sábado, 22 de novembro de 2025

crônica da semana - sandalhada à milanesa

 Sandalhada à milanesa

Conheci um camarada que, quando viajava, passava a pão doce e um tubo de Redoxon. Isso para mim diz muito sobre potência e resistência, e também sobre superações e fraquezas. O camarada sabia dosar graminha por graminha, a efervescência dos seus ímpetos. Alerta também que a gente não deve sair por aí querendo ser o que a folhinha do ano não marca.

Eu sou dessa linha. Procuro o equilíbrio.

Quando a gente se abala a conhecer outros lugares, já deve ir preparado. Admitir que não tem as manhas dali. Dar umas passadas adiante, marcar passo, avaliar e corrigir curso. Senão, acaba a grana e a gente fica na pira.

Uma das minhas viagens de maior sucesso em controle de gastos foi para Gramado. A cidade é tida e havida como um dos destinos mais caros no Brasil. Tem fama, tem atrativos; a novidade do frio e, com sorte, da neve.

Tem que se enturmar com as gentes da região. Do jeito que fazíamos nos anos 80, quando partíamos pra Algodoal ou paraísos ainda pouco conhecidos na região do salgado paraense só com um contado para as mais básicas precisões e para tudo quanto os outros tantos, somente o charme e a cara de pidão, atributos com os quais contávamos para conquistar a generosidade dos pescadores. Se não, nos conformávamos às dádivas da natureza em abrigos nos escaninhos das dunas e nos quentinhos das fogueiras na areia, alimentados a punhados de estrelas e brisas fresquinhas.

Já lá pras bandas de Gramado, a estratégia teve poucas alterações de caráter e definições. Nos primeiros dias, o jeito foi encarar a onda. O movimento na cidade se concentra em grande parte ali pelo centro, nos entornos da Rua Coberta e do Palácio dos Festivais. Por aquela região, se a gente tivesse que gravar um vídeo reclamando dos preços, não haveria gigabytes que suportasse em tamanho e foco. É tudo lá nas alturas. Da garrafinha de água ao fondue. Respeitando as correções monetárias, diria que nos primeiros dias, deixamos no caixa dos restaurantes algo perto de 60 Reais. Isso para uma refeição substanciosa por dia. Pela regra, só almoçávamos. À noite nos valíamos da graça do Senhor, da desculpa do frio e de um pãozinho torrado com café (coisa pouca além do redoxon). Ali pelo terceiro dia a bom bater perna, indagando aqui e ali, descobrimos um restaurante a quilo. Caiu pela metade nosso custo, deu até para acrescentar uma sopa no jantar. Do meio pro fim a gente já estava era dividindo uma marmita de 10 contos. Esticamos o passeio até Canela, que é cidade ao pegado, e lá encontramos outro restaurante bem mais em conta. Fazíamos o roteiro, na volta, montávamos uma bem sortida marmita e levávamos pra comer no hostel. Dava pra dois e ainda sobrava. Tô dizendo que tem que saber das manhas! (armoleca num sabe).

Mas não vamos longe. Aqui em Belém mesmo, fizemos um circuito cultural no domingo tudo no raso e espremido da grana. Só nos deslocamos de ônibus, de grátis. Embora demore uma eternidade, o fato da gente não pagar, nos permite baldeações. Então, pega-se o primeiro que passa. Quando calha de baldearmos, baldeamos. De água, nos servimos nos prédios e museus que visitamos ou nos bebedouros instalados pelas docas da Guajará. Na hora do almoço foi que o bagulho pegou. Os preços estavam por acolá. Mas mesmo se nos quedássemos a uma extravagância, quando que dava pra quem queria! Não encontramos um único lugar vago nos restaurantes. Fila em todos. O Veropa também estava que só passava a brisa mesmo e aquecida também de calor humano. Pegamos um ônibus e a bom baldear. Ao pegado do centro, encontramos um bar que servia refeição com preço fixo, guarnição à vontade. Minha companheira se adiantou nas escolhas. Quando voltou, veio equilibrando uma sandalhada de peixe à milanesa. Uma posta deste tamanho dominando a guarnição, e que passava da borda do prato. Logo que piranguei e nem fui ajeitar prato só pra mim. Deu pra nós dois. Eita domingo do liso. Só na manha.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

tributo

 

A sete palmos sob o chão

Repousa o corpo mutilado da natureza

A deusa morta

Vultos em desespero bailam a sua volta

E entoam cantos e rezas

O bêbado sonhador dorme sobre seu corpo estático

E voa até o silêncio dos campos verdejantes

Revivendo a história

Apega-se ao mar moleque

Voa com os pássaros em direção ao sol

Rasteja-se com os répteis milenares

Sacia-se da fome e da sede por dádivas da mãe

O vento revolve os seus trapos

Correndo por todo o corpo

É livre, forte e belo

Até emudecer diante dos predadores, das dores

Transborda de humilhação

Cambaleia ante os punhos armados e dorme

Para que mãos reluzentes o despertem

Sobre as cinzas do seu corpo mutilado de futuro

sábado, 15 de novembro de 2025

rônica da semana - floresta em pé

 Floresta em pé

Numa viagem de avião, em trecho curto que seja, ou mesmo de barco, carro, quando a gente se adianta nos interiores, além das ocupações urbanas, logo a gente dá com a floresta. É aquela imensidão verde. Uma incrível composição biodiversa que, saindo do perímetro geográfico amazônico, a gente não vê em parte mais nenhuma do Brasil. É a dita floresta em pé. Ativa. Evapotranspirando. Produzindo vida e harmonizando o planeta.

O que se admite e a causa que nos leva à luta, é manter árvore em pé. E quando a gente se depara com a situação inversa, com mina de árvores deitadas ao chão, desanimadas e secas, nossas motivações ganham além do caráter ambiental, uma alta dosagem de estimulantes emocionais...

(O quadro era uma menção ao horror. Uma parecência com algum tipo de inferno tormentoso e triste. Um ajuntamento caótico de troncos, raízes, galhos, testemunhos de frutos e flores, uns sobre os outros, imprensados num segmento do vale. Quando dei com aquele panorama, senti o coração apertado, o fôlego sufocado, as vistas entregues à umidade, ao lamento. Era uma área que havia sido desmatada para a atividade de exploração imediata.

Para mim, não era comum topar com estas cenas. Atuava muito na pesquisa, fazia a geologia pioneira, era linha de frente. Entre mim e as minas instaladas havia uma longa distância e enfileirados processos. Esta fase intermediária entre a pesquisa e a extração que exige preparação de área, supressão, infra-estrutura, montagem, experimentei dessa vez no aproveitamento de reserva no leito do igarapé, e uma outra, em terra firme.

São choques diferentes. Quando as interferências acontecem nas calhas dos cursos d’água, a gente sofre o impacto, sente o golpe de tantas árvores abatidas e empilhadas desordenadamente, mas ainda se localiza espacialmente, tem a referência alto/baixo do relevo marcando as drenagens. Se retirada a mata desfalecida do leito, na fase de limpeza, ainda assim a gente se encontra no mundo.

Agora quando na encosta, em terra firme, é mais impactante. Uma sensação de esvaziamento, uma visão delirante, desestabilizante, desnortente nos abate. Parece que a gente é um pontinho perdido no meio do nada. Foi o que aconteceu quando me vi atravessando as fases e cheguei até o processo de montagem de uma planta em Rondônia. Fiz a geologia de detalhe, medições, potenciais e viabilidade. Depois, calhou de me pegaram para as demarcações topográficas. Era ainda tudo na mata em pé. Todos os dias eu adentrava a área. Tinha meus controles, picadas mapeadas, direções e sentidos identificados, piquetes e marcos de apoio.  Eu me virava por ali indo e vindo, fazendo varações, escolhendo caminhos, a mata em pé dando as dicas. Sempre referenciado. Tudo marcadinho, entreguei para a turma da operação, mudei de área e passei para outras atividades. Com um tempo, voltei. Dei com o puro limpo. Nem os marcos resistiram à fúria dos tratores. Eu não reconhecia mais aquele lugar. Era só descampado e céu. Uma desoladora visão das ausências, dos débitos, das culpas. Eu me senti um pontinho desorientado).

Naquela época, quarenta e tantos anos atrás, penso que não havia os controles que hoje regulam a atividade de exploração. Pelo menos a nós na linha de frente não nos eram repassadas regras ou compromissos ambientais. Sei que as árvores retiradas não eram queimadas (Agora, em tempos recentes, descobri que havia uma turma que arranjava um jeito de lucrar com as árvores retiradas na limpeza, realizando contratos irregulares com madeireiras. Esta é a revelação que me pega em atraso, por operar à época, tocado por inocências e romantismo. Não maldava).

São duas experiências que pautam minhas reflexões até hoje. As árvores caídas empilhadas confusamente entre barrancos e o solo nu sem uma única cintilação de vida. Lembranças duras, mas que ao menos justificam agora, a defesa do incomparável valor que tem a floresta.

sábado, 8 de novembro de 2025

crônica da semana - árvores gigantes

 As árvores gigantes do Tumucumaque

Eu aqui fuçando na internet meu próximo destino de turista aventureiro, dei com as expedições realizadas na região do Tumucumaque. Apreciei. Procurei mais material.  Há uma equipe dedicada às pesquisas naquela área e periodicamente eles partem pra lá para atualização de dados. Muitas dessas campanhas são divulgadas na rede. Em mim, quando vejo essas missões cheias de desafios, me bate logo a liga. Rola uma identificação. Esta de monitoramento das árvores gigantes em especial porque, exceto na envergadura porruda por demais das árvores que é fator endêmico, em tudo me é íntima. Por aquelas situações todas, passei. Destaque para a transposição das corredeiras do rio Jari. Enfrentei os mesmos aperreios no Xingu. Havia um trecho do mesmo jeito encachoeirado que, de forma semelhante, vencíamos na rabeta, na perícia do barqueiro e no equilíbrio das traias sobre a cabeça em arrodeios convulsos e pedregosos.

São os ônus do ofício. É por isso que digo: pesquisador, explorador, buscador de conhecimento e razões de vida me inventam cada uma. Se jogam na missão. É categoria que se envolve alheia a temores. Nas minhas vivências no Xingu, experimentei cada parada. Naquele tempo, coisa de 40 anos atrás, a margem direita do Xingu era um ermo só e recheada de barreiras naturais, incluindo aí a incontável legião de carapanãs que, em ataques indefensáveis, literalmente nos empurravam aos limites do juízo.

