, né.

Tudo pelo certo, chegamos ainda com o sol ardendo no cocuruto. No caminho para o Arpoador, resolvemos fugir dos raios UV e demos um tempo espairecendo pelo parque Garota de Ipanema, que fica ao pegado da pedra. Sentamos num banco para apreciar o movimento, nisso, demos com uma placa indicando a localização de um mirante, com desenho de mapa e texto estimulando a subida até lá: “você fará fotos maravilhosas”.

Titubeamos. A ladeira era bem inclinada. Pouca sombra no caminho. Mas ousamos explorar. Reforçamos a camada de protetor solar e rumamos pra riba. Um jovem casal que também estava na dúvida, quando nos viu partir, partiu atrás. Fizemos duas paradas para descansar e aproveitar uma nesguinha de sombra dos poucos ramos de árvores que se projetavam sobre a rampa. Passaram à frente e quando varamos no mirante eles já estavam lá expostos àquela luminosidade de encandear e torrando no sol. Aquele ambiente, pelo menos naquela hora do dia, não expressava o que dizia a placa. Até que tínhamos uma visão de parte da praia de Ipanema, mas para captar uma imagem boa exigia uma ciência que não tínhamos. A luz intensa empastelava pra valer e estourava nossas fotos. Foi quando identificamos uma trilha se estendendo sobre a mata remanescente, à ombreira do morro. Deduzimos que pra’quele lado talvez houvesse outro mirante ou coisa outra aprazível que justificasse o arrazoado da placa. Nos embrenhamos.

Éramos só nós dois, eu e minha companheira Edna, nos deslocando naquela picada. As pessoas já garantindo lugar lá embaixo na pedra para contemplar o pôr do sol e a gente inventando marmota de explorar, de buscar fotos maravilhosas.

Mais adiante, bateu o medo comedido. É que, no repente, identificávamos alguém naquele estirão solitário. Aqui, um casal de rapazes sempre à margem do caminho, com um olhar desviado; ali, uma turma desconfiada. Alguns quando nos viam, entravam mais do que depressa na mata. Eu tentava demonstrar calma à minha companheira, dado o contexto. A gente não é da barra, não conhece as manhas... lugar ermo, e quem aparece se esconde ou recolhe o olhar em silêncio. E com jeito de que não estavam ali atrás de fotos maravilhosas. Estranhamos. Eu sei que é errado a gente maldar. Não minto não. Teve momento que deu vontade de sair dali nas carreiras.

Quando avistamos a saída lá embaixo, pensei que, o que estivessem fazendo, fosse da parte do amor e do carinho, era melhor que continuassem, afinal não estávamos ali para julgar ninguém, somente para captar imagens maravilhosas.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

crônica da semana - torcida inflamada

 Torcida inflamada

É fato dado e repetido aqui, que futebol, gosto é mesmo de jogar. Mas faz mina de tempo que não entro em campo. A última vez foi um desafio pelo aniversário do meu filho. Os amigos de papai contra os amigos do Argelzinho. Salão. Quadra do Alegria. O destaque desse jogo folgazão foi a atuação extraordinária do meu compadre Edir Gaya fechando o gol do nosso time em defesas instagramáveis. Por outro lado, houve o incidente de uma cara branca que me derrubou logo nos primeiros minutos de jogo. Fiquei só suspirando e com alguma dificuldade. Na empolgação da hora, ninguém maldou gravidade naquela indisposição. Fui substituído por uma amiga do Argel que figurava no plantel do outro lado, em concessão que ensejou a nobre missão de completar os times. E o fute seguiu. Depois daquele passamento nunca mais me arrisquei um instante que seja, em partida de futebol, ainda mais porque na sequência dos fatos, me descobri cheio de bronca nas coronárias, alterações no ergométrico, um cansaço! Eu heim, optei por um zelo maior com o meu coração.

