sábado, 13 de setembro de 2025

crônica da semana - falando sozinho

 Falando sozinho

Há situações que nos pegam sem jeito. Nos atravessam no repente e nos impõem reações inesperadas.

Como aquela na saída do aeroporto de Belém quando tentei ajudar um camarada de tudo quanto é jeito, atrapalhado. Estava voltando pra casa depois de me despedir de um amigo. No caminho para o ponto de ônibus, o pequeno até aqui de malas passou por mim e pediu que eu o ajudasse. Mas não parou, continuou caminhando apressadamente. Aí veio a minha reação meio sem razão. Saí atrás dele tentando de toda forma dar um auxílio, que se reduziu à operação inócua de andar com a mesma pressa que ele. Até tentei dar um apoio, amparando com as duas mãos, a valise que ele lançara sobre as costas, mas ele ia tão rápido que me delegava apenas a menção, minhas mãos como se rogasse por algo, vagaram abandonadas ao vazio. Até que desisti. Ele, feito uma mula comboieira ladeada de caçuás, se adiantou ligeiro. Eu fiquei pra trás tentando entender aquela situação. Passou, inclusive, da parada do Perpétuo Socorro e sumiu ali pras bandas da rodovia Snap. Não teve resultado aquele arremedo de comunicação. Um pedido de ajuda, vindo de um estranho, muito estranho, que não era dado a ajudas.

Por agora, me vi em outro desafio para administrar minha atenção. Com resultado mais aquele, na comunicação. Trancei, por um tempo, uma prosa elaborada, profunda, rica em informações, com um cidadão. De costas.

Estava na caminhada matinal numa rua da Tijuca, no Rio, que tem uma pedra enorme no meio do caminho. A gente aqui de Belém, ou mesmo dessa região de planície não está acostumado com essas expressões de relevo, daí que faço questão de passar por ali e admirar aquele bloco rijo, pomposo, se elevando no meio do nosso trajeto.

Eis que ouço alguém atrás de mim, em brados fartos, coordenados e insistentes. Como só eu caminhava na calçada, estava era se dirigindo a mim. Caramba, exclamei apreensivo, maldando ser um desses destrambelhados que pelo comum encontramos na rua pedindo golpe, intervenção militar, procurando papo de anistia para conjuradores. Virei o olhar para avaliar a companhia, as menções e intenções. Tinha mesmo o baque do cidadão de bem do zap. Bochechas coradas, salpicadas de barba cerimoniosamente doirada, passadas marciais, traje do tipo despojado-caro. Rapidola volvi ao caminho e mantive uma distância de segurança entre nós. Tinha uma voz potente e que me revelou umas frases organizadas e compreensíveis. E ora, ora. Tá vendo como a gente não pode maldar. Não tinha dolo. Só queria partilhar a mesma admiração pela rocha que se expunha ali na avenida. E, me localizando no adiantado, alterava o tom para me informar que aquela pedra tinha mais de sessenta milhões de anos. Quando captei a mensagem, interagi. Mesmo seguindo meu caminho, virei o rosto e de través, admiti que poderia ser bem mais, a Geologia da região datava para mais distante no tempo mesmo. Emendou pedindo que eu prestasse atenção lá ao longe, ao corcovado e acrescentou ter lido em algum lugar que a pedra do Cristo tem mais de 500 milhões de anos. A seguir, filosofou. “E a gente acha que viveu muito. O homem se considera o dono da Terra. Não é nada diante das maravilhas eternas da natureza”. Taí, aquele senhorzinho com jeito de militar aposentado estava me saindo melhor que a encomenda. Ainda de costas, dei linha reforçando que em termos de ocupação da Terra, o homem perde feio para a samambaia. Lembrei Carl Sagan quando afirma que pela idade da Terra, se comparada a um ano, o homem moderno só apareceria nos últimos minutos do dia 31 de dezembro. Animei com a companhia da caminhada e ainda de costas, para ilustrar a vastidão do tempo, iniciei aquela lenda do passarinho que a cada mil anos vinha afiar o bico numa rocha. Mas antes que eu concluísse a história com a abstração da eternidade, olhei para trás e o homem não estava mais. Foi aí que me peguei falando sozinho.

3 comentários:

  1. Há sempre uma metáfora ... eu queria acreditar na eternidade. Ah, ando falando muito sozinho também.

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  2. Bela crônica, como sempre.

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