Embora os obstáculos me fossem comuns e graves, nem do trisca superavam o que passavam as equipes de florestal e hidrologia. Eram abnegados, apaixonados pelo que faziam. As minhas campanhas eram de estágio adiantado, sondagem, mapeamento de detalhe, ensaios geotécnicos. Tinha sempre uma estrutura mínima de deslocamento e acomodação. Transporte de helicóptero, acampamento com cozinha e até retrete. Eles não. A hidrologia vivia enfurnada nos barcos subindo e descendo rios em um emaranhado hidrográfico interminável. Para os pequenos da florestal, era tudo no pé e o acampamento se concentrava nas costas. Rede para descansar e passar a noite, era atada no pé de pau. Com a turma do barco, só me encontrava em raras oportunidades, no escritório, em Altamira. Tinha uma admiração enorme pelo trabalho deles, e eles se apegaram a mim. Tanto que mereci uma cópia do trabalho final da equipe. Um mapa fantástico com o maior acervo de registro de rios do baixo Amazonas. Incrível. Numa escala de bom discernimento e com detalhes fundamentais nos arranjos e comunicação entre furos. Este mapa, tenho até hoje. Está rasgadinho, tem uns remendos com durex e uns encriquilhos. Entretanto, antes do Google maps, é a minha maior e mais segura fonte de pesquisa quando quero saber coisas das beiras longes e do estuário guajarino.

Já a turma de florestal aqui, ali topava comigo. De vez em quando, nas extensas caminhadas que faziam, varavam num acampamento que eu estava. Abrigavam-se por um dia ou horas e eu fazia questão de lhes proporcionar algum conforto. Mas eles eram empedernidos e inquietos. Logo levantavam acampamento e seguiam. Faziam um trabalho admirável. Boa parte do que se conhece das margens do Xingu, ao pegado e abaixo se deve a essa turma de profissionais da Engenharia Florestal. Traçavam malhas reduzidas de caminhamento, e para cada quadrícula aplicavam a metodologia de catalogação das árvores. Mediam diâmetro, altura, envergadura...Tinha a impressão que faziam essa verificação em cada talinho que encontravam no caminho, tal era o nível de amostragem. Inventariavam o potencial da região com esmero e precisão.

Em outros pontos da Amazônia semeiam excelência. Imagino a turma que dominou as alvoroçadas corredeiras do Jari, pôs as traias nas costas, dormiu ao sereno da madrugada. Penso na felicidade quando encontraram um Angelim Vermelho pródigo em encantos distribuídos nos seus 80 metros de altura. Acredito a emoção ser também gigante.

sábado, 1 de novembro de 2025

crônica da semana - a cozinha é minha

 Louça é coisa que rende

Corre à larga que eu era amamãezado. Que por ser o único homem na família, tinha uns descontos, contava com vantagens, no dia a dia, sobre minhas irmãs. Em tudo. É uma opinião que reconheço, mas que não representa toda a verdade. Ali pela infância, adolescência, mamãe nos tratava por igual. Tudo era dividido no justo das partes. Não cozinhávamos, mas o resto, de um tudo fazíamos. Toda a filharada tinha que estudar e apresentar notas boas. E se houvesse oportunidade de ganhar um dinheirinho para a ‘intera’, o time todo ganhava as ruas nas vendas.

Talvez, lá pelos caminhares dos anos 80, período que passava tempos longe de casa, sim. Por essa época era tratado como reizinho quando varava por aqui. Digo até que ficava sem jeito com tanto zelo, com mamãe andando atrás de mim pela casa querendo saber se eu queria um isso, se precisava de um aquilo, se me aprazia tal aquel’outro. Não dispensava mamãe, mas tentava uma esquiva, despistava, o que não a desestimulava das missões de agrado. Nem me cabia aquela atenção toda. Vivia no trecho. Bem dizer sozinho. Tinha a rotina e o costume da solidão e suas regras. É bem verdade que minhas precisões tinham sempre um agente nas respostas, sem que o meu esforço fosse necessário. Em todos os lugares que morei, havia o suporte das empresas que me contratavam. Então, eu não arcava com as obrigações de moradia, alimentação, lavagem de roupa, essas coisas que pautam a vida no comum dos dias. Resultava que, ao chegar em casa, realmente eu me via num descompasso, sem ritmo ou tino para fazer as coisas. Esperava o apoio das meninas, da mamãe, nos dias em que eu por aqui charlasse de férias ou por motivos outros. Naquela época se me desafiassem a fritar um ovo ou lavar uma meia, não dava conta não. Por essa ocasião, ganhei a fama de ser dado a paparicos.

Depois, com a minha família constituída, as crianças crescendo e estabelecido com trabalho em Barcarena, sem mais viajar, fui tomando termo. Na fase em que trabalhei de turno e tinha dias ou parte dos dias livres, cheguei a assumir algumas prendas e a ensaiar talentos (ainda que sob o salgadérrimo e calórico pecado do macarrãozinho com salsicha). Mas veio o tempo de translado para Belém, e do meio pro fim, não parava em casa. A minha vida era atravessar essa baía de manhãnzinha e só voltar à noite. Ganhei novamente distância dos desafios do lar. Perdi a dimensão de um piqueirão de louça pra lavar.

E como se lava louça né. É atividade-fim que não cessa numa casa. Foi-não-foi a pia tá cheia. Constatei a intensa dinâmica do lar, especialmente da cozinha, por agora, quando descalcei as botas. Sou, do ano passado pra cá, o mais presente em casa; e controlador absoluto do meu tempo. Ante minha disponibilidade assumi os afazeres do lar. Até uma hora da tarde, observo (sempre fui contra esse negócio de trabalhar debaixo do solão que faz além do meio-dia. É desumano. Minha tabela não compreende virar torresminho na véspera belemense). Faço de um tudo e numa ordem. Primeira parte da jornada é a limpeza da casa. Inspira-me a lembrança de quando eu trabalhava e a moça da limpeza fazia o roteiro do meu prédio. Procuro fazer do mesmo jeitinho, usando os mesmos equipamentos e produtos. No mesmo horário e todo santo dia.

Depois de descansar um pedacinho, parto para as artes na cozinha.

Daquele filho despreocupado ou do pai provedor sem tempo, quero agora distância. Abraço a causa e de forma tal que tenho lutado para ficar exclusivo nas criações culinárias. Tem ocasião, que antes de me lançar às panelas, vejo alguns vídeos de chefs e especialistas só para me certificar que vou garantir sucesso àquela receita cá com o meu pendor.

Quando acerto e rolam elogios aos meus pratinhos, fico é satisfeito. E animado a conquistar de vera o controle da cozinha mesmo que para isso tenha que, concessivamente, vencer a qualquer tempo (até depois de uma da tarde) o piqueirão de louça. Porque, coisa que rende é louça na pia.

 

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Sem nada

 Sem Nada

 

O brilho tenta ir embora

A luz, pouca luz

Estupra pupilas testemunhas

Com imagens de horror

 

Gritos lançam-se

Gestos lançam-se

Braços fortes-brasis lançam-se

Em desabalada

Desgraçada

Desencantada

Desesperada

Ânsia louca

 

O gatilho deflagra a bala

Que atravessa os corpos

Que dilacera os ossos

Que vara os olhos

Que pulveriza os dentes

Que mutila a alma

 

A bala é um barco navegando

Em rios de sangue

Derrubando castanheiras

Seringais

Chicos Mendes

Seringais, castanheiras

Por terra

Sem terra

Sem nada

 

A bala é um zunido sem dono

Nenhum grito na cidade

O brilho vai embora

As pupilas testemunhas

Fecham-se alagadas

Alguém passa e cospe nos corpos

Esquecidos de nome.

 

 

sábado, 25 de outubro de 2025

crônica da semana - despertador

 Despertador

Agora, vivendo os dias de um senhorzinho aposentado, me pego ainda na teima de acordar cedo. Não curto acordar cedo!

Justifico esta cisma de madrugador garimpando benefícios desta prática. Faço as minhas caminhadas. E, pelo início da manhã é mais friinho, os passarinhos animam a caminhada, o trânsito é rarefeito, dá pra coletar umas mangas que caíram nas ventarolas noturnas, antes da chegada dos catadores profissas; e ainda tem na conta a possibilidade de observar o deslocamento da sombra das árvores, dos postes, dos prédios, com o sol em baixa inclinação, avisando que a Terra é redonda.

Por essas e por outras, mantenho este desafio de acordar cedo. E eu odeio acordar cedo! Já pensei em outras alternativas, mas por enquanto dou vaga à teimosia.

É peleja que regrou meus costumes por longos anos e que criou em mim uma aversão, um entojo, uma ira nada santa, uma inimizade colossal com o despertador. E durante todos esses anos, alimentou em mim um desejo recorrente: espalhar todos os despertadores do mundo no chão e passar um rolo compressor sobre eles. Destruir, esbandalhar tudinho, até não sobrar uma molinha animada sequer. Esta era a minha ilusão de liberdade, de insurreição redentora, de desapego total das dores provocadas pelo desperta-dor. Mas quando que, liberto de bater ponto, me veria sem trégua neste tempo de agora, quando poderia esticar a soneca e não estico. Égua, chega me dá buscar um desatrapalho na mente.

Deixa estar que hoje, o custo nem é tanto. O meu cedo já bate a campa beirando as seis, bem além dos meus últimos anos na ativa quando o zinho tocava aquela música traumatizante no justo das quatro e meia da madrugada. E eu ainda operava no modo de choque. Provocava, deixava o celular tocar fora do meu alcance para forçar que eu me levantasse, me espertasse logo de prima e evitasse aquele velho e tentador ‘touche’ de desativar ainda em meio sono a campainha para dar mais aquele minutinho de morga. Eu é que não confiava. O bicho tocava, eu dava era um pulo e o dia já estava valendo. Do meio pro fim esta tática ficou meio ineficaz e mesmo no modo pavor, eu levantava, mas remancheava, corria pro sofá, reinava recostar a cabeça e apelava para a resistência. A um custo, mas mantendo a opinião, partia para passar um café quentinho. Fui levando na força e na coragem, até sentir que aquilo não dava mais para mim. Recorri a lenitivos. Adotei a regra do sono interrompido. Na luta, seguia. Tomava café, me arrumava, punha o uniforme, a bota, supria a mochila, ganhava o rumo do porto. A lancha para Barcarena saía às 6 e meia. Em toda a minha história nessa travessia, o tempo de viagem até o trabalho era dedicado à leitura. Deu-se que aos quarenta e cinco do segundo tempo, com o argumento do sono interrompido (não mais um despertar completo), abandonei a leitura matinal, e dei pra tirar um soninho de 45 a 50 minutos, na viagem. Para mim, significava continuar o barato daquela soneca boa das 4 e meia cortado pela gasguitagem do desperta-dor. O efeito colateral do cansaço foi que passei a ler menos. E aí, rapazinho, foi um prejó. Senti falta, magoei.