Do jeito que gosto de futebol, e com as chuteiras penduradas, fui me ajeitando nos atrativos do esporte e passei a prestigiar os jogos e bem mais pela TV. Sou do tipo acomodado. Prefiro a TV mesmo. Tem replay. Além disso tem o sofazinho, água gelada ou um cervejinha; banheiro, caso precise, sem fila e interação pouca com desconhecidos. Sou assim, só fico de boa nas partes, se eu tiver domínio do ambiente e das frequências. Me sinto mais à vontade, onde eu conheça a maioria dos frequentadores do lugar. Já pensou um jogo em estádio lotado, com 25, 30, 50 mil pessoas? Piro total. Incomoda também meu baixo rendimento na percepção das jogadas. Muito alarido, gente na minha frente, sou baixolinha. Perco muitos lances e no estádio não tem replay.

Até tentei. Há alguns anos minha filha me convenceu a ir com ela no jogo do Paysandu com o Vila Nova. Avaliei, ponderei. Time de fora. Deve ser tranquilo. Fomos recepcionados, logo na esquina do Chaco, com um cordão reforçado da PM, de metralhadora e tudo. Cheiro de spray de pimenta no ar. Bateu o desespero e na hora quis voltar pra casa. Decidimos por entrar no estádio. Não tive paz. Durante o jogo era barulho de bomba e gritaria lá fora. Eu só pensando como sairíamos dali. Imagina só alguém que, por questões já citadas, via pouca coisa do jogo, nesse dia, não vi foi nada. Estava psicologicamente anuviado.

Entendo a temperatura alta nas aglomerações em favor deste ou daquele time. A torcida tem o direito de incentivar, dar moral pro time. A torcida merece ser feliz. Ocorre que a massa inflamada, por vezes, sai da atmosfera da paz. O calor evapora comedimentos, respeitos, empatias. E criam-se cenários tantos e outros de animosidades. Mesmo quando o jogo é de torcida única.

Aconteceu agora por esses dias, mais na minha cabeça, que no fato real, mas de forma indicativa, ativadora de memória. Saí rapidola de cena, não acompanhei o desenrolar das coisas, mas me chegou notícia que teve polícia distribuindo borrachadas.

Uma pena porque estava preparando o espírito para, pela primeira vez e dentro daquele sentimento de valor histórico e tal, presenciar um jogo no Maracanã. Fiz um ensaio. Foi ao Maracanãzinho. Acompanhei meu filho no jogo de basquete entre Flamengo e Vasco. De manhã. Entrada permitida somente para a torcida do Flamengo. Tudo no jeito. Deixa que, no último quarto, por causa de uma arenga de jogo, a coisa desandou, a torcida do Flamengo se inflamou, jogou objetos, água na quadra. O tempo nublou. O Vasco abandonou o jogo. Já fiz o sinal pro meu menino pra aproveitar e saltarmos fora. Ele contemporizou. O custo foi um cidadão soprar atrás de mim que aquela confusão poderia atrair a torcida do Vasco para um tira-cisma lá fora (o que não aconteceu, óbvio). Levantei da arquibancada na hora. Bora pro sofazinho, é que é.

            

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

crônica da semana - noite em ipanema

 Noite em I(tu)panema

Juro que nunca mais vou reclamar do calor de Belém. Égua do calor que suportei quase não suportando aqui no Rio de janeiro nessa última semana. De correr doido igual ao de Belém? Sim. De dar pilora e malemolência? Sim. De fritar ovo no asfalto? Sim. Estas particularidades da quentura todas estamos é passados na casca do alho. Nós, os paraenses, tiramos de boa. Mas tem um quê. Um plus, o calor do Rio. Não sei explicar. Falo por mim. Fui envolvido em um desânimo, uma panemice. Durante todo o tempo de altas temperaturas hibernei. Não achei coragem pra nada. Só para um banho tático aqui e ali pra refrescar o corpo e mais nada. Inclusive durante a noite quando o calor mormacento  porfia com o dia de potências ígneas. Parei pra ti, olha, RJ, jamais pensei que fosse sentir saudade do calor de Belém. Só para ilustrar, acompanhei as medições de temperatura a cada instante por aqui. Nos instrumentos localizados na estação de Irajá, aqui perto, houve registro de temperatura cravado em 41 graus com sensação térmica de 46. E eu, mofino.

Só tornei agora, de domingo pra cá, quando, como diz o povo por aqui, ficou mais fresco.

Desde então, retornamos a um clima humanizado. E aí, se der uma folga, o RJ arrasa em várias frentes.

É a primeira vez que fico tanto tempo por aqui. Tenho outras passagens. O certo e cravado é que de férias, de boa na lagoa a vida por cá é uma coisa. Se o caso é de morar ou de alta permanência, a coisa muda. A gente sente mais a cidade, os dramas se realizam mais perto da gente. O cuidado com o controle de gastos é maior. Embora eu me envolva em tudo como morador, não tenho as manhas ainda. Não conto ainda com as dicas de feiras e supermercados mais em conta, pontos de cultura com ingressos franqueados ou abaixo do mercado. Até mesmo o transporte exige atenção. Há, com relação a Belém, uma oferta maior de mobilidade. No entanto se eu não for rapaz, em duas voltas de metrô meu orçamento de transporte do dia leva o farelo. E tem um calor único, específico, diferente do que conhecemos. Impiedoso.

Até fui à praia para aplacar os efeitos desse forno natural, do qual não se escapa. Mas sabe como é né, as minhas surpresas, os meus enfrentamentos não cessam. No pico das altas temperaturas, a areia da praia estava de queimar a sola do pé mais cascudo. Entretanto, a água do mar estava beirando os 16 graus. Quando fiz menção de pegar uma ondinha, ao contato mínimo com a água, fiquei estatuinha da silva. Em choque. Da cintura pra baixo meu corpo se aperreou num quase congelamento, além da cintura os miolos torrando. Pirei na maré. Até me acostumar com essa arrumação de quente/frio, custou. Não o tanto de ensejar um mergulho. Fiquei só no salpicadinho da água friínha lançada com as mãos sobre a cabeça. Arremedando um asseio nos dias plúmbeos de Belém.

É daquele jeito do Brasil. Tudo tem sua compensação. Agora pela passagem do aniversário de Tom Jobim, houve uma vasta programação na praia de Ipanema (que eu por um comichão onomástico, por uma insubordinação toponímica ou mesmo por uma afirmação de origem, de forma que me conforte a distância e me faça sentir em casa, me permito rebatizar de praia de I(tu)panema). No domingo, clima apascentado, varei lá, à noitinha. Lembrei a primeira vez que viemos aqui. Nossa família. De férias. Durante a viagem, não parei de cantarolar: “ a minha alma canta/vejo o Rio de janeiro...”. O Samba do Avião compôs o repertório da programação no domingo. Assistimos de longe, seu Jorge cantar, de vez em vez no pegamos molhando os pés no tapetinho de água trazido pelas ondas, dessa vez acomodada em agradável equilíbrio térmico. Ao fundo, a noite transparente, a franja iluminada do Vidigal, o perfil ondulado sempre visível, mesmo no contra-luz, do morro Dois Irmãos. A plástica perfeita. A sonoridade irresistível. A cidade maravilha. Do quente/frio.

sábado, 25 de janeiro de 2025

crõnica da semana - que forma é essa -vovozando

 Que forma é essa?

Já faz um tempo que nosso filho falou as primeiras palavras, 26, 27 anos, por aí assim. Com um intervalo de dois anos a seguir, foi minha filha a elaborar as pronúncias pioneiras e divertidas. Fazendo uma redução ao denominador comum, tiro que distam mais de vinte anos a minha convivência com essas iniciações expressivas das crianças. Daí que esqueci como é. Compreensivelmente, ante tantas outras descobertas, não guardei minhas reações, meus entusiasmos, meus deslumbres, meus encantamentos com aquela fase. Mesmo porque, registros de versões super autênticas de canções de roda que gravei numa K-7 em instantes únicos de minha filha ou os arranjos fonéticos de meu filho construídos quando chegou de uma visita ao Museu Emílio Goeldi relatando que viu o mamaco, a oncha, a tatauga, não atravessaram este tempinho de espera e foram consumidos pelas intempéries ou por uma arrumação menos romantizada das utilidades do lar. Acontece que agora, com a netinha, voltou tudo! Meus abismamentos e surpresas não têm nem tempo de um respiro. São encarreirados.