Passou. Dei baixa na carteira, entrei para o time dos aposentados e tenho o tempo, a vez, do jeito que bem entenda. Adeus despertador.

Quite! Logo nos primeiros dias, o que fiz foi dar um adianto porque 4 e meia não é um horário que indique alguma lucidez num cristão avesso a penitências (e também porque não me apraz acordar cedo). Calibrei para as seis horas que, embora não seja um horário que um aposentado se obrigue a acordar, não dói tanto; e lá s’estava eu levantando de novo ao som do desditoso despertador. De igual maneira. Modo pavor. Ô sina, que resignado aceito! Entretanto, vendo assim por outro lado, a contemplação da aurora me dá uma ocupação nesta minha fase de desocupado e não deixa morrer em mim o desejo de esmigalhar os aparelhos despertadores e seus traumatizantes cocoricós tudinho debaixo de um rolo compressor.

sábado, 18 de outubro de 2025

crônica da semana - quitanda bacana

 A quitanda bacana

Fez sucesso um personagem interpretado por Jô Soares que arremedava o ministro da Agricultura, ali pelos estertores da ditadura civil-militar instalada no Brasil. Teve seu quê de prosaica a parecência, pela formação do político nomeado. O ministro era o Delfim Neto, tido e havido até os últimos dos seus dias como economista influente. A graça na paródia consistia exatamente neste aspecto inusitado de um especialista de uma área exercer o comando das ações de governo em outra área. Corria à larga que, como Economista, Delfim dominava argumentos e defendia dogmas capitalistas regrando o destino do Brasil, mas de agricultura não entendia piriricas. Não raro, o programa apresentava esquetes com o arremedado ministro chamando abacaxi de abóbora, banana de maçã, confundindo alhos com bugalhos. Com a cara mais deslambida, descrevia campos cultiváveis da forma mais equivocada possível ou trocava josé por cazuza na previsão das safras.

Aconteceu com a gente, também por aquela época, não por conveniências políticas e sim pela mais urgente das necessidades.

É imperativo que eu lembre toda vez. A ditadura não aliviava o lombo do pobre. Não havia Bolsa Família, SUS, políticas inclusivas. O pobre tinha que se virar. E a gente corria atrás. Vivia da graça de Deus, das nossas lutas diárias. Minha mãe era incansável para pôr o di cumê dentro de casa. Se agarrava a todas as oportunidades. Foi numa dessas que entrou para o negócio de hortifrúti, sem dominar um tico os detalhes deste empreendimento.

Apesar de não ser a nossa praia, ousou. Alugou um ponto em área nobre da Marquês de Herval e montou uma quitanda. Viveu a rotina das compras de madrugada na Ceasa. Contava com nossa ajuda, os di menor. Fazíamos horário na venda. Todo mundo acumulava outra coisa para ganhar um tutu, então o revezamento era necessário. O que pegou mesmo era que não tínhamos as manhas. Tratávamos os produtos como os tratava o Delfim, com o total desconhecimento de causa. Não sabíamos avaliar a qualidade. Não entendíamos a montagem do lote de verduras e legumes para o cozidão, e também, falhávamos em colocar o preço no que ofertávamos. O que deu foi que duramos pouco naquele lugar privilegiado da avenida. Custos altos de aluguel e tal e coisa. Desalugamos.

Mamãe não desistiu do ramo. Dizia que dava. Nós é que não tínhamos acertado no prumo. Morávamos na última casa da Vila Mauriti, o que nos proporcionava uma frente com pequena área livre para explorar, além do nosso batente. Foi só recolher uns trocados, mamãe montou uma estrutura de madeira, um estrado como balcão, voltou a madrugar na Ceasa e retomou a quitanda nos fundos da vila...

Outro dia, visitei um condomínio classe média que tinha tipo uma mercearia montada em um espaço comum. Uma conveniência. Tem de um tudo, até hortifrúti. Não tem ninguém pra atender lá. O freguês entra, escolhe os produtos, vai à maquininha e faz o pagamento. Tudo no fio do bigode. Na confiança. Tem gente que se espanta quando vê o reto tipo de comportamento do cliente. Menos eu. Mamãe já havia inaugurado esta parceria com o freguês, lá atrás na vila Mauriti...

Como havíamos quebrado feio no empreendimento anterior, agora o esforço era turbinado. Dava a luz do dia e todo mundo saía para uma atividade que gerasse um dinheirinho. O ganho tinha que multiplicar para reparar as perdas. O efeito dessa lida era que não dava pra ficar ninguém tomando conta da quitanda. Mamãe ousada. Antes de sair, montava a barraca com o que tinha. Já com algum macete, expunha em destaque as frutas e verduras mais vistosas, penduradas ou em espaços elevados no estrado. No canto, uma caixinha com um dinheirinho pra troco. Os moradores da vila ou da rua mesmo iam lá, pegavam o que queriam, somavam a conta, iam à caixa, faziam a quita, pegavam o troco se fosse o caso e iam embora. Igual à quitanda bacana de hoje, instalada no condomínio classe média.

 

sábado, 11 de outubro de 2025

crônica da semana- Círio, minhas saudades

 O Círio, minhas saudades

De lembrar mesmo, por agora não lembro o que arrumei naqueles dias para responder com aquela reação de alívio. Para aquietar-me imerso no abrandamento, no conforto da alma, e da devoção. A Santa estava passando na Augusto Montenegro.

O que me volta assim, dos esmigalhos da memória é a aventura de viajar de Barcarena para Belém no mais afogueado dos dias que acontecem ao pegado da grande romaria.

E tinha também um peru.

Isso, um peru. Mimo atemporal, deslocadíssimo de data e de festa, ofertado à minha patota de operários pelo transnacional empresariado instalado no pólo industrial, como um agrado para acalmar os ânimos que andavam era acirrados naquela beirada de rio. Peru em princípio congelado, mas que não resistiu àquela jornada composta de esperas intermináveis por passagem para a travessia, disponibilidade de popopôs, oportunidade de embarcar no ritmo lotou/saiu. Uma lida exposta aos humores tórridos da ‘primavera amazônica’, ao aglomerado abafado das filas no porto, e depois, ao forno nosso de cada dia dentro do ônibus, desde o Veropa até o entorno do Mangueirão. Mais de dez horas nesse translado. Resultado: o bichinho descongelou de forma que ficou até sentido. Quando bati o pé na porta de casa, estava era esverdeando já.

Mancada minha. Pela grandiosidade do evento, tradição e pelos compromissos afetivos, eu deveria ter programado melhor a vinda para Belém, me ajeitado nos cuidados que o momento exigia. Já, já eu lembro o que houve para que me arriscasse tanto, a tempo de perder o peru e quase perder a passagem da Santa no rumo do trapiche de Icoaraci. O que se tira e guarda é que na manhã do sábado, desopilado dos aperreios eu estava rente como pão quente na beira da pista, cedo, antes do clarear do dia, só esperando a Santa passar. Com o espírito leve e muito emocionado.

Vivia um reencontro. Depois de mais de dez anos virando e mexendo pelos rincões amazônicos, envolvido em outubros solitários, estava de volta ao colo da minha cidade e da minha Santinha. Aquela espera ali na beira da calçada tinha um significado enorme, traduzia uma força inexplicável, mas auditável. Aqueles instantes reeditavam os experimentos até bem pouco tempo apartados, desgarrados de mim. Era uma mistura incrível de sensações e lembranças. Família, infância, maçã do amor, mamãe rezando com uma vela acesa no vago da pernamanca que marcava a parede da cozinha, arraial, carrossel, maniçoba, roque-roque, a saudação ao fim do expediente de sexta-feira, “Feliz Círio”; promessas assumidas a cada nó na fitinha... Todas essas dádivas, ações e cenários que quando a gente está longe, fazem falta que só...

É fato, caminho que trilhei, triscas na consciência... a dita e indefensável saudade. Que vinha responder na minha pele de seringueiro, na minha voz pedreirense, nos meus modos de menino que vivia no mundo e que, aos anúncios de outubro ficava num pé e n’outro, inundado de ausências. Sentia falta de tudo o quanto de realiza no coração nazareno de Belém. Por mais de dez anos, quando deu, acompanhei o Círio apenas pelos flashes da TV.

Ah, bem a calhar, lembrei. Não consegui chegar com a tranquilidade que eu queria. Me dei a aperreios exatamente porque tive que ficar em Barcarena até a batida da campa. Houve de o destino me reservar lugar no front, como dirigente sindical, para o Acordo Coletivo. E estava era remosa a negociação. Tivemos reuniões tensas até as vésperas do Círio. O galo estava duro de cozinhar. Sem consenso. Como estratégia os transnacionais nos ofertaram o peru. Suspendemos as reuniões, indignados. Teríamos desde a sexta, uma distensão. Necessária. Apesar dos solavancos, cheguei a tempo.

Esperava a Santa, alinhado com os traçados que me possibilitaram um Círio em Belém depois de um tempão fora. Espírito abrandado, encontrei a Santinha ali na Augusto Montenegro. Depois daquele dia, não mais faltei a nenhum encontro com Ela.

 

 

 

 

 

sábado, 4 de outubro de 2025

crônica da semana - Quem vê cara...

 Quem vê cara...

Dia desses me permiti uma extravagância e fui atrás de um meio quilinho de carne de primeira para o almoço. Não sou íntimo de cortes mais aqueles de qualidade, sou do tempo da pá só com o osso da peça. Ainda bem que o comércio é criativo...