Um dia desses acompanhei a saída de minha neta para o primeiro dia de escola. Tinha dois anos e uma poeirinha além. E já naquele dia, desmontei todo quando, de mochilinha na costa, mão dada com a mãe, se adiantou pela porta e se despediu com um ‘tiau vovô’.

Eis que seis meses depois, visitando a netinha em seus domínios cariocas, quedei-me bestinha da silva, ao me ver diante de um caderno preenchido com várias figuras geométricas e ela, beirando completar 3 anos, na segurança e no comando dos conhecimentos, ávida me desafiando a acertar o nome dos desenhos. Que forma é essa vovô? E antes que eu me aviasse, na certeza irrefreável, emedava na resposta: quadrado!

Gente da minha alma, só fui dominar as formas geométricas clássicas poucos dias antes de me apresentar na Aparecida para as primeiras lições da Primeira Atrasada. E olha, perto dos sete anos! E foi um custo aprender o nome de uma ao menos. Como esta pequenina já sabe estas coisas? Triângulo. Aponta ela para outra figura e capricha na sonoridade: “Triângulo”. A capacidade de articular as palavras, dominar os sentidos, fazer conexões entre elas e lustrar de detalhes uma dicção que compense pendências sonoras da idade é outra face do desenvolvimento que me deixa pra lá de admirado.

Tudo bem que tem muito de vovozice nestes meus arrebatamentos. São evoluções comuns nesta idade que se manifestam em todas as crianças, e, é certo, bem lapidadas nas crianças de hoje em dia. Resultam da interação com os pais, família, escola, vivências diversas, atividades bioquímicas, cognitivas velozes. E se a memória me ajudasse... se eu ainda tivesse a fita K-7, também poderia identificar estes mesmos índices, contemporizados, no pai dela, na tia quando tinham a mesma idade. Penso que é o momento atual que me chama, que me aborda e me leva a estes doces deslumbres. Devo fazer uma atualização e tocar o barco de vovozinho, atento, consciente, e me divertindo pacas.

Essa é a meta. Morando distante, não temos todo o tempo pra ficar com a netinha. Agora, aproveitando o recesso de fim de ano, nos programamos. E é uma delícia! A cada dia uma descoberta, todo dia muito carinho. Tempo integral de afeto, muito dengo. Aprendizado mútuo e encantamentos.

Agradeço ao bom Deus pela oportunidade de participar desta fase da netinha. Momentos decisivos, de responsabilidade, donde não podemos falar ou fazer qualquer coisa perto dela. É um período de fácil apreensão, de reprodução do que percebem e de elaborações, eliminação de óbvios. Outro dia, quando acionado para recuperar uma bolsinha lilás caída atrás do sofá, perguntei pra que ela queria aquela bolsa. “para guardar coisas dentro, ora”.

É a fase que nos mostra que algumas dúvidas, muitos questionamentos que fazemos, não fazem o menor sentido.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

crônica da semana - zap da pedreira

 O zap da Pedreira

Justo, muito justo o cuidado com a regulação das redes sociais. Há, sem dúvida, uma despudorada legião de gente mal intencionada que se aproveita do largo alcance das informações para divulgar o ódio, o preconceito, a mentira. Tem gente especializada em promover o caos tão logo um fato por menor que seja ganhe algum relevo. Com a agilidade das ferramentas virtuais, é num trisca que a cabeça da gente fica atrapalhada de tanto que é atacada por versões das mais loucas viajando pelas redes. O cidadão comum se vê, em determinado momento, impotente para fazer um juízo sobre os casos que lhe cabem.

Vivemos um tempo em que o contato distante, não reconhecido, não palpável, sob o domínio das nuvens cibernéticas substituiu a aproximação de pele, de olhos, as conversas de pé de ouvido ou de calçada.

Em outras épocas lorota morria logo ali na rodinha que se formava na calçada do Paraíso. Nenhum indício ficava sem confirmação. Especulação era sempre checada. A pauta era vasta e pertinente. A reuniãozinha que minha patota realizava toda noite na calçada do Cine Paraíso era o nosso zap da Pedreira. Ali se sabia de tudo na maior retidão, sem arredar um isso da verdade, mesmo que doesse.

Morei um tempo em um trecho da Mauriti tido como núcleo forte da burguesia do bairro. Era um menino pobrezinho da América Latina entre os ricos da rua. Moravam ali naquele quarteirão os próprios donos do Paraíso, advogados renomados, o coronel Bahia, Zé Paulo, nosso eterno vereador... Permeando o alto clero, tínhamos pelo menos três gerações abaixo protagonizando o dia a dia da rua. Os grandes, representados pela rapaziada já avançando na juventude, alguns namorando ou trabalhando, outros freqüentando a universidade, mas numa horinha ou outra criando emoções nos jogos disputados de futebol contra adversários de outras ruas ou nas festas de época do Santa Cruz. Havia a petizada, energizada pela plena infância. Eram os pequenos que estudavam no Donatila, saiam pouco pra pista, se concentravam em brincadeiras pueris nas Vilas Mauriti e Vila Bezerra, entretanto, quando os grandes apostavam mais de cem petecas no triângulo, assistiam e presenciavam a tensão da disputa, mas atentos mesmo estavam era para a hora do alaússa, quando se metiam no meio da confusão, catavam quantas podiam do chão e formavam um pequeno capital de petecas para brincadeiras menos nervosas com os molequinhos do mesmo top.

Quem dominava o movimento da rua era a turma intermediária composta por um grupo que estudava no Justo, Escola Técnica, vivia de bola em vários campinhos da cidade, inclusive, nas áreas recém descobertas no entorno da Augusto Montenegro. A minha patota. Estávamos ali, saindo da adolescência. Não éramos os grandes, com desafios mais refinados e nem os molequinhos pequenos. Vivíamos a mudança do corpo, da voz e nos entusiasmávamos com o aumento da potência do chute em momentos necessários nas partidas de futebol dos sábados lá pelas granjas com campinho que se espalhavam no estirão depois do Mangueirão.

Nossa rotina compreendia, depois da escola ou do futebol, a reunião toda noite em frente ao Cinema Paraíso. O grupo se formava antes da primeira sessão. Todo mundo se aprontava. Vestia uma camisa de meia, um short de fio, passava um talco no pescoço, se juntava e se exibia na calçada. Ali vários temas eram tratados. Contávamos os casos passados na rua, avaliávamos a freqüência do Centro 3, revisávamos a programação de bola da semana e nos dávamos a tesourar. O costume era pegar um cristo da rua para dissecar a conduta e a personalidade. Sem ofensa ou preconceito. Era apenas a elaboração do perfil dos moradores da rua. Como acontece nos zaps da vida hoje.

Comentários e informações que, mesmo se doesse, deveriam ser pautadas na maior retidão, sem arredar um tico da verdade. Aqui, ali, a gente falava do filme da noite.

sábado, 11 de janeiro de 2025

crônica da semana - paruano

 Paruano

Na virada do ano de 2023 para 2024, não economizei no pedido de ano novo, pus o sarrafo lá em cima e pedi logo foi a paz mundial. Vale dizer que animado por alguma fé, iniciei a noite de 31 de dezembro de 2023, convicto de que o espectro de cizânia espalhado mundo afora, iria se extinguir.