(O coração, lá dentro da gente, bem guardadinho no peito, abriga o que temos de naturalmente bom. Ou de ruim. Para mirar o prumo e o caráter dos nossos escondidos, há de se revelar exteriormente o que verdadeiramente somos. Mas quando que a gente faz isso! Não revela. Caprichamos em caras e bocas, preferimos dissimulações, despistes. Na vera, de palmo em cima, a gente demanda um custo, para se mostrar. Isso, quando se mostra. Fica a máxima: quem vê cara, não vê coração. Arrisco dizer que esta afirmação vale pra tudo. A face exposta de um restaurante, por exemplo, é um salão amplo, limpo, decorado. O coração do restaurante é a cozinha. Não somos dados a visitar o ambiente onde os alimentos são manipulados. Dá-se o mesmo com supermercados, lojas de departamento, agências de serviços e outros estabelecimentos. E também não tem nem por onde, né, a gente ficar abelhudando. Agimos na fé, na confiança. Até que se evidenciem dados em contrário, acreditamos na credibilidade dos atendimentos. E o que os operadores de comércio e serviço se esmeram em nos mostrar, abona este entendimento. Tem estabelecimento que a gente frequenta que parece estar empoado na mais agradável fragância, lavado e enxaguado na regra máxima do zelo e da assepsia. Mas aí, quem entra pra avacalhar tudo? Nós e nossa educação pirenta).

... Ocorreu que varei num balcão operado no modelo de auto-atendimento, no espaço do açougue. Bem ajeitadinho. Um freezer composto por três baias dispostas lado a lado. Em cada uma, um tipo de carne cortada do jeito de bife. Um abrigo em suporte refrigerado com portas de correr e boa vedação. Na parte externa, uma caixinha contendo luvas plásticas para serem usadas pelo cliente na hora da escolha do bife de sua preferência. Estava no jeito pra mim, pouco entendedor. Olhei na placa de identificação e localizei a baia que me interessava. Nisso, virei o olhar para outra precisão doméstica e me desliguei daquele balcão. Quando voltei, o cliente sujismundinho já estava lá fazendo as nojeiras dele e avacalhando com tudo.

O cidadão abriu toda a porta do freezer, expôs as baias, postou-se quase que inteiramente sobre aquele espaço. Sem luvas e sem pudor algum se danou a manipular o grupo de carnes da baia lateral. Destacava um pedaço, esfregava com as duas mãos, espreitava detalhes e após a sondagem tátil-visual, descartava. Pegava outra fatia, descartava. Nós que nos aproximávamos, olhávamos aquilo, atônitos. Já se alongava nas análises e não havia escolhido para si, um único naco. Só se adiantava naquela porquice. E mais, após descartar os bocados, os lançava na baia do meio. Fazia uma mistura de qualidades diferentes e reproduzia a porcariada que fazia nas outras carnes.

Pra gente ver né, quem visse aquele senhor de semblante sereno e cara de vovozinho brincalhão na rua ou em outro lugar, não maldaria que seria uma pessoa sem a mínima contenção social, sem o menor senso de responsabilidade com a higiene, ou com as mais básicas das condutas sanitárias. Quem vê cara...

O coração dele se revelou em uma sujidade tirana. Incitava náusea. Quem estava na vez, desistiu. Alguns fregueses relataram o ocorrido ao gerente e pediram a retirada do produto do balcão.

Não sei se retiraram, não sei se revisaram aquele modo de ofertar o produto. Não tenho reincidido em extravagâncias. Tenho declinado heroicamente de desejos que envolvam carnes de primeira, pá só com o osso da peça, que seja, ofertadas em pontos de auto-atendimento. Quantos passam por ali e fazem a mesma coisa sem nosso testemunho... Revelam o corrompido coração.

 

sábado, 27 de setembro de 2025

crônica da semana - escrito nas estrelas

 Escrito nas estrelas

Aqui, ali, vejo uma notícia contando que um corpo celeste se desloca em velocidade jamais detectada antes, pelo espaço próximo, em direção a Terra. Já vi publicação que projeta a trajetória dar certinho aqui pelos arredores do Brasil. Consta também que um especialista até se arvorou interpretar o objeto como sendo uma nave alienígena. Aí, parei-te! Fiquei na cisma. Extraterrestres se assanhando nas redondezas? Me deu foi medo. Será que chegou o momento do contato imediato, há séculos esperado?

Quando foi detectado pelos potentes telescópios, o viajante estelar chamou a atenção por vários detalhes incomuns aos objetos registrados até hoje. O rumo que o bicho desenvolve, por exemplo, aponta que ele vem de longe pacas, além dos limites do sistema solar e faz um caminho diferente de outros corpos errantes como os cometas. Faz um percurso externo, ou seja, diferente dos cometas, não forma um estirão harmonizado com os destinos espaciais subordinados à vizinhança do sol, ao contrário, se estende em rota aberta, dita hiperbólica que, se relacionada à escala, pode ser entendida como um destino certo: a Terra. Meu Deus! O que acontecerá nos próximos episódios?

Quando essas especulações ganham força, me vem à cabeça, a finalidade dessas visitas siderais. Por que vêm se abalar até aqui? O que querem? Penso logo que têm motivação nas pirâmides e outras maravilhas. Há quem acredite que é coisa deles, dos seres espaciais, as grandes criações da humanidade, que o homem não tinha condições de operar aquelas obras manejando pedras enormes, criando desenhos arrojados; que a mente humana nem sabia fazer conta de seno pra dar o prumo e o piso direitinho das grandes edificações, naqueles tempos. Pode ser, pode ser. E agora o calendário solar de Machu Picchu, os Moares do Pacífico, as linhas de Nazca? Caso aportem mesmo nas cercanias do Brasil, viriam reivindicar créditos de concepção, propriedade e também de usufruto das belezas e das artes do Rio de Janeiro, dos infindáveis, belos e bravios mares de nossa terra natal? Do nosso Carimbó? Só sei que, se vierem cobrar a conta de tantas franquias, que segundo opiniões sem provas, assumimos deles, estaremos fragilizados, expostos a impraticáveis tarifaços cósmicos. Vamos nos ter e haver com o novo e o velho, é que é, sugados pelo espírito usurário e alinhavados pela dominadora tessitura imperialista. Sob pena de sanções, suspensão de vistos para viagens galácticas e bombas no qual pega no lombo da gente.

Se não tiver jeito de desviar a rota e nos deixarem pra trás, bora fazer figa pra serem do bem, pra chegarem aqui na boa, com a seletora travada no modo paz e amor, e com aquela intenção universal de ajudar, ajustar o que está em desacordo, pacificar as incontornáveis arengas, e, quem sabe levar ao além das quatro linhas etéreas, para uma temporada de joelhos no milho celeste, as gentes de comportamento mau, os disseminadores de guerras e cizânias, aquela parcela da espécie que é domada pelo ódio e que aprecia a franca mentirinha.

É de se considerar que esta história do objeto ser uma espaçonave vinda do horizonte do sistema está pautada numa regrinha de probabilidade que precisa ser provada a partir de uma pá de evidências. Tem tudo pra não ser, e me parece que o próprio cientista que sugeriu esta hipótese abandonou a idéia. Ainda bem. Já estava num pé e n’outro.

O que já está definido é que se trata de um cometa, por nome 3I/Atlas. Diferentão, sim. Um pretenso bólido gelado que, de certo, vai cruzar o sistema solar cheio de estilo, dar um trisca na órbita de Marte e nem vai nos dar o ar da graça. Só poderá ser visto pelas lentes de poderosos telescópios. Tem sua importância porque, como vem dos escondidos do universo, através de análises detalhadas de seu comportamento físico e químico, pode nos revelar muito do que está escrito nas estrelas.

 

sábado, 20 de setembro de 2025

crônica da semana - presente padrão - mineração

 Presente Padrão

Pra gente ver né, como tudo concorre. Juro que nem maldei, não liguei lé com cré ou fé com pé. Foi coincidência. O fato se deu exatamente no período em que o curso de Mineração da Escola Técnica comemora 50 anos de criação, (perdão, hoje é IFPA, mas não desatarracho da notação que fez a minha vida mudar de rumo: ETFPA)

Calhou que antes de sair para um happy hour no sábado passado, lembrei que minha anfitriã tinha mudado de idade dia desses e mais que depressa me aviei no presente. Mimo no padrão. Com a minha marca. É batata. Ou dou um livro, ou uma pedra. Catei lá nas minhas preciosidades um fragmento de rocha (que é o nome apropriado para designar a peça, e não pedra) dos mais simbólicos que tenho no meu acervo (minha amiga Paty merece e muito uma prenda plena de significados). Abriguei numa embalagem de presente e, sob protestos da família (aqui em casa ninguém acha que uma pessoa vai se engraçar por ganhar uma pedra, ou um fragmento de rocha, que seja), mantive a opinião. Deu foi bom. Na hora que entreguei a lembrancinha, fiz um arrazoado técnico, histórico e sentimental. Minha amiga se disse encantada, ainda mais quando mostrei que se lançada a luz da lanterna sobre o grãozinho, tudo nele brilha com aquela idiossincrasia doce do açúcar.

Depois, contextualizando, vi que poderia argumentar o presente como fazendo parte do clima pela criação do meu curso. Afinal, foi lá que aprendi a dar valor aos elementos minerais e, nos adiantes da vida tento partilhar, nos limites, esta admiração por esses componentes naturais tão surpreendentes e reincidentemente belos.

Sou da turma de 1979. Só aí são 46 anos do curso. A minha turma foi uma das primeiras a se formar. Sei disso porque, por ser uma novidade na oferta de cursos à época, este detalhe pesou para a minha escolha.

Fiz opção pela Escola Técnica muito pelas dicas de nossa vizinha de parede-meia na Vila Mauriti. Tinha dois filhos estudando lá. E eles traziam as novidades. Falavam de um curso novo bem aceito pelas empresas da região. Todos os alunos que conheciam de Mineração já tinham estágio ou emprego garantido. A possibilidade de trabalho logo de prima era um atraente imbatível. Nem dei muita trela pros requisitos quando fui fazer a inscrição no curso (que diziam que o candidato, além de ser bom na matemática e ciências afins, deveria ter disponibilidade para viajar, viver em áreas inóspitas, ter boa resistência física, adaptação a trabalhos noturnos; estar sujeito a doenças endêmicas, administrar equipes no campo, além de outros desafios). Foram 7 semestres de uma vivência substanciosa.

Na minha vez, o curso já tinha seus 4 anos de funcionamento. Havia uma estrutura, um quadro de professores aplicados, e um esforço para que o recurso satisfizesse as necessidades de aprendizado. Não era fácil. Necessitávamos de equipamentos, instrumentos, viagens de campo. Percorremos o caminho até a formatura travando lutas contínuas por melhorias. No entanto, do que tínhamos, aproveitamos bem. Quando entrei pela primeira vez no nosso laboratório, fiquei maravilhado. (Por aqueles dias ainda se podia chamar de pedra). Tanta pedra bonita! Cristais, rochas de tudo quanto é jeito, um elenco notável de fósseis. Os microscópios que aumentavam a beleza dos testemunhos, as fórmulas e as reações químicas dos minerais, o uso do ácido, das lupas, da unha... nossos desenhos, a maneira como pensávamos a Terra e seus segredos... Era tudo novidade e sedução. Houve um tempo, já trabalhando na área que, toda vez que vinha a Belém, passava pela Escola e deixava uma amostra para o acervo do laboratório. Até um topázio imperial lindão eu doei pra Escola. Talvez seja essa a natureza deste meu baque de sempre dar de presente um mineral, uma rocha de traços autênticos. Talvez seja para ratificar a importância que o curso de Mineração teve pra mim. Pôs até hoje, o di cumê na minha mesa.



sábado, 13 de setembro de 2025

crônica da semana - falando sozinho

 Falando sozinho

Há situações que nos pegam sem jeito. Nos atravessam no repente e nos impõem reações inesperadas.

Como aquela na saída do aeroporto de Belém quando tentei ajudar um camarada de tudo quanto é jeito, atrapalhado. Estava voltando pra casa depois de me despedir de um amigo. No caminho para o ponto de ônibus, o pequeno até aqui de malas passou por mim e pediu que eu o ajudasse. Mas não parou, continuou caminhando apressadamente. Aí veio a minha reação meio sem razão. Saí atrás dele tentando de toda forma dar um auxílio, que se reduziu à operação inócua de andar com a mesma pressa que ele. Até tentei dar um apoio, amparando com as duas mãos, a valise que ele lançara sobre as costas, mas ele ia tão rápido que me delegava apenas a menção, minhas mãos como se rogasse por algo, vagaram abandonadas ao vazio. Até que desisti. Ele, feito uma mula comboieira ladeada de caçuás, se adiantou ligeiro. Eu fiquei pra trás tentando entender aquela situação. Passou, inclusive, da parada do Perpétuo Socorro e sumiu ali pras bandas da rodovia Snap. Não teve resultado aquele arremedo de comunicação. Um pedido de ajuda, vindo de um estranho, muito estranho, que não era dado a ajudas.

Por agora, me vi em outro desafio para administrar minha atenção. Com resultado mais aquele, na comunicação. Trancei, por um tempo, uma prosa elaborada, profunda, rica em informações, com um cidadão. De costas.

Estava na caminhada matinal numa rua da Tijuca, no Rio, que tem uma pedra enorme no meio do caminho. A gente aqui de Belém, ou mesmo dessa região de planície não está acostumado com essas expressões de relevo, daí que faço questão de passar por ali e admirar aquele bloco rijo, pomposo, se elevando no meio do nosso trajeto.

Eis que ouço alguém atrás de mim, em brados fartos, coordenados e insistentes. Como só eu caminhava na calçada, estava era se dirigindo a mim. Caramba, exclamei apreensivo, maldando ser um desses destrambelhados que pelo comum encontramos na rua pedindo golpe, intervenção militar, procurando papo de anistia para conjuradores. Virei o olhar para avaliar a companhia, as menções e intenções. Tinha mesmo o baque do cidadão de bem do zap. Bochechas coradas, salpicadas de barba cerimoniosamente doirada, passadas marciais, traje do tipo despojado-caro. Rapidola volvi ao caminho e mantive uma distância de segurança entre nós. Tinha uma voz potente e que me revelou umas frases organizadas e compreensíveis. E ora, ora. Tá vendo como a gente não pode maldar. Não tinha dolo. Só queria partilhar a mesma admiração pela rocha que se expunha ali na avenida. E, me localizando no adiantado, alterava o tom para me informar que aquela pedra tinha mais de sessenta milhões de anos. Quando captei a mensagem, interagi. Mesmo seguindo meu caminho, virei o rosto e de través, admiti que poderia ser bem mais, a Geologia da região datava para mais distante no tempo mesmo. Emendou pedindo que eu prestasse atenção lá ao longe, ao corcovado e acrescentou ter lido em algum lugar que a pedra do Cristo tem mais de 500 milhões de anos. A seguir, filosofou. “E a gente acha que viveu muito. O homem se considera o dono da Terra. Não é nada diante das maravilhas eternas da natureza”. Taí, aquele senhorzinho com jeito de militar aposentado estava me saindo melhor que a encomenda. Ainda de costas, dei linha reforçando que em termos de ocupação da Terra, o homem perde feio para a samambaia. Lembrei Carl Sagan quando afirma que pela idade da Terra, se comparada a um ano, o homem moderno só apareceria nos últimos minutos do dia 31 de dezembro. Animei com a companhia da caminhada e ainda de costas, para ilustrar a vastidão do tempo, iniciei aquela lenda do passarinho que a cada mil anos vinha afiar o bico numa rocha. Mas antes que eu concluísse a história com a abstração da eternidade, olhei para trás e o homem não estava mais. Foi aí que me peguei falando sozinho.

sábado, 6 de setembro de 2025

crônica da semana

Olhos graúdos

Aquela manhã cedo, bem cedinho mesmo, em frente à DRT da Gaspar Viana, me volta à memória sem que eu tenha que despender muito esforço. Porque, pelo certo, foi de grande impacto. Mamãe me botou da rede ainda no escuro das cinco e poucos. O custo foi nos aviarmos na higiene matinal e corrermos para parada pra pegar o primeiro ônibus. Tínhamos que nos adiantar, as senhas na DRT eram poucas. Eu ia tirar minha primeira carteira profissional, a mesma que levei no ano passado para dar uma baixa simbólica, quando me aposentei, depois de contados 49 anos além do dia em que madrugamos naquela fila.

Não pegamos a senha. Esses serviços, a gente sabe. Por mais que a gente chegue cedo, tem gente que chega mais cedo e quando dá a nossa vez, não tem mais vaga e a gente sobra.

Não podia ficar sem aquela carteira. Era da parte do urgente. Uma oportunidade no supermercado estava me esperando. Tudo certo. Eu até já faturava uma grana de gorjeta, nos finais de semana, trabalhando como encostado, de empacotador, ou como se usava dizer naquele tempo, boy, na loja de confronte ao Baenão. Mamãe não desistiu. Esses serviços, a gente nunca pode dar como perdidos. Sempre tem um jeitinho. Tem sempre um despachante que desenrola o enrolado. Logo apareceu um oferecendo os préstimos, dizendo que a partir de uma módica contribuição, colocaria a gente pra dentro na certa. Mamãe parece que estava adivinhando, levou um dinheirinho pro café e um extra para as precisões. Calhou. O homem pegou o agrado, meus documentos e sumiu lá pra dentro. Demorou. Apesar do cafezinho com pão e manteiga com o tempero de calçada movimentada da Primeiro de Março, quando ele apareceu de novo, já na batida da campa da DRT, eu já estava azul de fome. Pediu que a gente fosse atrás dele. Entramos no prédio com a chancela daquele esperto domador das barreiras burocráticas. Fui direto para a foto. Estava com uma camisa de botão, de gola rija, de tecido barato com estampas discretas. A foto foi em preto e branco. Ajustaram a placa no meu peito com a data da emissão da carteira e dispararam o flash. Não sei se pela urgência de querer ser um rapazinho, sendo uma criança ainda, ou se, ansioso para pegar meu documento para trabalhar logo como contratado, sai foi mais zoiúdo que o graúdo traço genético dos sodreres na foto. Ou era mesmo a fome, pelo adiantado do meio-dia esbugalhando meu olhar.

Tinha 12 anos. Regime militar, sem bolsa nenhuma, sem programas sociais de auxílio aos pobres, sem futuro. Tinha mesmo que lutar pela vida. Dias depois, no ano da graça de 1975, assinava pela primeira vez minha carteira de trabalho.

Agora, pelo início de setembro, completei um ano de aposentado. Pensei que não, mas rola um filme na cabeça. Vem a cena desse começo meio atropelado na fila da DRT em 1975, o jeitinho que o interessado despachante deu para me pôr para dentro do mercado de trabalho e minas outras lembranças. Pipocam aqui, ali no cocuruto fatos, eventos, umas saudades. Ferinas frustrações ressurgem. O arrependimento por não ter cuidado da saúde o tanto que ela merece esses anos todos faz menção de me atormentar, mas dou o desdobro e tento recuperar o tempo perdido. É aquilo, em nome do trabalho a gente larga de mão valores outros como cuidar do corpo, da mente, da família, dos amigos. Vai deixando pra depois. Hoje vivo, com ônus, o depois.

Avalio a decisão de parar como positiva. Na conta, deu tudo pelo certo. Também, né, manos e manas, trampando 49 anos direto, tenho a merecendência do ócio e de fazer da minha cabeça um glacial ambiente de paz, a dita cabeça de gelo.

Fosse tirar uma foto hoje arremedando ser um rapazinho, procuraria uma camisa de botão séria, com golas engomadas. No retrato, por certo, meus olhos brilhariam mais serenos, amiudados e calmos. Descansados. Sem o azul da fome ou a ‘ânsia da vida por si mesma’, urgente e perturbadora, me pinicando a mente.

sábado, 30 de agosto de 2025

crônica da semana - surpresa

 Surpresa

Se eu abrir meu coração no claro e justo, não escapa a minha recatada frustração com o ser humano. De besta que sou. De me achar metidão, exigente, a ponto de formar um padrão de personalidade e correr atrás de perfeições, ainda que ao custo alto da solidão. Mesmo admitindo que não sou o suprassumo da retidão, que não tenho um isso que o periquito roa de santidade e muito pelo contrário. O certo é que ante tantos descaminhos, ainda mais hoje com a indústria do ódio e da desinformação em alta, igual a muita gente, minha luta é diária pelo lado probo da vida.