Um sentimento íntimo me anunciava a paz, naquele início de noite, e ainda, da mesma maneira robusto e convicto, me dava a certeza de que dali a algumas horas seria o novo milionário da Mega-sena da virada.

(Sobre a mega-sena, não ganhei, mas a atmosfera que resulta sempre é como se tivesse ganho. Vale a pena justificar a fé cega: É que durante muito tempo, fiz o jogo da virada com um companheiro de trabalho. Ele juntava um grupo grande, fazia mina de combinações, compunha na outra ponta, um feixe de cartões com sequências aleatórias. Fazia e acontecia nas crenças e otimismos. Explicava os macetes com tanto entusiasmo que era impossível a gente, mesmo dias antes do sorteio, não se sentir um milionário. Um estado que perdurava até depois do resultado negativo. Todo mundo voltava ao trabalho no dia primeiro, com aquele ar de vencedor. Ninguém largava a mão de ninguém e já nos alinhávamos para a outra chance no dezembro outro próximo.

Este ano minha fezinha dispensou o fervor do amigo. Experimentei a sensibilidade felina. Distribuí os sessenta números num punhado de papeizinhos, bem embrulhadinhos, nos aninhamos, a família, num espaço tático da cama, posicionamos a gata no extremo. Chacoalhamos entre as mãos os embrulhinhos e lançamos ao ar, a uma distância da gata. Diante daquela presepada, ela se agitava, avançava em instintiva reação e numa zunhada selecionava um papelzinho daquele bolo. E assim, a cada lançamento, um a um, a gata sorteou os números que fizeram a nossa esperança no fim de ano. Por um capricho do destino, a gata não acertou nenhum número. Fizemos zero ponto em todas as apostas de registramos. O intento, entendo que foi, de toda sorte, extraordinário. Não nos dasanimou. Muito pelo contrário. Acho que foi um aviso. Foi como se as garras da gata sulcasse um solo rico e profundo no leito de nossas esperanças e semeasse sementes de santos pés de cá te espera. Vamos aguardar a virada do dezembro próximo para a forra).

Agora, mirando uma mira doce, que não cobra nem ofende, pro lado da paz mundial, o que se deu nesse paruano foi um revestrés federal. No ano de 2024 foi papoco de bomba pra tudo quando é lado, disputas de fronteiras, cismas entre patriotas de uma mesma pátria. Teve gente se explodindo em nome de rasas razões, inclusive aqui no Brasil. Em pesquisa rápida nos sites de notícia, há uma indicação que terminamos o ano com seis conflitos bélicos em andamento, de alto potencial, deflagrados no mundo. Fora-parte as arengas paroquianas.

Ainda não atualizei os dados sobre os conflitos, neste início de 2025, mas pelo sentimento, parece que não mudou muita coisa. Em que pese meus votos, esforços diplomáticos, pedidos do Papa e de tantas pessoas de bem, os drones ganham os céus supridos de poderosos e certeiros explosivos. Ao mesmo tempo, ainda que o cinema exponha os horrores de uma ditadura, o desmonte, pela violência, de inúmeras famílias brasileiras, há políticos e pessoas de bem que erguem a voz em favor de um regime que tortura e mata. Dá medo e inspira o pé mais atrás, o cenário. Somos ainda uma sociedade raivosa, birrenta e agora, em modalidades domésticas do mal, um bolo em família faz as vezes de uma bomba. Devasta, destrói.