Ninguém é perfeito. Eu é que fico tareando no espaço as beldades de caráter, quando deveria sim, me conformar e garimpar aqui e ali, boas almas que se salvam, cravadas de defeitos, mas limpinhas, ajeitadinhas, sem dolo ou marcas de maldade. Pessoas legais, que resistem às contaminações diárias, às rasteiras do mundo vil. Se eu me livrar de preciosismos, dos jeitos e modos de ser ideais, vou perceber que do nada, na vulgaridade das horas, emerge do mar agitado desta sociedade impregnada de egoísmo e ganâncias, pessoinhas da mais alta qualidade. Na diversidade dos termos e medidas, e que se assentam em todos os calibres. Do prestativo, ao desapegado. Olha que surpresa agradável aconteceu quando meu amigo deixou o celular dele dentro do táxi. Com o detalhe das reações. Dele e do motorista que encontrou o celular:

No começo, tem a chamada para um carro de aplicativo. Estávamos em folgada tarde a celebrar anos e anos de amizade. A corrida era pra experimentar a porção famosa de bolinhos de bacalhau produzida por um bar que ele conhecia. Ao ter a corrida cancelada e percebendo um táxi nas proximidades, no repente, deu sinal. Entramos no táxi. Ele ainda com o telefone celular na mão. Entendo que dada a inutilidade do aparelho, já que a tarifa viria não mais do aplicativo, mas do taxímetro, meu amigo deve ter se desligado, se distraído. Desviado a atenção para a conversa com o motorista, que estava era boa. Na certa, por estar atento aos casos ao largo, largou o telefone por cima do banco do carona. Eu, no banco de trás, prestava reparo, me surpreendia com a desenvoltura da conversa. Uma agradável viagem, versada em ironias, risíveis passagens e até em combinas para o próximo show do Roberto Carlos. Gente boa, o taxista; meu amigo, muito dado. Fizeram uma boa dupla.

Meu amigo tem uma consideração distante pelo celular. Sei disso por causa das nossas comunicações via ‘zap’. Quando passo a mensagem sei que ele só vai visualizar e responder depois de um tempo bem atemporal perto do que hoje é o costume da maioria. Daí que assumindo esta distância, quando descemos no destino, deixou o aparelho no táxi e só foi dar por falta, após a chegada da primeira rodada de bolinhos de bacalhau. Anunciou a perda na maior calma e alertou que não adiantaria ligar porque na última lembrança que tinha do telefone, constava a imagem da bateria já ir-se indo. Estava ali uma pessoa desapegada desses valores rasos modernos. Eu, por outro lado, fiquei num desespero só. Quis ligar pra Deus e o mundo. Fui desestimulado pelo meu amigo que alegou tudo ter senha e que no dia seguinte iria tomar as ações. Estávamos ali para celebrar nosso encontro e um aparelho celular não iria cortar nosso barato. Pesquei um bolinho do prato e tentei relaxar. Quando toca o meu telefone. Que surpresa agradável!

Ao encontrar o aparelho, o motorista cuidou para dar uma carga. Na certa, rejeitou umas corridas e se concentrou na devolução ao dono. Buscou as últimas ligações e me achou lá numa chamada. Postei a localização. Minutos depois ele apareceu com o aparelho. Oferecemos um agrado, não aceitou. A companhia para a outra rodada de bolinho e o profissional da direção declinou. Jogou as prendas para o dia do show do Reiberto. Voltou ao volante levando minha admiração.

 

sábado, 23 de agosto de 2025

crônica da semana - a sesta e o sexto sentido

 A sesta e o sexto sentido

Depois, depois... Não tenho culpa se os fatos acontecem comigo desse jeitinho, se bandeando para o lado dos impressionantes mistérios. Mas parece uma coisa. Dita, escrita e subscrita pelo destino.

Aconteceu há alguns anos, muitos até, d’eu sonhar com o encarreirado de números certinho no tanto de quebrar a banca do bicheiro. Contei este causo aqui, certa vez. O relevante da história é que foi um sonho que me ocorreu naquele sono da tardinha, aquele depois do almoço, que a gente não dá nada por ele. E também, foi num contexto de precisão. Pra eu estar dormindo a sesta, em casa, era caso de ócio forçado. Barra pesada e imprensada do desemprego. Estava, como se diz no trecho, urrando. Na pira-paz de grana, chorando um olho e remelando outro por um anúncio nas páginas de jornal ou uma indicação da parceirada das lidas, para uma oportunidade de trampo. Não domino a arte do jogo, mas passei os números na ordem que apareceram no sonho, pra mamãe. Ela fez as contas, somou, dividiu, tirou a prova dos nove, a prova real, vai um aqui, empresta outro ali, fecha o parêntese, passa a régua e ela preencheu a pule na extração do corujão. Éraste! Cravou na cabeça. Rolou uma grana firme, que se não fosse a reaplicação no jogo, nos garantiria vida boa, sem travanca, só na manha, por uns três meses, tirando até onda, fazendo extravagâncias, escolhendo a pá só com o osso da peça, no talho do Manduca. Mas tirando um pelo outro, o ter e o haver, foi um tutu rechonchudo que nos valeu que só.

De tal sorte que se maldo para os desdobros, era de colocar uma plaquinha na porta de casa para me ocupar as tardes, antevendo números pra galera. Resisti, mais porque não mais sonhei com piriricas de nada, que por algum pudor guardado no coração (confiava, porém, que pelo sagrado ou pelo profano, numa hora ou outra a premonição me visitaria de novo).

Eu fiquei impressionado com essa história dos números. Deu de desconfiar mesmo que me avio com uns fenômenos aí extra-sensoriais, fora, além dos nossos comuns pendores. Porque não foi só daquela vez que me vi envolvido nessas paradas. Outras, com sonho, sem sonho, às vezes com uns arrepios ou esquentamento de orelhas, sinais silenciosos, sentimentos estranhos; outras vezes, desta ou daquela forma, me ocorreram.

Ou mesmo atuando nas beiradas das coincidências. Como agora, este ano, quando os extremos me acompanham.

Pelo que torna e pelo que deixa, nos tempos atuais tenho me dedicado a periódicas jornadas de vovô em terras cariocas. Na minha missão de início do ano, experimentei um calor espetacular por aqui. Uma aventura de contornos térmicos dramáticos. Temperaturas acima da média. Em alguns pontos da cidade a coluna de mercúrio subiu além dos 47 graus. Agora mire e veja, se não é um chama sobrenatural para os sobressaltos. Desde o início do mês de agosto, cumprindo outra fase de vovozinho, estou vivendo exatamente o contrário. O mês todo é de frio bem doído para os padrões cariocas e uma sequência inteiriçada de dias gelados que não se registrava há pelo menos 20 anos. Diante das vivências extremas, posso considerar que se alguém está querendo uma reviravolta climática, é só me chamar que o tempo desanda. Tenho a liga, o chama. Ensejo as consequências mais atarantadas do aquecimento global. Não que eu queira.

Posso colocar na conta de um sexto sentido, um fluido ativo outro e oportuno, que se manifesta ao acaso e faz acontecer. Me vejo na pretensão de ser um arremedo dos mutantes, aqueles dos filmes com seus poderes sem controle. E nem sei avaliar a minha qualidade de mutante. Se da turma dos bonzinhos ou dos mauzinhos. Por agora, percebo que para forjar as tendências do frio-quente, nem é necessário o expediente da sesta, da premonição, do esquentamento de orelha, dessas esquisitices. Os absurdos mundanos fazem por mim. Nem sonhar sonho mais.

sábado, 16 de agosto de 2025

crônica da semana - ser normal e tal - conexão

 Ser normal e coisa e tal

Da vez que vim de Lima, no Peru, para o Brasil, aconteceu igual. Estava com um parceiro meio desligadão, nem seu Souza para as urgências e contingências. Fui na dele, patetei no horário de pico da cidade, e no trajeto para o aeroporto demos de encontra com um trânsito daqueles, lento, travado. O que se deu é que chegamos ofegantes e na batida da campa para o embarque. Por aqueles dias ainda se marcava lugar no balcão, na ocasião do ‘chequim’. Pedi janela. A atendente me respondeu dizendo que só havia sobrado uma janela, na última fileira, aquela aonde a poltrona não reclina e que fica de palmo em cima com os banheiros. Me dei foi por satisfeito. Estava na conta do nosso atraso essa prenda. Peguei a vaga. Íamos atravessar a cordilheira dos Andes e por causa de uns dramas pequeninos de últimas poltronas eu é que não ia perder o espetáculo grandioso das montanhas. De jeito e maneira.

De modos que já estou passado na casca do alho de viajar me batendo com os desconfortos da última fileira do avião. Por isso não queimei as piriricas quando no aleatório para a viagem mais recente que fiz, fui lançado para a mesma colocação. É certo que reinei numa insatisfação por jogarem os avós e a netinha no fundão, mas um outro e dramático fato daquela viagem de regresso do Peru,  me requereu mais atenção. O curto tempo de conexão.

Agora desta vez o cuidado era com a troca de avião em Brasília quando tínhamos minguados 50 minutos para sair de um e entrar noutro. Com criança, bagagem de mão, um estirão a vencer às carreiras e o demorado desembarque de mais de 200 passageiros.

Sou desses. Espírito cartesiano. Dou maior valor no xis aventureiro lançado ao encontro com um ipsilone, de espera atenta, num cantinho certeiro do espaço. Acredito, em qualquer combinação, na geração de um inequívoco ponto P, objetivo, absoluto e dotado de algum sentimento. Daí que, dias antes da viagem, as noites se tornaram mais curtas, o sono dava lugar a simulações de situações limites, continhas, avaliação de imprevistos, julgamento antecipado de eficiência da infra-estrutura do aeroporto e da companhia aérea. Preocupação latente e insistente com os detalhes da viagem. Agendei documentar, filmar tudo, cada etapa do vôo. Caso perdesse a conexão teria provas suficientes para demandar os operadores do sistema.

Do meio por fim, encaminhei um plano de ação. Mapeei o aeroporto de Brasília, localizei os píeres, possibilidade de desembarque em cada um deles, estratégia de deslocamento. Fez parte do plano de ação também, uma pesquisa sobre o tempo de deslocamento entre os píeres. O destaque é que a quase totalidade dos vídeos que achei na internet é desprovida de funcionalidade. A maioria retrata o lado recreativo das conexões, exibem vulgaridades, registros vazios de finalidade. Nada sobre os aspectos práticos de uma conexão, como a distância dos portões e tempo de caminhada entre eles. Até que achei um perfeito. Um único vídeo útil indicando a duração da caminhada de um píer a outro. Captei a mensagem, 11 minutos. Agreguei a informação às minhas continhas.

Já na hora do embarque aqui em Belém, a dica. Enquanto esperava a chamada, medi o tempo de desembarque de dois aviões que chegaram. No máximo, 15 minutos. Mais uma parcela para calibrar minha soma de tempos.

Meus aperreios, minhas ações, noites de sono perdidas e as continhas, sem hesitar, são tidas aqui na família como sinais de ansiedade, apreensão e preocupações nada normais. Aqui ali, ouvi orientações para eu me aquietar, deixar tudo pela providência divina e levar a vida na boa.

Não desapeguei das minhas manias. Afinal, admito que ser cartesiano. Um articulador cronometrado, para mim é natural. Combinar xises aleatórios e ipsilones comprometidos, entendo que sempre gera um ponto certeiro no espaço, dotado de personalidade. Sou normal eu. E, então, deu tudo pelo certo na conexão. 

 

 

sábado, 9 de agosto de 2025

crônica da semana - no fio da navalha

 No fio da navalha

Tem já um poder de tempo que corto o cabelo somente no manejo basicão da máquina zero. Me avio naqueles salões populares, dou a letra da altura e, num tapa, antes que eu ensaie pronunciar a desafiadora trava-língua ‘pipabaquígrafo’, o trabalho se dá por encerrado. Foi nessa ligeireza toda que dei reparo que não usam mais, pelo menos no caso do estado mínimo do meu cocuruto ultraliberal, a navalha. Como não uso o serviço para outras demandas, desconfio que para o tratamento da barba, sim, ainda se usa a lâmina articulada.

Essas novas técnicas, com máquinas que cortam bem rés, vontades estéticas recentes, além do medo de contaminações, levaram a navalha para um patamar reduzido de utilização. Com ela, também a expressão ‘no fio da navalha’.

Consta que para que a barba ou os arremates no corte de cabelo se realizassem com êxito e no mais apurado refino, tinham que ser feitos ao fio da navalha, ou seja, com o máximo de precisão. No limite, no extremo do acerto. De tão afiada a lâmina, um movimento débil poderia provocar um golpe dolorido no cliente ou escangalhar o desenho do corte.

Este fino entendimento, o adelgaçamento definidor de resultados, a certeza e a perícia que pautam uma decisão, compõem o teor de minhas reflexões cotidianas quando admito que, por ora, vivemos no fio da navalha. Hoje em dia o sobressalto nos impõe zelo na opção ou opinião mais comezinha, coisa qualquer de calçada, de esquina, prosa vã ou sem sal. Qualquer deslize, qualquer falta de cuidado e a confusão se instala.

Recorro ao formigamento na mente, à associação de idéias para justificar porque minha narrativa se dá, na maioria das vezes, no tempo passado. Digo que sou um cronista retratista, memorialista. É um modo de sofrer menos. Remontar o acontecido não dói, e até mesmo se nos lega algum sofrimento, o cronista dá um jeito, recorre a uma anestesia de estilo, a uma figura poética. O que aconteceu já era, já é memória, não pode ser mudado, mas pode ser interpretado, romantizado, recontado em lirismo ou fantasias. Não há um momento tenso, delicado, decisivo ao se contar os causos já idos. Não temos que cuidar com o fio da navalha.

Agora, olhar a história de palmo em cima, daqui pr’ali, no presente e até, de forma ousada e previdente, rebatê-la para o futuro é missão que exige pé ante pé. Nos recomenda cautela, canja de galinha, remédios pra pressão em dia e uma dose altíssima de serenidade, porque senão, olha, a gente pira.

Mamãe já dizia: ‘o dia de amanhã não nos pertence’, acrescento que nem mesmo o dia de hoje. Nossa rotina é definida por humores e devaneios de poderosos investidos de mando e controle. Nos batemos a cada dia com reinvenções do óbvio, do curto e certo. Todo santo dia uma realidade é atacada e covardemente revista, reordenada, alterada no significado. Mesmo os mais consagrados tratados da ciência são vilipendiados. As narrativas circunstantes nos lançam ao ambiente perigoso, melindroso retratado na ferramenta usada pelos profissionais de barba e cabelo. O fio da navalha.

Eu que não me dou sofrer na ficção, porque, para que tal aconteça, me basta o noticiário matinal, me pego é com os tempos acontecidos.

Lá no seringal, eu tinha um padrinho que era barbeiro. Tinha um medo que me pelava dele. Não exatamente dele. Da máquina zero que ele usava. Lá pelos anos sessenta, a máquina era de acionamento mecânico e difícil de pegar um bom fio de corte. Cada passada do coco da gente era um suplício. Meu padrinho não perdia a viagem. Quando na passada a máquina não cortava, ela, a um manejo diferenciado dele, voltava arrancando o cabelo. Dindinho fazia visitas periódicas ao seringal para as sessões de tortura. Assim que o anunciavam, eu ganhava o mato e me escondia. Custava para me pegarem. Mas quando me achavam... fazendo a releitura, mesmo no passado, na época da inocência, acho que vivia no fio, sem fio, da máquina zero.

sábado, 2 de agosto de 2025

crônica da semana - seu legado

 O seu legado

Consta em toda notícia, todo boato, qualquer respingo de informação, opinião ou impressão que a gente dá de encontra por aí, pela cidade da COP 30, que o tal do seu legado tá que tá chegando e que a nós, nos vai valer que só. Sê bem-vindo.

O que trará abrigado nos afortunados bolsos do tempo? Nos envolverá em seu manto de realizações e divulgará cada uma delas num programa noturno do tipo “O bolso do seu legado?”.

Expectativas eletrizantes acompanham os regalos de seu legado. Dizque tem ponte se elevando, estrada rasgando a mata, igarapés maquilados, hotéis forjados, canteiros lantejoulados, serviços e entretenimentos ativados em nome do seu legado. A Belém que queremos bem sairá da COP 30 repaginada, brilhantinada, empoada e no rouge pó, ainda que sob o risco de borrar os traçados da face urbana ao contato, fugaz que seja, com a chuva da tarde.

Legados são registros que nos valem, representam conquistas, uma ou outra experiência de relevo, por vezes, nos passam a dureza dos dias. São heranças de corpo e de alma, de concreto, como as pontes que se elevam ou apenas espólios abarcados pelos sentidos e ações, como o bom caráter ou a má índole.

Em nossa caminhada por esta estrada fluida e veloz que é o tempo, vamos deixando fiozinhos indicativos, ou trançados afirmativos, assentados, acondicionados a uma realidade. Estes são os nossos legados que repassamos para os próximos, para os dignos e interessados.

Que o legado da COP 30 nos seja útil para, essencialmente, nos sensibilizarmos que os caminhos a serem trilhados nos próximos anos podem causar o nosso bem ou o nosso mal. Vai da gente. Sê bem-vindo, seu legado, se for do bem, pode até ficar para um açaí.

Eu por mim, me darei por satisfeito se o seu legado nos livrar das atitudes miúdas, simples, cotidianas, que nos levam a incredulidade quando ocorrem, de tanto que são absurdas, coisas que nos tempos atuais a gente nem malda que ainda aconteçam com elaborada desenvoltura, no meio do nosso povo.

Do jeito que presenciei ao caminhar pela principal avenida da Pedreira. Ali, o próprio desenvolvimento da nossa trajetória já é objeto do seu legado. Calçadas ocupadas, besuntadas de óleos, graxas aqui. Ali, uma atividade semi-industrial de palmo em cima com a gente, sucatas, obstrução do trajeto por carros imensos, humilhação e um sentimento íntimo de impotência. Mas nem é tudo. Deu-se que uma hora dessas, me vi de encontro a um rapazinho, olha só, um jovem, categoria etária aquela de quem a gente espera tanto! Aparentava ser funcionário de um dos estabelecimentos. Saía de dentro da loja com um copo plástico. Estava terminando o cafezinho do intervalo da manhã. Cruzou a minha frente com o copo na mão, tomou o restinho do café, adiantou-se até o meio-fio, e pluft, ali mesmo largou o copo. No meio da rua. Nessa hora, lembrei do meu legado como contador de causos.

Há algum tempo, publiquei uma crônica com este mesmo enredo. Estava num ônibus e o rapaz jogou uma porção de resíduos plásticos pela janela. Na minha reconstituição, forjei uma fala pra ele, explicando a ação: “depois o pessoal da prefeitura venhu e varru”. Fez sucesso essa expressão que criei. A família, os amigos quando se vêem em situações semelhantes, reproduzem o meu legado linguístico. E por certo, meu legado estava, em alguma versão, na cabeça do rapazinho quando deitou o copo plástico ao meio-fio.

Seu legado da COP 30, se nos deixar lá dentro do cocuruto, um quê de sentimento de cidadania, de respeito pelo espaço urbano, se gerar uma menção de fazer o mínimo, reconhecer a necessidade de descartar apropriadamente os resíduos que geramos, bem o mínimo mesmo, como o exemplo de admitir o uso de um recipiente para lixeira... Se refletir, nas maquilagens, uma mensagem de preservação, educação e consciência cidadã. Se nos fizer entender que nós somos o pessoal que ‘venhu e varru’, a mim já me agrada que só.

sábado, 26 de julho de 2025

crônica da semana - direção e sentido

 Direção e sentido

Na vida, por vezes temos a direção, mas nos falta o sentido.