Hoje, no paruano de 2025, vou ser mais modesto.Vou pedir mais pouquinho. A mim me basta paz interior, gente amiga perto, o carinho da família e se couber, as dezenas sorteadas, as mesmas obtidas à unhadas da gata. Pedidos que, pelo que se tem e pelo que se contam, parecem mais leves, isentos de frustrações, e mais fáceis de se realizar que a paz mundial.

sábado, 4 de janeiro de 2025

crônica da semana - papa chibé

 A alma papa chibé

Tenho pra mim que atualmente o traço mais forte da cultura paraense é notado pela arte da gastronomia. Esses dias de chuva, até inesperados durante todo o mês de dezembro, me prenderam em casa de confronte à TV e aproveitei para maratonar algumas séries que tratam a culinária amazônica de uma forma diversa e enriquecedora. Aprendi um pouco sobre a Vinagreira e o protagonismo que tem na origem do Arroz de Cuxá, estrela da criação maranhense; como também me esclareci quanto a dúvida eterna para notar a palmeira santa, aquela da qual tudo se aproveita nesta beira de rio que nos abriga (buriti ou miriti?). Estou conformado de que o nome, vai da gente.

Em Abaeté é famoso o mingau de Miriti, cedinho, na feira. Já no meu tempo de Escola Técnica, fazíamos uma recreação a base de muita viola e recitação de poemas, embaixo dos Buritizeiros que dominavam o entorno dos laboratórios de Edificações e Eletrotécnica, que não eram outros senão os ditos pés de Miriti.

E se há dúvida, vamos resolver outras paradas serenamente.

Como é o chibé de vocês? Somos tidos e havidos como consumidores de chibé. Penso, no entanto, que há uma variação na composição desta mistura. Vou logo adiantando que acreaninho que chega a terras outras, adapta e ajusta o di cumê conforme o gosto. Por mim, aprendi como sendo um composto de água, farinha, açúcar e consumido sozinho, no chupado da colher, sem nada acompanhando. Conheci outras combinações: aquela reduzida à farinha com água ou uma outra unindo as mesmas duas partes acrescidas de um acompanhamento salgado (carne, camarão, charque).

Tenho a impressão que o papar chibé, hoje em dia, não é mais um costume que delega. De certo, há tempos não rola aqui em casa e pela casa dos outros também não tenho notícia. Não vi nada sobre esta tradição nas séries que maratonei por esses dias plúmbeos. Fica a dica para os chefes de cozinha retomarem a tradição com um gurmezinho simpático, que seja. Que tar, esse menino?

E os nossos chefes (ou chefs), heim, vamos respeitar. Estão cortando e arando. Acompanho o trabalho de alguns e admiro a opção que fazem em estabelecer práticas culinárias elaboradas, aqui mesmo, em solo paraense. O que nos dá experimentar a nossa cozinha do dia a dia, de forma diferente, com aqueles toques de talento que eles são capazes de realizar. Daí, um tucumã, que a gente tá acostumado a riscar com os dentes e a pupunha quentinha da tarde, passam a incrementar molhos, caldinhos, purês e alteram nosso modo de ver e de comer de tal forma que a nossa estima aumenta, que o nosso entendimento sobre potencialidade e diversidade de sabores se eleva. Além de nos pegar pela boca, os criadores harmonizam os espaços e o atendimento. Temos restaurantes em Belém que capricham na decoração, recriam o ambiente ribeirinho ou os escondidos dos arrabaldes, o clima... Reinventam um salão de recepção aconchegante como que esperassem o cliente para roer um tucum. O objetivo é deixar a visita à vontade (até mesmo no embalo da rede), identificada com o local. Os proprietários incentivam o uso de uma linguagem rés o comum dos dias, fazem vídeos, divulgam receitas e, não raro, nos convidam ao final de cada apresentação: bora dá-lhe!

Em um dos episódios que vi esse mês, o chef Léo Modesto me encantou com o jeito que preparou uma poqueca. Manejava os ingredientes, envelopava o peixe nas folhas da bananeira com uma leveza, com uma sabedoria, com um respeito, de tal maneira que parecia se entregar a um transe, a um diálogo com os elementos que manuseava. Um discurso ancestral, um suspiro ligeiro de humanidade ante a condescendência divina da natureza. Manejos de tamanha devoção que inspirou um enredo ritualístico, uma celebração. O ato sagrado de cozinhar. Que me faz... pensar, orar, além de... ficar com água na boca. Vou já é ali, com alma e  com calma, ajeitar um chibé é que é.