Aconteceu de uma vez, eu me perder no mato. No exercício da profissão a gente valoriza a atenção, recorre às recomendações e treinamentos, mas pra gente se perder, ó, é daqui pra’li, num piscar de olhos. Não era área boa pra se perder não. Estávamos na margem direita do Xingu. Hoje, pesquisando imagens e mapas, fico besta de ver como aquela região se modificou. Tem cidade, vilas, ocupações, fazendas pra tudo quanto é lado. A floresta é só uma lembrança. E, nos contornos, o ambiente carrega também o trauma ocorrido em Anapu causado pela violência cometida contra irmã Dorothy. Naquele finalzinho da década de 80, entretanto, era a selva densa e soberana. Poucos andavam por ali. Minha equipe de Geologia, os técnicos da Florestal, e as turmas da Topografia se arriscavam naquele ermo. E do projeto, que eu saiba, só. Ao contrário da margem esquerda que tinha ligação com a Transamazônica e trechos mais povoados, era frente de rara movimentação. Por isso, era meia bronca se perder por lá. Não tinha rota de fuga. Mas foi o que se sucedeu.

Saímos em dois para uma jornada de mapeamento. Eu e o Geólogo da campanha. Tudo bom, tudo bem, trabalho fluindo na boa, martela uma rocha aqui, um bloco disperso, ali, sempre orientados pelo mapa e pelas marcações deixadas no eixo das picadas abertas pelos pioneiros da Topografia. Quando se deu o temido branco. Meu amigo saiu para um varador dentro da mata. Eu guardei posição. Ele considerou importante aquela rocha escondida na brenha alta e me chamou para conferir. Levantei a vista, fui no rumo dele, anotei, medi junto com ele os parâmetros do afloramento, e catalogamos o ponto. Borimbora. Mas quando! Ao erguer a vista, cadê a picada! Fizemos um reconhecimento, uma regressão, nos arriscamos uns passos além, outros atrás e nada. A mata era de uma textura só. Tudo igual. Reconhecemos: estávamos perdidos. Valeu a serenidade. Não nos afobamos. Usamos o protocolo. O procedimento ensina procurar região baixa, achar uma drenagem e seguir o caminho da água. Deu certo. Localizamos o igarapé no mapa e verificamos que em algum momento cruzaríamos com uma picada transversal ou linha base aberta pela turma da Topografia. Não foi fácil. Muitos desvios, trechos mais fundos do igarapé que evitamos, alternativas pelas partes mais altas, retorno ao leito do rio... Não tínhamos facão ou outro recurso para vencer as partes de mata mais fechadas e haja arrodeio! Quase duas horas depois, varamos em cima de um piquete. Identificamos a numeração, visualizamos no mapa. Era só traçar a caminhada de volta. Nessa hora foi fundamental saber a diferença entre direção e sentido e dar razão, estabelecer uma lógica entre um conceito e outro.

Pelo comum, a gente não faz essa diferença, digo até que a gente tem um pelo outro. Normalmente chamamos de direção o que na regra é o sentido de um caminhamento. Dizemos: ‘segue na direção que aponta teu nariz’.

O que torna é que o sentido é um componente da direção. No nosso caso, o piquete que achamos, por ser parte de um alinhamento, uma reta horizontal, representava a direção. Dali, tiraríamos o sentido que caminharíamos sobre a reta, para sair da mata. A decisão nos levaria ao nosso acampamento ou nos encerraria no fundo da floresta, perdidos, por tempo indeterminado. Se a gente pudesse ver o sol ainda próximo do horizonte, orientando o mapa, seria galho fraco. O sol não nos valeu. Então, só teríamos certeza se o sentido seria o correto, se achássemos em campo, outro piquete que estava localizado no mapa. Mais uma andada operacional.

Na vida, o mesmo acontece. Temos outras direções até. Vertical, horizontal, inclinada quase em pé, quase deitada. O sentido, não depende exclusivamente do sol. Vai da gente. Podemos seguir para cima, para o lado. E sempre atentos, para não nos quedarmos ao lado errado da história.

 

domingo, 20 de julho de 2025

crõnica da semana - a mensagem - 30 anos rádio cultura

 A mensagem

Lembra muito bem o dia que chegou ao garimpo. Vinha de uma jornada de mais de uma semana vencendo as corredeiras do Tapajós, os atoleiros da Transamazônica. A saudade

Sem experiência, ombreou-se ao amigo que o acompanhava na peleja. Tinham o sonho de voltar para casa ricos. Logo se adaptou, habituou-se a seguir o veio. Entendia os sinais que o ouro emanava.

Quatro anos haviam se passado e a fortuna não chegara. O amigo, depois da sétima malária, desistiu. Fez as contas, tirou o saldo e voltou pra Belém. Estava só.  Ele e seu radinho de pilha.

As ondas que chegavam ali traziam o bom dia de Edelson Moura e Márcia Ferreira; os dramalhões de Artemisa Azevedo; as historinhas infantis de tia Leninha. Era a Rádio Nacional da Amazônia aquecendo lembranças, alimentando vazios, reclamando presenças. Todas as noites, uma infinidade de mensagens ganhavam os céus a procura de silenciosos destinatários.

Tinha a esperança inabalável do garimpeiro empedernido. Porém, não menosprezava de todo, as dores do coração. À noite, colado ao seu radinho de pilha sob a cantilena monótona dos mosquitos volteando a lamparina, mordia os lábios, cerrava os olhos, entoava cantigas tristes bem baixinho, ali no fundo da rede. Ouvia com irrevogável empatia o rogo desesperado de mães para que filhos distantes, sumidos por anos e anos, voltassem pra casa.

Era irredutível. Sem o brilho amarelado do ouro no comando, permaneceria em silêncio, sofreria, viveria apenas a vida dos outros pelas ondas do rádio.

“Bom dia, Amazônia!” Pressagiavam os locutores da rádio que reverberava o otimismo pela mata naquela manhã de um Abril molhado. Desceu para o trabalho. Sem nenhum motivo explicável, tirou todo o maquinário do canal pedregoso, fez um corte no barranco mais acima, liso e instável. Esperou que uma boa quantidade de terra se deslocasse e daí em diante, ligou os equipamentos para explorar aquele cerqueiro. Passou o dia todo tratando aquela areia fina e enferrujada da margem.

À noite, cumpriu o rito. Lamparina, mosquitos, ouvido colado ao radinho, empatia. Num repente, foi tomado por uma instabilidade incontrolável. Uma alegria-tristeza tórrida, destruidora. Pelas ondas do rádio, uma mensagem de sua mãe chegava ao seu coração.

Adormeceu e sonhou que, animado por um “Bom dia, Amazônia”, ao despescar a mesa concentradora da “cobra fumando”, explodia de felicidade. Nunca tinha visto tanto ouro na vida.

Ficou rico no sonho. Fez as contas, tirou o saldo. Era hora de voltar pra casa.

 

sábado, 19 de julho de 2025

crônica da semana - Leonel

 Como por encanto (Leonel)

Mas deixa que bati, virei e mexi atrás dessa foto. Buli, vasculhei caixas, pastas, postagens nas redes sociais e nada. Desanimei, creditei a perda aos cupins que sempre dão uma blitz na minha trajetória de acumulador.

Acontece que tive uma surpresa deste tamanho agora por esses dias. A foto apareceu em um dos arquivos recentes que montei no computador. Trata-se de uma composição de acervo listando registros antigos que me servem para ilustrar as publicações que venho fazendo de crônicas pautadas em passagens que tive pelos estirões amazônicos. Ao repassar o acervo, foi como por encanto. A foto apareceu misturada a outras que eu havia resgatado de uma pasta com material digitalizado. Isso quer dizer que a foto em papel, realmente não existe mais (os cupins? Ou um desapego distraído?).

Na foto, está Leonel e, em destaque, ao lado dele, um bloco de rocha exibindo figuras desenhadas pelos povos primitivos que habitavam aquela região do Xingu.

Eu tinha porque tinha que achar este registro porque temo que seja a única imagem retratando as pinturas rupestres disseminadas em pontais e ilhotas encravadas no trecho encachoeirado do baixo Xingu.

Explorei o local com o Leonel. Estávamos acampados rio abaixo e numa tarde de folga no domingo, nos abalamos até aquele local. Tínhamos notícias das inscrições nas pedras. Decidimos conhecer o sítio arqueológico de palmo em cima. E foi tudo muito espetacular. Deslumbrante. Era época que o Xingu ainda tinha uma carga boa de vazão e aqui, ali, as barreiras de pedra formavam quedas d’água fascinantes. Aportamos em uma prainha. Nos surpreendemos com tantas artes nas pedras, tantas figuras e símbolos diferentes. Não éramos especialistas, mas dava pra identificar uma rica estrutura de comunicação representada nas inscrições. Naquela hora, entendi a importância do sítio e me bateu a inquietação sobre o destino daquele conjunto arqueológico, já que as obras da barragem estavam chegando. Hoje me pergunto: o que aconteceu com aquela herança cultural? Não achei trabalho publicado sobre, exatamente, esta acumulação de rochas grafadas. Nem imagens nem nada. Este fato dá valor à foto que guardei e que mostra o Leonel ao lado de um bloco bastante representativo, de desenhos nítidos. Pode ser um testemunho raro. Ainda bem que achei a foto. Meu coração ficou mais aliviado.

Era um lugar de difícil acesso. Só fui até lá porque o Leonel estava à frente da aventura. Fomos de canoa a remo e ele era nosso melhor remador e exímio navegador. Sabia das correntes, dos remansos, dos pedrais e de coisas outras que não captávamos.

Leonel era um encantado. Trabalhava na empresa com a gente, mas naquela época, se formos comparar, seria uma espécie de consultor. Só ia pra campo em situações especiais. O resto do tempo, operava em um primitivo home office.

Era cultuado porque não recebia missões comuns. Atuava achando pontos distantes que ninguém achava, prevendo cenários em segmentos desconhecidos dos rios ou dos morros, e resolvendo problemas delicados com os encantados da floresta. Conversava com as árvores, se aconselhava com os animais, fazia acordo com o Curupira e com a Iara, quando a gente precisava caçar ou pescar. Era o primeiro voluntário a se apresentar nas comissões de busca quando alguém se perdia na mata.  Ficou famoso no caso de um trabalhador nosso que ficou 15 dias perdido. Leonel foi atrás. Descia o ouvido até o chão, ouvia o coração da floresta. Virava vento, virava luz, água e frutos silvestres para alimentar o perdido. Por fim, se transformou em um coelho branco reluzente e indicou o caminho ao trabalhador até ele ser resgatado em uma fazenda da região, na noite do décimo quinto dia.

Subi o rio para conhecer o sítio arqueológico porque fui sob os cuidados e acordos do Leonel. Calhou, esses dias, d’eu achar o registro desse momento incrível. Por encanto.